Aves

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Eu achava que os seres que voam eram muito mais abundantes do que os que nadam ou andam. Mas isto só é mesmo verdade para os insetos, pois existem 5 a 10 milhões de espécies, das quais apenas 1 milhão por nós conhecidas.

Há muita controvérsia sobre a quantidade de espécies: peixes seriam 24 a 35 mil, répteis cerca de 10 mil e mamíferos, 6.500, o que me surpreendeu – mas isto é em parte devido à enorme variedade dos morcegos, que são mamíferos alados.

O curioso é que, apesar da extinção, o número de espécies conhecidas tem aumentado, devido à pesquisa: por exemplo, durante o último ¼ de século, as variedades de mamíferos aumentaram em 40% e as de aves, em quase 20%. A própria definição de espécie, como sendo os animais que podem se reproduzir entre si, hoje está sendo discutida.

A mais famosa obra de ornitologia, sobre as aves dos Estados Unidos, escrita por John James Audubon e publicada em 1827-38.

Um estudo recente descobriu uma diversidade oculta nas aves, ou seja, pássaros de aparência semelhante ou que pareciam cruzar-se entre si, mas que pertenceriam a espécies distintas. O número de espécies de aves passaria de 10 para 18 mil. No conceito anterior, o Brasil teria algo como 1/5 de toda diversidade mundial. Somos um dos 3 ou 4 países com maior variedade de espécies.

Desculpe essa introdução um tanto árida, mas eu queria falar sobre os ornitólogos brasileiros, esse nome horrível que é aplicado aos estudiosos dos pássaros. Eu penso às vezes que as aves (e os répteis) ocupam no reino animal a posição que o cerrado (e a caatinga) possuem no vegetal.

A devastação desses biomas quase não desperta atenção, comparada à da mata atlântica e da floresta amazônica. Da mesma forma, a ignorada extinção das aves comparada ao tão divulgado desaparecimento dos mamíferos.

É evidente que a opulência visual da floresta e a complexidade maravilhosa dos mamíferos tornam suas perdas muito mais doloridas e criticadas.

Mas são todas elas formas de vida e sabemos que a vida é interdependente da ação de todas as espécies. Uma Terra sem ave é um planeta sem floresta; uma Terra sem savana é um mundo sem mamífero.

Quero falar agora da ornitologia. É evidente que, desde sempre, houve a observação e a descrição das aves. Ao longo do tempo, a ênfase na exposição passou para a classificação e, depois, para o estudo das origens, dos padrões, dos comportamentos e do ambiente.

As teorias da biologia são hoje desenvolvidas para uma variedade de formas de vida, e não uma só, de forma que a ornitologia como ciência isolada de certa forma mergulhou dentro do abraço maior da biologia. Temos hoje menos ornitólogos e mais biólogos.

Sistema Quiniano com agrupamento das aves em cinco grupos – de rapina, de poleiro, aquáticas, riscadoras e pernaltas.

No século XVIII alguns estudiosos franceses produziram grandes obras descritivas, mas a ornitologia como ciência começou no século seguinte, entre ingleses e alemães. Na primeira parte do século XIX foi publicada Birds of America, considerada a maior obra sobre aves da história.

Os estudos sobre evolução, comportamento, aprendizado, território e genética ampliaram nosso entendimento sobre as aves. E sua observação tornou-se cada vez mais popular, com a participação de amadores e a influência de organizações, como a Sociedade Audubon norte-americana.

Duas versões do incrível arqueopterix, datado de 150 milhões de anos. Transição entre réptil e ave, era capaz de voos curtos.

A pesquisa das origens das aves é dificultada pela mobilidade de seus indivíduos e fragilidade de seus fósseis. Acredita-se que as aves descendam dos dinossauros. Existe um animal de transição, o arqueopterix, um pequeno dinossauro plumado – seria um elo de passagem entre aves e répteis ou então uma ave primitiva, a primeira delas.

Nas aves, a morfologia (como penas, músculos e ossos) e a fisiologia (como respiração, ventilação e circulação) desenvolveram-se maravilhosamente desde então para aperfeiçoar seu voo.

É curioso observar que grandes nomes das ciências naturais visitaram o Brasil a partir do século XIX: Delalande da França, Swainson e Wallace da Inglaterra, Reinhardt da Dinamarca e Agassiz da Suíça e Estados Unidos. A exuberância de nossa natureza era um forte atrativo para eles, que chegaram a conduzir estudos importantes no país.

É nessa época que surgem nossas três maiores instituições de história natural. O Museu Nacional é vinculado à UFRJ e vem do tempo de Dom João VI  (1818), ocupando um belo espaço na Quinta da Boa Vista do Rio. Possuía a maior coleção de flora tropical do mundo, antes do incêndio que comemorou seus três séculos de idade destruindo-o completamente.

O Museu Paulista ou do Ipiranga possui um importante acervo histórico e natural. Abriga o conhecido quadro de Pedro Américo sobre nossa independência.

O Museu Paraense Emílio Goeldi (1866) fica no Centro de Belém e pertence ao Ministério de Ciência e Tecnologia. Principal instituição de pesquisa no Norte do país, é a meu ver o único dos três a manter exposições regulares e interessantes – e, talvez, a continuar as pesquisas.

O Museu Paulista (1895), associado à USP, ocupa um local histórico no bairro do Ipiranga em São Paulo, sendo dedicado tanto à natureza quanto principalmente à história.

Pois dois de nossos ornitólogos fundadores pertenceram a essas instituições. O combativo e ilustrado Hermann von Ilhering inaugurou a seção de zoologia do Museu Paulista. Nascido na Alemanha, trabalhou por mais de 40 anos no Brasil. Produziu uma enorme quantidade de estudos, especialmente sobre moluscos fósseis, mas também sobre crustáceos, peixes, mamíferos e aves.

Hermann von Ilhering (1850-1930) era muito relacionado no meio naturalista alemão. Voltou para seu país depois de demitido do Museu Paulista.

Emilie Snethlage (1868-1929), apesar do físico franzino, era uma ativa pesquisadora de campo. Sua produção científica sobre a nossa avifauna foi muito extensa.

Emilie Snethlage era alemã e darwinista como Ilhering, mas permaneceu no Brasil, depois de contratada pelo Museu Paraense, até sua morte 15 anos depois. Escreveu o Catálogo das Aves Amazônicas onde sistematizou os dados sobre esses pássaros, descrevendo mais de um milhar de espécies.

Sua obra foi marcada pela ênfase no trabalho de campo. Emilie atravessou a pé o território então desconhecido entre o Xingu e o Tapajós, trabalho que teve grande repercussão no meio científico internacional.

O maior ornitólogo brasileiro foi mais um alemão, Helmut Sick. Sua formação profissional ocorreu em Berlim, por onde também passaram os dois cientistas antes comentados. Assim como Emilie, Helmut estudou lá com Erwin Stresemann, principal ornitólogo da época.

É interessante como o aspecto social influencia os rumos da ciência e como Berlim foi importante para o Brasil. Isto me lembra a Universidade de Columbia nos Estrados Unidos e sua importância no avanço da etnografia indígena e no combate ao racismo científico no Brasil. Mas isso é outra história para um livro futuro.

Sick veio ao Brasil em 1939 numa expedição no Espírito Santo para coletar material da avifauna e refazer a rota percorrida no século anterior pelo príncipe Maximilian zu Neuwied, explorador e naturalista. Ele logo se desentendeu com seu chefe, que retornou à Alemanha, mas Helmut resolveu permanecer no país.

Helmut Sick (1910-1991) é considerado o maior ornitólogo do país. Mesmo tendo sido preso, permaneceu no país e naturalizou-se brasileiro.

Como era época da II Guerra Mundial, Helmut Sick foi considerado suspeito e acabou preso, a pedido do Conselho de Expedições Científicas do Brasil. Permaneceu três anos confinado entre a Ilha das Flores e a Ilha Grande (RJ).

Foi tratado na imprensa sem nenhum respeito: O sr. Helmut Sick vive apaixonado pelos nossos passarinhos. Ele próprio é uma pomba sem fel. Ultimamente, chefiando uma expedição científica, andou em todas as direções do Espirito Santo. Talvez quisesse descobrir sotaque de alemão no canto das juritis. Estamos fartos de gente dessa espécie (trechos infelizes do jornal carioca O Radical).

Mesmo na prisão, ele continuou suas pesquisas. Reabilitado em 1945 após a guerra, foi contratado pela Fundação Brasil Central dos Irmãos Villas Boas para pesquisar a fauna e flora dos vales do Xingu e Araguaia (MT e PA).

Descobriu em 1979 no Raso da Catarina (BA) a arara azul de lear, que era um enigma da ornitologia. No momento em que Sick desvendou esse mistério, começou uma nova saga, que foi a de salvar a espécie da extinção, destaca Gustavo Nolasco. Foi a última grande expedição, antes de sua morte no Rio de Janeiro.

O livro Ornitologia Brasileira de Helmut Sick é nossa maior referência no campo da ornitologia.

Depois de se aposentar do Museu Nacional, escreveu em 1985 o livro Ornitologia Brasileira, que descreve grande parte da avifauna brasileira então conhecida, tendo se tornado uma obra de referência da área.

Dele disse o professor Luiz Pereira de Souza: Na verdade, penso hoje, nenhuma outra obra sobre as aves brasileiras jamais poderá substituir a de Helmut Sick, pelo que ela representa, em seu conjunto, de originalidade, romantismo, dedicação e amor à natureza.

Pronto para conhecer mais um descendente de europeus? Leia o que dele disse Silvestre Gorgulho: Dalgas Frisch, 90 anos, é um herói de dois mundos: da Dinamarca e das Américas. Engenheiro Civil Industrial Químico, escritor, empresário, ornitólogo e ambientalista, tem no seu currículo uma história de vida dedicada às águas, às aves, às florestas e aos índios.

Seu bisavô tornou-se famoso na Dinamarca por transformar uma região desértica na península da Jutlândia numa imensa área florestada. Seu pai Sven, engenheiro que se mudou para o Brasil em 1927, desenhou a maioria das espécies de aves brasileiras. O filho saía de bicicleta com estilingue e gaiola para trazê-las para o pai. Ele as retratou por 40 anos até sua morte.

Johan Dalgas Frisch (1930) e a imagem do pássaro ao qual dedicou a vida.

Dalgas Frisch criou uma ONG  para proteger a flora e a fauna, os rios e as florestas, e índios e os povos ribeirinhos da Amazônia. Foi um dos agentes para a criação do PN Montanhas do Tumucumaque em 1968 (na realidade, ele foi fundado em 2002). É simplesmente a maior reserva tropical do mundo, com 3.800 mil hectares.

Mas ele também conseguiu que a Reserva do Morumbi na cidade de São Paulo fosse tombada na década de 1990, transformada depois em parque aberto ao público em 2008. Ela sequer conta com 2 hectares – mas é certamente mais visitada do que o parque amazônico.

Dalgas Frisch fez a primeira gravação do canto do uirapuru em 1962, um disco de enorme sucesso na época. Esse é uma ave amazônica pequena e tímida, com uma cantilena rara e bela, que a floresta fica em silêncio para poder escutar.

Conta a lenda que o Uirapuru era um índio apaixonado por um amor impossível, feito pássaro para tentar atrair eternamente a sua amada.

Frisch com antena captando as vozes aladas. As primeiras parabólicas eram de papelão.

Descobriu e gravou a voz das formigas e de inúmeras aves – são cantos, trinados e pios tristes e miúdos, cavos ou agudos, simples ou difíceis, metálicos e variados. Mas nenhum se compara às longas melodias e amplos intervalos do uirapuru. Dalgas Frisch escreveu ainda uma dezena de livros sobre pássaros e sobre meio ambiente.

Os estudiosos das aves queriam que a ararajuba (um periquito verde-amarelo ameaçado de extinção) fosse considerada a ave nacional. Contavam inclusive com o influente apoio de Helmut Sick. Mas Dalgas Frisch conseguiu convencer o Governo e o sabiá-laranjeira se tornou desde 2002 nossa ave nacional.

Ele, que dizia conhecer de memória 400 cantos alados, disse assim (adaptado): Não existem dois sabiás que cantem da mesma maneira, os sons maravilhosos do sabiá desabrocham nos corações veios poéticos, como se um cego abrisse seus olhos ao ver a luz e as cores na terra. Uma lenda indígena assegura que, quando uma criança ouve o canto do sabiá, será abençoada com muita paz, amor e felicidade.

Quando a ornitologia começou a se difundir no século XX, havia a noção de que o estudo dos pássaros era mera recreação. Depois, quando a ecologia se tornou importante, a observação das aves (o que hoje se chama de birdwatching) ganhou importância e popularidade.

Na introdução do seu livro sobre pássaros norte-americanos, Robert Ridway escreveu em 1901: Há dois tipos essencialmente diferentes de ornitologia: a sistemática ou científica e a popular. A primeira se ocupa da estrutura e classificação das aves, dos seus nomes e suas descrições técnicas. A segunda trata dos seus hábitos, cantos, nidificação e demais fatos de suas histórias de vida.

Reveja agora logo acima as imagens dos nossos dois ornitólogos. Sick foi um austero pesquisador. Frisch foi um risonho propagandista. Os dois lados da ornitologia – a ciência e a divulgação, o laboratório e o binóculo, a pesquisa e a ilustração. Não surpreende que tenha cabido a Frisch escolher o nome da nossa ave nacional.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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