Balé é esporte ?

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Balé é esporte ? E a escalada ? E o montanhismo ? O artigo tenta levar o leitor a refletir sobre estas e outras questões.


Balé é esporte ?

Você até pode achar que o título
desse ensaio não tem relação com o montanhismo ou com a escalada, mas a
pergunta é muito pertinente pois ela nos leva a refletir sobre o quê, afinal de
contas,  é “esporte” ?

Uma definição rápida para esporte
poderia ser algo como “são atividades competitivas realizadas pelo esforço
físico e habilidades de uma certa pessoa ou grupo”.

Então a natação, a corrida, o
atletismo, o vôlei, o basquete e o futebol são esportes ! E até mesmo
atividades que não exigem um esforço físico também são esportes, como por
exemplo, o xadrez (que exige uma considerável 
habilidade mental).   O cerne de
todas essas atividades é o caráter competitivo que elas podem assumir.

Ao jogar futebol, montam-se os
times, cujo objetivo é um grupo vencer ao outro. Os esportes coletivos são
sempre assim : um grupo tentando vencer o outro grupo. O mesmo aplica-se aos
esportes individuais : tênis, golfe, bocha, arco e flecha…

E o balé ? O balé não parece ser
um esporte… tudo bem que para ser um bom bailarino é necessário treinar o
corpo durante anos, com considerável esforço físico, mas não vemos competições
de balé ou torneios onde se escolhem “o melhor bailarino”. O balé é dança, movimento,
expressão corporal, emoção… e para aprender balé com certeza você não irá
procurar um professor de educação física e sim um bailarino com anos de prática
!

Escolhi o balé como exemplo pois
o montanhismo e a escalada não são muito diferentes do balé.

O contato com a natureza, a
contemplação de um nascer do sol ou de um riacho formado pela água que desce das
montanhas, a satisfação de finalmente conseguir fazer aquela via de escalada a
tanto tempo desejada… e apesar de muitas vezes nesse processo estar envolvida
uma considerável atividade física, falta ao montanhismo uma característica
comum aos esportes, que é a sua natureza competitiva.

Mas o leitor pode me questionar e
dizer : Espere aí…  Esporte não é só
competição ! Ele pode ser praticado sem esse caráter de vencer a outros, ele
pode ser lúdico ou simplesmente recreativo !  O esporte pode ser uma atividade física para
simples diversão ! E isso certamente é verdade : o dicionário Huaiss define  esporte da seguinte forma ” atividade
física regular, com fins de recreação e/ou de manutenção do condicionamento
corporal e da saúde”.

Escrevo este texto pois quero
chamar a atenção para a grande distância que separa a escalada esportiva ou
competitiva , com suas regras, campeonatos e títulos de “melhor do mundo” das
demais vertentes do montanhismo.  Quero
mostrar que o  montanhismo está para a
escalada esportiva assim como o balé está para a ginástica olímpica. Há uma
grande diferença entre os propósitos e as características dos participantes…
 
A escalada esportiva (ou indoor)
surgiu no final da década de 60, sendo que a maioria dos textos diz que surgiu
na Europa para que o pessoal pudesse manter-se em atividade durante o inverno,
quando não era possível escalar as rochas e montanhas. A escalada esportiva
evoluiu e hoje temos campeonatos regionais, estaduais, nacionais, continentais
e mundiais !  Com regras claras e muito
bem definidas !

Voltemos ao “esporte”. O
montanhismo é esporte ? e a escalada de “big wall” é esporte ? Escalada
tradicional é esporte ?

Não existem campeonatos ou
torneios de montanhismo. A preocupação de quem escala uma via complexa em
artificial A3 não é a de ser melhor ou mais rápido do que outro, e sim em
escalar com segurança.
Embora o montanhismo e todas as
suas vertentes de escalada (esportiva, tradicional, big wall, velocidade, alpina,
alta montanha, etc…) possam ser encaradas como  sendo atividades esportivas, incomoda-me
querer transformar a essência do montanhismo em algo capitalizável, com
conceitos do tipo “ganhador” ou “vencedor”.

Certamente faz parte de nossa
sociedade ocidental e do caráter midiático que estamos inseridos querer definir
“quem é o mais, o melhor, o maior”… e tenta-se aplicar esse tipo de
raciocínio para tudo ! Dessa forma surgem filmes como “a montanha assassina” e
títulos como “o maior escalador do mundo”. 

É fácil
deixar-se conduzir por esse tipo de sedução. Recentemente surgiu o conceito de “esportes
da natureza”,  e pasme : no Brasil os “esportes
da natureza” estão sob a alçada do Ministério do Turismo (e não do Ministério do
Esporte), em outras palavras… para o público não especializado,  a descida de cachoeiras, o rapel, a tirolesa,
a caminhada, as corridas de aventura, o montanhismo e a escalada são todos “esportes
da natureza”, “esportes radicais”. É a nossa natureza capitalista de inserir
toda atividade em um contexto de lucro ou competição.

Surgiram “parques
de aventura” e é cada vez mais fácil encontrar lugares com uma lanchonete, um
muro de escalada, uma travessia do tipo “falsa baiana” e uma tirolesa para
divertir a criançada…

O montanhismo possui
um órgão máximo internacional conhecido como UIAA  – União Internacional das Associações Alpinas,
ou para o nosso bom português, simplesmente “União Internacional das
Associações de Montanha”. As nossas federações estaduais vinculam-se à esta UIAA.

Já a parte
competitiva do montanhismo vincula-se à outra entidade, em nível mundial é  IFSC – International Federation of Sport Climbing (http://www.ifsc-climbing.org/) e no estado de São Paulo,
por exemplo, temos a APEE – Associação Paulista de Escalada Esportiva.

O ponto
importante é que tanto a escalada esportiva, com o seu escalador mais
determinado a ganhar um campeonato, quanto o mais esotérico montanhista que
caminha pelo Himalaia, ambos estão fazendo, de certa forma, Montanhismo !

A APEE
vincula-se à IFSC e também à FEMESP (Federação de Montanhismo do Estado de São Paulo), e esta
certamente apóia as atividades da APEE. Ambas partilham dos propósitos da UIAA,
entretanto, as formas de conduzir ou partilhar a relação com a montanha podem
ser diferentes… Enquanto um preocupa-se com o aspecto competitivo da
escalada, para o outro, isso não possui relevância.

Acredito que tanto
o montanhismo quanto a escalada esportiva possuem  uma profunda natureza cooperativa, onde é
necessário confiança no escalador que lhe dá segurança, onde durante uma
caminhada de aproximação ao cume de uma montanha, partilham-se e divide-se a
carga entre os participantes… O mais forte leva um pouco do peso da mochila do
mais fraco, ao invés de preocupar-se em “chegar primeiro”…  
Existem exceções
? Certamente. E quero crer que elas são pontuais e não corriqueiras.

Escalada é
esporte, mas não apenas isso… Escalada é arte, é expressão corporal, é
estilo, é diversão e porque não… pode ser também competição !

E dados os
conceitos de esporte e arte, e colocando a escalada em cada uma delas a que
conclusão chegamos ? Sinceramente, nenhuma. A escalada pode ser considerada um
esporte e também uma forma de arte, mas o montanhismo sempre é, e sempre será montanhismo,
sem precisar ser encaixado em alguma definição, sendo apenas praticado e
vivido.
 

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Sobre o autor

Davi Marski (In Memorian) Era guia de montanha e escalador em rocha e alta montanha (principalmente nos Andes) desde 1990. Além de guia de expedições comerciais, ele ministrava cursos de escalada em rocha. Segundo ele mesmo "sou apenas mais um cara que ama sentir o vento frio que desce das montanhas". Davi levava uma vida simples no interior de São Paulo e esforçava-se por poder estar e viver nas montanhas. Davi nos deixou no dia 19 de Novembro de 2014.

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