Em Porto de Cima, às margens do rio Nhundiaquara, eu e meu fiel companheiro Rafael Völtz desembarcamos do ônibus que ali nos deixara. O Boa Vista era nosso destino. A montanha que estivera a anos luz de distância, praticamente inalcançável, agora podia ser vista a apenas 1.450 metros acima de nós, deixando o espaço dos sonhos e pesadelos para definitivamente ocupar o lugar dos objetivos possíveis.
Nossa excursão não era gratuita. Tínhamos uma intenção científica na montanha. Precisávamos comprovar quais espécies de canelas nativas ocorriam em suas alturas, quais preferiam o campo e quais a floresta. Apesar do mérito cientifico não havia como negar que nosso coração batia mais acelerado, assim como deve ter acontecido com Joaquim Olimpio e seus colegas 130 anos antes. Em comum a ansiedade em chegar lá e ver com os próprios olhos uma paisagem até então inédita.
Naquela época a maioria dos cidadãos a considerava uma montanha inacessível, mas não pra eles, homens obstinados que ousaram acreditar no contrário. Para nós era inacessível porque havíamos nascido após 1980 e nada mais, o que não nos impediu de sonhar com ela. Na prática o Boa Vista é terra proibida. Um ícone do montanhismo tropical que se tornou uma incômoda vitrine da simbiose entre Homem e natureza. Se uma pessoa fosse capaz de se apaixonar pela paisagem e sentir-se parte dela lutaria por sua conservação e quanto mais conservada mais bela e apaixonante ela se tornaria.
Foi preciso esperar por anos, passar muitos dias reprimindo a vontade de ver a pirâmide derradeira do Olimpo iluminada pelo sol poente. Imaginando como seria o movimento do campo embalado pela brisa invernal e a sombra poderosa da Serra debruçando-se sobre a planície. O caminho escolhido para nos levar do sonho a realidade foi o científico. De uma maneira ou de outra, em algum momento de decisão do rumo de nossas vidas optamos pela ciência, pois ela nos aproximaria das montanhas. Se Carmeliano por sete anos esperou por seu momento de glória, nós também poderíamos esperar.
O Marumbi é uma montanha de muitas faces. O que sempre nos chamou a atenção foram as imagens captadas a partir do Boa Vista. De nenhum outro ponto o Olimpo é tão impressionante. Surgindo a partir do rio Taquaral a vertente noroeste ultrapassa todos os outros cumes, para sozinha buscar um pouco mais de céu, garantindo o lugar de destaque ao mais alto dos oito picos do conjunto.
Mas, ainda estávamos em Porto de Cima e tudo ainda era apenas imaginação. Dali, seguimos pelo antigo calçamento do Itupava estrada acima, retomamos o fôlego em Engenheiro Lange, parando novamente no Marumbi para o almoço. O céu estava totalmente descoberto e a tarde prometia ser perfeita.
Entretanto, antes do próximo passo o primeiro obstáculo, o pressuposto de que todo visitante é um marginal em potencial. Mesmo para um pesquisador é difícil vencer o fantasma do passado, a anarquia que se estabeleceu no Marumbi nos anos 70 e 80 deixou estragos que machucaram a montanha e o coração de quem trabalhou para recuperá-la, mas, assim como a anarquia, a utopia é desnecessária para a proteção da natureza, e pensar que ela permanecerá intocada é tão inútil quanto esperar que ela não toque o coração da geração seguinte, pois no final, todos são herdeiros do sonho de Joaquim Olimpio.
Vencido o obstáculo, era só a trilha e nós, a solidão da floresta e a companhia do rio Taquaral. O Olimpo aparecia entre o dossel sob o céu azul anil. O ar respirávamos com gosto. A altitude sugava um pouco de nossa força a cada passo. O corpo pedia uma pausa e a mente não negava. Certamente o grupo de Carmeliano estava ansioso em descobrir a imagem do Olimpo quando deixasse a floresta. Sem dúvida foi uma jornada fatigante para os conquistadores e pra quem pensou que seria fácil, chegar quase rastejando foi a maneira que encontramos para demonstrar respeito pela montanha. Então o interminável dossel verdejante repentinamente deu lugar a mais bela paisagem, tão sonhada. Enfim, ali estava ele, soberbo Olimpo. Há 130 anos a mesma emoção e a certeza de que é intangível o amor pelas montanhas do Marumbi.
Por alguns minutos ficamos ali, quase sem acreditar na paisagem diante de nós. Seguimos até o cume, desabando de cansaço, a 1.491 metros de altitude. Pra quem partiu de Porto de Cima, visto à direita do Olimpo, o trajeto percorrido é impressionante, praticamente 1.450 metros de ascensão. A natureza cercada pelo sol que mergulhava na América e a lua cheia que emergia do Atlântico, deslumbrante, nos fez pensar que se não tivéssemos essa chance teriam negado um dos mais belos panoramas da Serra paranaense, digno de tal batismo, Boa Vista.
No dia seguinte, percorremos o campo e a floresta, encontramos as plantas que estavam lá como imaginamos que estivessem e, ao olhar com mais atenção a cumeada que compõe a Serra do Marumbi, percebemos uma linha dividindo as montanhas, dessas que costumam dividir o indivisível. De um lado um Marumbi protegido a sete chaves, do outro um Marumbi sem valor para conservação, mas, as canelas vicejam ali também vicejam acolá. Quem olha para a Serra a partir de Morretes, na verdade, enxerga quase nada do parque, então, toda sua grandiosa floresta que se estende por mais de um quilômetro na vertente sudoeste além do campo de altitude não tem o menor valor para conservação, e isso nos incomodou profundamente por estarmos na zona em que estávamos.
Era o mês de agosto de 2009, mas poderia ser qualquer outro. A beleza da montanha não muda e a aura que o envolve não perde seu poder. O balançar do campo e o vôo das andorinhas lembram que a brisa que passa por aqui carrega um encanto para além de qualquer limite. O Boa Vista surgiu para encantar gerações e assim o fará, indefinidamente, afinal, é o coração que não pode ser tocado com desleixo.
Matéria publicada no Iviturui Montanhismo em 17/12/2009.
Marcelo Brotto, colunista do Altamontanha, é presidente do Clube Paranaense de Montanhismo e Engenheiro Florestal.