Cabeça de Boi

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Comentei algumas vezes como existem locais despovoados de gente e ricos em natureza, a pequenas distâncias do progresso das cidades. Cabeça de Boi, a pouco mais de uma centena de km da capital mineira, é um deles, cercado pela mágica beleza das coisas simples.

A vida do bandeirante Romão Gramacho atravessou a maior parte do século XVIII. Ele foi o fundador de Itambé do Mato Dentro, uma dessas regiões pobres e vazias á volta das serranias da região do Cipó. Reza a lenda que todas as noites de sexta-feira de lua cheia o Bandeirante Gramacho corre as ruas da cidade em seu cavalo, fazendo mal a todos que na rua ele encontra.

Gramacho foi naquela época uma figura importante na Bahia e em Minas, envolvido no comércio e na mineração. Fundou ou desenvolveu muitos outros povoados, como Jacobina e Morro do Chapéu, cidades antigas e importantes. Deu seu nome à Vereda da gigantesca Gruta dos Brejões na Bahia. Era um desses homens de Minas espertos e sabichões, no dizer do Conde de Azambuja, e que teria conseguido enganar o próprio diabo.

Como tantas outras localidades em Minas, Itambé foi fundada á busca do ouro, que não se mostrou generoso com a região. Também o minério de ferro resultou escasso, livrando o município dos avanços e das cicatrizes da mineração. Itambé se emancipou de Santa Maria de Itabira muito recentemente, há pouco mais de meio século. Está a 15 km de Senhora do Carmo e 30 km de Itabira, a maior cidade da região.

Localização de Itambé do Mato Dentro

Na realidade, Itambé fica num espaço de muita montanha e de solo pouco fértil. Ela foi sempre pobre e despovoada, hoje possuindo pouco mais de dois mil moradores.

Ao longo da história, cada município mineiro próximo que se emancipava deixava Itambé ainda anexado ao município de que se desmembrara, pois não queria o encargo de cuidar de sua população pequena e distante. O município que afinal sobrou surgiu pequeno, com apenas 38 mil hectares.

E, assim, o progresso nunca realmente chegou a Cabeça de Boi, o principal dos distritos de Itambé do Mato Dentro. Esse nome curioso copiou o da fazenda que lá se estabeleceu um pouco acima do povoado. Foi ela que introduziu a criação de gado na região, então dedicada apenas à agricultura. É uma propriedade modesta e sua sede ainda pode ser avistada, à beira da estrada.

Cabeça de Boi com a Serra das Posses ao fundo e o Bar do Seu Agostinho à frente.

Cabeça de Boi com a Serra das Posses ao fundo e o Bar do Seu Agostinho à frente.

Cabeça de Boi é um arraial minúsculo, que sequer conseguiu recentemente comprovar a residência de 200 pessoas para se candidatar a um fundo oficial, como conta João Dornelas. Dista 10 km de Itambé, por uma razoável estrada de terra. Integra a Estrada Real, que liga o povoado a Morro do Pilar, através de 40 km de um percurso deslumbrante.

Queria lhe falar por um momento sobre um animal por quem tenho grande simpatia: o lobo. Parente do cachorro vinagre e do graxaim, embora se origine do lobo selvagem, nosso lobo guará não anda em matilhas e nem é feroz como aquele. É um animal fino e pernalta, solitário e tímido, com um aspecto triste. Nossos lobos não habitam as florestas, preferem os campos e as serras, onde percorrem grandes distâncias.

Os belos campos de Cabeça de Boi na vertente leste do Cipó,

Os belos campos de Cabeça de Boi na vertente leste do Cipó.

Lobos consomem muitos frutos, cujas sementes eliminam intactas nas fezes, servindo para dispersá-las na natureza – como se fossem jardineiros rústicos. Eles não se reproduzem bem e muitos de seus filhotes morrem cedo. A destruição dos cerrados os está crescentemente ameaçando.

É por isso que cada vez enxergo menos dessas fezes pequenas e coloridas, nas tocas e nas pedras onde os lobos costumam descansar. Desta feita, foi felizmente diferente, afinal encontrei em Cabeça de Boi seus restos depois de tantos anos.

A meu ver, a principal vista da Estrada Real é o arrojado perfil da Serra do Lobo. Lembra-me o Caraça, com sua longa e elevada escarpa dominando os campos baixos. Aliás, as laterais das duas serras têm uma extensão semelhante – a diferença é que o Caraça não tem um formato linear e sim o de uma rara e preciosa ferradura.

Serra do Lobo vista pelo lado de Itambé do Mato Dentro. A corcova da esquerda é o Itambé e a da direita o Itacolomi.

Se a Serra do Lobo não é tão maciça, por outro lado apresenta um desenho único, com a agulha do Itacolomi disputando a primazia com o corpo do Itambé. São duas formações que repetem nomes conhecidos dos mineiros e  que emergem da crista lá no alto, como se fossem picos imaginários assentados em um mesmo maciço.

Sua altitude é até hoje para mim incerta, entre 1.420 e 1.660 metros. Acho estranho terem sido nomeadas a partir das conhecidas montanhas de Ouro Preto e de Serro, o que causa muita confusão.

Não são fáceis as trilhas para o Itacolomi de Itambé, seja pelo desnível da subida, pela verticalidade da serra ou pela irregularidade do solo. A parte baixa dos caminhos cruza os campos abertos do Cipó, através de trechos ora gramados ora rochosos, com um aclive que varia de ameno a abrupto. A parte elevada é naturalmente rochosa, com passagens difíceis e desorientadoras, às vezes estreitas e empinadas.

Alessandra à frente da fenda menor do Itacolomi atrás da rocha.

Você pode subir pelo lado sul de Itambé do Mato Dentro ou norte de Cabeça de Boi. Neste caso, existem duas fendas, sendo a da esquerda mais acessível, foi Pedro Henrique quem me falou dela. A outra me pareceu horrorosa.

O caminho pelo declive da serra a oeste, no sentido do povoado, é vertical e rochoso, atravessado por matacões. Por serem íngremes, não são caminhos longos, com 4 a 5 km de ida, que podem ser percorridos em até 4 horas. Existe ainda a possibilidade de travessia, neste caso ao longo dos 10 km da crista da serra.

Crista da Serra do Lobo com as três corcovas que a tornam tão especial.

Ao pertencer à borda da região do Cipó, você pode ter do alto duas visões diferentes. A leste, você enxergará o mar de morros das regiões mineiras mais baixas, no rumo de Itabira. A oeste, a parede rochosa que abriga no seu interior o conhecido Parque Nacional. E, mais perto, avistará as agitadas serranias das Posses, dos Linhares, da Lapa e dos Alves.

Mas Cabeça de Boi é conhecida sobretudo por suas cachoeiras, nenhuma delas exigindo trilhas longas. Ela é banhada pelo Rio Preto, que atravessa todo o município e flui para o Santo Antônio, na bacia do Rio Doce. Aliás, o nome oficial do vilarejo é Santana do Rio Preto. Esta é a vertente leste do Espinhaço, com um aspecto mais rural do que rupestre e maior presença de mata atlântica do que de cerrado.

Das cachoeiras, há três que me parecem notáveis. A Cachoeira Vitória replica em escala reduzida o Tabuleiro, que é a maior queda de Minas. Dista 4 km do povoado, por estrada cruzada por riachos, que pode se tornar perigosa nas águas – aliás, como os demais acessos.

Tem um impressionante desnível de 65 metros, jorrando como um filete do enorme paredão fraturado que emerge de dentro da mata. Para mim, foi o espaço, mais do que a água, que me encantou.

O Intancado está a 6 km e abrange um conjunto de quedas e poços. Ele é assim chamado devido à parede que envolve as águas do Rio Preto, como se fosse de fato um reservatório. Ao lado, a Cachoeira do Chuvisco é delicada e graciosa, parece obra de um sonho. Acima, a Cachoeira da Maçã flui por dentro de um curto cânion de paredes estriadas, numa visão estupenda.

Mais alto ainda fica a Cachoeira dos Macacos, com sua queda bucólica e seu par de poços. Existem ainda outras quedas, poços e corredeiras, que tornam a região muito procurada – portanto, cuidado com a muvuca.

A Cachoeira Vitória surge como um filete d´água acima de mata e do penhasco.

Cachoeira da Maçã no Intancado de Cabeça de Boi.

 

 

 

 

 

 

Mas talvez a Serenata seja a mais esplêndida das regiões banhadas pelo Rio Preto. Seu acesso, a 9 km do arraial por estrada um tanto irregular, percorre lajedos num ambiente amplo e aberto. À direita, você visitará o pequeno cânion, com caldeirões por onde a água jorra.

A Cachoeira dos Macacos se precipita num ambiente bucólico.

O pequeno cânion acontece antes das quedas da Serenata.

 

 

 

 

 

 

À esquerda, a modesta cachoeira, da qual existem duas quedas que banham pequenas praias fluviais. O vale é contornado por encostas com uma frondosa vegetação arbórea, que contrasta com a aridez das lajes rochosas.

Assim como a Cachoeira do Lúcio fica no caminho da Vitória, a do Funil fica no da Serenata. Existem ainda outras quedas, bem como um interessante paredão com pinturas rupestres, em especial um veado na cor sépia, num raro e belo estilo naturalista.

Pintura rupestre de veado junto com peixes.

E, quando você retornar cansado ao vilarejo, não deixe de escutar a viola caipira acompanhada pela voz desafinada de Seu Agostinho, no bar que leva o seu nome. O frio e a noite descem cedo no povoado, convidando você a longas horas de sono, a fim de prepará-lo para as belezas do dia seguinte.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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