Caboclo e a Dura Preservação das Araras

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Conheci nas minhas andanças pelo interior do país dois baianos especiais, no sentido em que ajudaram por seus esforços próprios e continuados a proteger a vida que os cercava.

Conheça Caboclo e Zélis, dois personagens que se expressam por alcunhas, pois nenhum deles foi batizado assim. Na verdade, foi a vida que assim os nomeou.

Caboclo está no norte e Zélis no centro da Bahia. Ambos se dedicaram a uma importante obra de preservação do ambiente, por inspiração de seus pais, que quando em vida foram ativos em persegui-la.

Os dois pais tiveram a alegria de vê-las consumadas e os filhos, o orgulho de até hoje poder continuá-las.

Caboclo lutou para preservar uma espécie ameaçada de ave. Zélis lutou pela proteção de um território invadido. Os dois estão vivos, são homens maduros – tive a felicidade de conhecê-los e o privilégio de compartilhar suas histórias. Que vão aqui narradas.

Caboclo e a Dura Preservação das Araras

Bem, vou lhe falar da arara azul de lear. Seu desenho inaugural veio do ilustrador inglês Edward Lear, no seu livro de 1830 – ele a figurou pousada num galho. Foi o primeiro artista de renome a fazer seus desenhos baseados em pássaros vivos. Então, o nome da arara foi uma merecida homenagem a este artista tão talentoso.

A arara de lear propriamente só foi descrita em 1856 pelo francês Charles Lucien Bonaparte, a partir de dois animais da mesma espécie: um empalhado no Museu de Paris e outro vivo no zoológico de Amiens. Mesmo assim, continuou como uma ave suspeita, devido à sua escassez.

A primeira ilustração da arara de lear que aparece no livro de Edward Lear.

De fato, esta arara permaneceu por quase um século como um enigma da ornitologia, pois não se conseguia avistá-la na natureza. Ao longo do tempo, porém, foi sendo capturada em terras distantes e trazida para os museus, jardins e coleções da Europa – como sempre, ávida pelas exóticas espécies de que não dispunha.

Era considerada provavelmente uma variação ou um híbrido. Por exemplo, ainda em 1965 o holandês Karel Voous considerou que ela não existia, seria uma variante de uma arara grande do Pantanal. Nem se sabia com segurança de onde vinha. Quem sabe até fosse extinta.

Você também já leu neste livro (espero eu) sobre Helmut Sick, o naturalista alemão que decidiu permanecer no país após uma expedição malograda de seu chefe. Chegou a ficar preso durante a II Guerra, como tantos outros estrangeiros inocentes no Brasil. Realizou sem sucesso diversas viagens para localizar a misteriosa arara de lear.

Durante dezesseis anos e talvez dois mil km, ele a procurou erroneamente ao longo do Rio São Francisco. Como aliás foi o caso do pesquisador Olivério Pinto, que um dia a achou numa fazenda de Juazeiro (PE), no semiárido do São Francisco.

Helmut Sick em 1974, cinco anos antes de sua descoberta da arara, nos sertões do Raso da Catarina (BA).

Até que, na sua última excursão, quando já sentia fortes dores pelo corpo, Sick pôde finalmente encontrá-la. Logo depois, desligou-se do Museu Nacional onde havia longamente trabalhado e publicou em 1985 o seu grande livro sobre as aves brasileiras. Faleceu no Rio de Janeiro em 1991, sendo considerado o maior ornitólogo do país.

Em fins de 1978, Sick encontrava-se em Salvador, pronto para retornar ao Rio, depois de mais uma busca infrutífera pela arara de lear. Comentou a respeito com um motorista, que era nativo de uma das vilas próximas ao Raso da Catarina. Ele lhe disse que o pássaro habitava de fato a região e, para seu espanto, chegou reconhecê-lo nas fotos que Sick mostrou.

No início de 1979, Helmut Sick retornou de imediato à região e buscou informações com Maninho, o mais conhecido caçador de aves dali. Foi então introduzido ao fazendeiro Elizeu Pereira Alves, que era um apreciador de pássaros. Elizeu criava gado na Fazenda do Rosário, tinha grande conhecimento de toda a região por ter sido garimpeiro e levou Sick até os sofridos paredões avermelhados de Canudos, de onde seria possível avistar as araras.

O arenito fraturado e avermelhado da Toca Velha em Canudos.

O arenito esbranquiçado da Serra Branca de Jeremoabo.

E, de fato, Sick pôde contemplá-las maravilhado no interior do cânion da Toca Velha, um amplo penhasco rústico e cênico num arenito desgastado. Num dos locais mais brutos, escondidos e maravilhosos do sertão estava o tesouro daquele mapa enigmático, diz Gustavo Nolasco.

Mas era necessário capturar um exemplar para pesquisa, o que só foi possível na fantástica Serra Branca, já no interior de Jeremoabo, num jardim encantado, uma espécie de portal sul do Raso. E, desta vez, Sick retornou entusiasmado para seu trabalho no Museu Nacional.

Passado um ano, Elizeu foi informado de que havia duas vagas abertas por uma ONG privada para os trabalhos de preservação das araras de lear. Junto com um colega, ele foi contratado, passando depois a atuar pelo IBAMA quando a Estação (então Reserva) Ecológica do Raso da Catarina foi criada em 1984.

Mesmo antes da expedição de Helmut Sick e em especial a partir dos anos de 1980, Elizeu já acompanhava aquelas araras que tanto apreciava. E ele tinha a companhia de seu filho Eurivaldo Alves, então com cerca de dez anos, que veio a seguir com o pai de Rosário para Canudos.

O Cânion da Toca Velha em Canudos, com a Serra de Cocorobó ao fundo.

Eurivaldo é chamado de Caboclo, talvez por seu jeito rústico, talvez por seu sangue cariri. Há quarenta anos Caboclo se dedica à preservação dessas aves tão especiais, junto com seu irmão Dorico. Quando você fala com ele, vislumbra que isso não é um emprego ou profissão, é um destino ou missão.

Infância sofrida no sertão sem água, tendo a rigidez do pai como escola, Dorico e Caboclo apanharam gosto por colocar caçadores para bem longe do voo do bichinho azul, escreve Gustavo Nolasco. Do topo dos paredões, desciam como corisco, seguindo as trilhas nas pedras para destruir cordas, escadas e redes deixadas às pressas pelos invasores.

Isto significa basicamente a fiscalização da área contra invasores e caçadores, bem como a educação ambiental do povo da região. Não só para evitarem capturar ou matar as aves, mas também para preservarem seu alimento predileto, os cachos de coquinhos da palmeira licuri.

Pois não é só pela caça que morrem as araras, mas também pela fome. E também pelo vento, agora que as torres eólicas ameaçam a região, aliás, como todo o Nordeste. Caboclo e Dorico vão ter de continuar essa dura luta por longo tempo.

Os paredões areníticos da Toca Velha, que eram escalados pelos traficantes de aves.

As pequenas araras acordam todas as madrugadas de suas tocas e vão buscar alimento em locais tão distantes como Sento Sé, a Gruta dos Brejões, Campo Formoso ou o Boqueirão da Onça.

Aliomar Almeida conta (levemente resumido) que elas saíam em bandos, passavam por nós e seguiam em busca de alimentos. Um espetáculo grandioso e azul. Aquilo tudo me deu uma emoção, que julgava ser somente minha, até que olhei a meu lado e vi que meus guias, meninos nascidos ali naquelas terras, ainda se emocionavam, talvez por saberem da responsabilidade para proteger aquele santuário. Faço minha a emoção de Aliomar.

Em 1989 um grupo de ativistas ambientais mineiros criou a ONG Fundação Biodiversitas, para a proteção da fauna e flora brasileiras. Ao longo de 25 anos, implantaram quatro reservas naturais, para a preservação das araras de lear, do macaco muriqui, do pássaro entufado baiano e do cágado (tartaruga) de hogei.

A Biodiversitas participa de conselhos e comitês, mantém convênios, desenvolve projetos, realiza educação ambiental e opera suas reservas particulares. Conta com um robusto conjunto de apoiadores como Petrobrás, American Bird Conservancy, Boticário, Vale, Birdlife International, Anglo e Cemig.

Arara azul de lear.

Macaco muriqui.

Entufado baiano.

Cágado de hogei.

Em 1992, iniciou seu primeiro programa de proteção, através de compra de área em Canudos – a  Reserva Biológica de Canudos. Nela trabalharam Elizeu Alves e seu filho Caboclo, o primeiro até 1993, cinco anos antes de seu falecimento. Posteriormente, Caboclo adquiriu uma grande área e anexou-a à Reserva em 2007 – ela é cerca de um terço do total.

Marcos na História da Biodiversitas

1989      Criação da Biodiversitas por um grupo de ambientalistas de MG

1992      Criação da Reserva Biológica de Canudos – arara de lear

1990      Publicação Lista Vermelha da Fauna Brasileira

1994      RPPN Mata do Sossego, Simonésia (MG) – macaco muriqui

1998      Publicação do Atlas da Biodiversidade de Minas

2000      Publicação da Lista Vermelha da Fauna de Minas

2007      Ampliação da Reserva de Canudos

2009      RPPN Mata Passarinho, Vale Jequitinhonha – entufado-baiano

2011      Criação do Corredor Ecológico Sossego Caratinga

2014      Ampliação da Reserva Mata do Passarinho

2016      RPPN Ninho da Tartaruga, Tombos – cágado de hogei

2018      Portaria sobre o BAZE, sítios que abrigam espécies em extinção

 

Caboclo é uma pessoa objetiva e reservada, que prefere o trabalho no campo ao convívio social. Continua fazendo o que gosta: criando gado e observando araras. Embora seu filho Miguel conheça a Toca Velha, Caboclo nunca o levou para avistar as suas araras. O meu futuro é continuar do jeito que estou, não quero mudar nada, conta. Ele ajuda a manter a estrutura física da Reserva e a conduzir seus visitantes.

Elizeu Alves é visto na década de 1980, com seu uniforme da SEMA, anterior à criação do IBAMA.

Eurivaldo Alves, o Caboclo, retratado na década de 2020.

Seu irmão Dorico comenta que é um grande privilégio ver as aves voando livres nesse céu azul e poder pedir às pessoas que as amem e protejam. E Caboclo diz: É um legado que vou deixar. É importante e gratificante. Espero que essas aves possam sobreviver.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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