O Henrique (Vitamina) Paulo Schmidlin sempre contava de um avião pousado sobre as árvores da Serra do Mar cujos ocupantes milagrosamente escaparam com vida depois de ralar por longos quatro dias perdidos na mata até que me interessei em documentar esta história de superação, mas as informações eram escassas. Na pesquisa recorri aos conhecimentos de Eliel Kael, piloto e entusiasta da aviação, que vasculhando sua biblioteca me presenteou com a história pronta na caneta do Comandante Adil Calomeno.
Um pouso na copa da árvore
Numa tarde de primavera, o céu de Curitiba estava parcialmente nublado, a Serra do Mar encoberta, mostrando apenas as bases das montanhas.
O piloto Bil, proprietário de um pequeno monomotor Piper PA-20, fora procurado por um empresário americano que pretendia ir a Paranaguá. Com pouca experiência, Bil consultou outros dois pilotos, Luiz e Wilson, que ali se encontravam, pois ele não era habilitado para voos por instrumentos e nem o avião estava equipado para este tipo de voo.
– O que vocês acham? Será que dá para transpor a serra por cima da camada?
A resposta de Luiz foi incisiva.
– É muito arriscado, porque a camada de nuvens sobre a serra poderá se estender até o mar.
Wilson, mais otimista aventou a hipótese de que a camada estaria cobrindo apenas a serra. Dali em diante estaria aberto até Paranaguá.
Bil os convidou para acompanha-lo e pediu ao passageiro que tomasse o acento traseiro, juntamente com um dos pilotos. O outro, veterano com mais experiência, sentou-se à direita. Após a decolagem, o avião ganhou altura suficiente para ultrapassar a serra. Além da serra, o colchão de nuvens se estendia por todo o litoral. Na esperança de encontrar algum “buraco”, navegaram no topo até Paranaguá. Nenhuma abertura se lhes apresentou, embora tivessem voado em círculos à procura de alguma passagem.
Resolveram retornar. Mas, no retorno, perceberam que a região de Curitiba, também já estava encoberta. Joel encorajado com a presença dos outros dois pilotos continuou procurando alguma forma de descer, porque julgava que teria ultrapassado a serra. Viu uma abertura pela qual passou rapidamente.
– É aqui que eu vou descer – disse Bil, ao mesmo tempo que efetuava uma curva descendente de grande inclinação.
O piloto Luiz, que estava a seu lado contestou:
– Eu não vi nenhuma abertura.
Mal terminou de falar, o avião entrou em voo cego.
– E agora, o que é que eu faço? O avião só tem bussola, “pau e bola” e eu nunca fiz voo cego! – Gritou Bil, assustado.
Luiz não poderia assumir o comando porque não havia manche no lado direito, mas orientou Joel, pedindo-lhe que se mantivesse calmo, nivelasse o avião e seguisse em voo reto. Na realidade estavam voando entre as montanhas, na parte mais perigosa da serra. O avião tangenciou as copas das árvores mais altas e foi decepando galhos e folhas até parar bruscamente na copa de uma delas, a mais de vinte metros do solo.
Na primeira batida, Luiz cortou rapidamente os magnetos, fechou a torneira de gasolina e tratou de defender o rosto com as mãos.
Naquela posição, pendurados no alto, viam o solo encoberto por folhas e galhos podres. Luiz foi o primeiro a sair do avião, descendo por um cipó, que providencialmente ali estava a sua espera.
O passageiro, pesando mais de 100 quilos, tentou descer escorregando pelo tronco, mas não teve o mesmo êxito, despencou lá de cima enterrando-se na espessa camada de húmus que cobria o chão. Os outros dois desceram com muita dificuldade, porque Bil havia batido com o nariz no painel e Wilson, não estava ferido, mas havia tomado um banho de gasolina do tanque que se rompeu sobre sua cabeça.
Desorientados, seguiram pelo mato à procura de alguma estrada ou rio que os levasse até alguma casa ou povoado. Durante quatro dias e quatro noites perambularam pela densa floresta, seguindo um pequeno riacho, que era a única maneira de se locomover pois a mata densa e o espesso colchão de húmus e madeira podre impediam o movimento. O leito do riacho forrado de seixos rolados os levava para os níveis mais baixos da serra. Ás vezes, as cachoeiras eram tão íngremes, que para desce-las havia necessidade de escorregar, de barriga contra o chão, agarrando-se nos ramos dos arbustos ribeirinhos. O americano, muito gordo, descia escorregando de costas.
Ele não se abalou muito com o acidente, pois enquanto os outros se preocupavam em encontrar uma saída daquele matagal, ele juntava pedrinhas no leito do riacho.
A chuva, o frio e a fome os levaram ao desespero. Por vezes tentaram fazer fogo queimando os projetos que o americano levava na pasta, mas a madeira molhada não queimava. Para dormir escolhiam pedras maiores onde se acomodavam como podiam.
No terceiro dia, Wilson e Bil subiam em árvoreas altas para ver se viam alguma casa. Nada viam a não ser floresta para todos os lados. Encontrando uma clareira, onde havia um morro com pouca vegetação, Wilson escalou-o pela encosta atingindo o ponto mais elevado. De lá avistou uma pequena casa de madeira. Continuaram descendo pelo riacho até que encontraram a casa, onde foram atendidos pelo seu proprietário. Este lhes preparou uma refeição; arroz, carne de tatu e ovos fritos. Ninguém conseguiu comer. Estavam exaustos, com muita fome, molhados, com as roupas rasgadas e sujas, mas não tinham apetite. Já estavam tendo alucinações. A todo momento um deles se desesperava enquanto os outros, providencialmente o acalmavam. Aquela refeição preparada com tanto esmero pelo caboclo parecia algo intragável.
Naquele mesmo dia um menino os acompanhou até a casa de uma família alemã. A dona da casa os recebeu e tratou como se fossem seus próprios filhos. Lavou-lhes os pés, conforme tradição familiar, preparou-lhes café com bolinhos de graxa e os acomodou em camas macias com cobertas de penas de ganso. No dia seguinte, foram transportados de carroça a Paranaguá, de onde retornaram a Curitiba.
Mister Paul, embora fosse extrovertido, por diversas vezes atirou no mato a sua pasta contendo projetos, documentos e muito dinheiro. Seus companheiros traziam-na de volta, dizendo:
– Não jogue sua mala fora, nós o ajudaremos a carregar. O senhor vai precisar dos documentos e dos dólares.
O americano, apesar dos ferimentos que sofreu, sentiu-se recompensado com suas pesquisas geológicas e considerou o episódio como “A wonderful adventure in brazilian forest”.
Quanto ao texto e as informações
O texto principal é do Comandante Adil Calomeno, natural de Curitibanos – Sc e com vida acadêmica e social em Curitiba, entusiasta do voo comandou o Aeroclube do Paraná na gestão 1985/87 escrevendo os livros “História do Aeroclube do Paraná” e “Vivos por Acaso” de onde transcrevi este texto. Certamente obteve as informações diretamente dos personagens envolvidos, Luiz Zanon e Wilson Krukowski, mas focou principalmente nos detalhes de seu interesse imediato.
Por sorte o Comandante Zanon também relatou o caso para o Vitamina, que mais interessado nas nuances da serra, adicionalmente memorizou que alcançaram o Rio Sagrado e foram resgatados pela Estrada da Limeira, na época conhecido ainda como Trilha do Telégrafo. Importante detalhe para limitar a área do acidente, que por mais tentativas que foram feitas até pelo próprio Zanon, jamais foi encontrado a aeronave que ainda descansa sobre as árvores.
Importante lembrar que em 10 de novembro de 1950 não existia ainda a BR 277 e suas derivações. Desciam a serra apenas a Ferrovia, a Estrada da Graciosa e a Trilha do Arraial em continuidade a Estrada da Anhaia levando a Morretes por um lado e do outro a Trilha para Castelhanos e Porto Cubatão no fundo da Baía de Guaratuba. No sentido Norte-Sul havia a Trilha da Ambulância que se conectava a Trilha do Telégrafo de um lado da Serra da Prata e do outro a Estrada do Aibolt ligando Alexandra a Porto Parati com traçado, até certo ponto, paralelo a atual Alexandra-Matinhos.
A informação valiosa é que descendo das árvores, seguiram por um riacho até próximos a Estrada da Limeira e foram levados de carroça a Paranaguá. Caso colidissem na face Norte do espigão da Serra da Igreja, que acompanha a BR 277, inevitavelmente tenderiam na direção do Rio do Pinto e sairiam por Morretes no final da Estrada da Anhaia. Se colidissem mais ao Sul, os riachos os levariam ao Rio Canasvieiras, a Trilha da Ambulância e a Trilha do Telégrafo onde provavelmente seguiriam em canoas para Guaratuba. Mais ao Sul entrariam na calha do Rio Panelas com o mesmo destino. Para chegarem no Rio Sagrado, serem atendidos por imigrantes europeus e levados por carroça a Paranaguá o acidente provavelmente ocorreu nos morros que antecedem ou na própria encosta do Pico X onde os riachos correm para o Rio Canhamborá ou diretamente ao Rio Sagrado.
Outro detalhe interessante são árvores de 20 metros que só ocorrem até os 100 ou 200 metros de altitude, mas há de se descontar o pânico da ocasião reconsiderando-as para 5 metros que alcançam os 700 ou 900 metros nos vales mais profundos onde ainda podem existir cipós. Os 3 dias de caminhada se justificam pela desorientação inicial somada a pouca habilidade de caminhar no ambiente serrano em riachos encachoeirados.
Duas passagens saltam aos olhos em toda esta epopeia. Primeiro que basta encontrar partes diminutas das cédulas dos dólares americanos, onde se possa identificar os números de série, que o Federal Reserve através do sistema bancário, imediatamente e sem perguntas as trocarão por cédulas novinhas em folha. Segundo que o passageiro americano com 100 kg ou mais era geólogo e mesmo nesta enrascada, exausto e perigando de morte por inanição, dedicava esforço e tempo para colecionar pedrinhas que encontrava no leito dos riachos. Sabemos que na primeira metade dos anos 1990 a Construtora Triunfo explorava uma mina de ouro no terço final da subidona de 7 Km na Estrada da Limeira que se inicia pouco à frente da entrada da Trilha do Prata.
Entendedores entenderão.
O PIPER PA-20
É parte da família americana de aeronaves monoplano de asa alta com suporte leve construído pela Piper Aircraft de 1949 a 1964 com quatro assentos, trem de pouso convencional, motor Lycoming O-290-D de 125 hp, com flaps e um manche de controle em vez de uma alavanca central, fuselagem de tubos de aço e uma asa de alumínio coberta com tecido laqueado. Valorizados por sua robustez, cabines espaçosas e, para a época, velocidade impressionante.
2 Comentários
Belo artigo!
Suponho que o bravo Julio Fiori esteja montando (se é que já não montou) uma expedição à Estrada da Limeira. Será acho eu um homem rico, pois não deixará de encontrar as pepitas de ouro que o geólogo americano deixou para trás.
Se servir de inspiração, conheço sim uma Estrada da Limeira na Serra do Mar, mas fica em São Paulo, acima da badalada Praia de Maresias. Se Fiori não achar o tesouro lá, pode tentar aqui, me candidato a ser seu guia, mediante uma modesta parte do tesouro.
E, se não achar o ouro aqui, sempre vale um banho de mar.
Alberto, me canditado a tal empreitada. Basta me convidar e marcar o dia. Claro, mediante a uma pequena parcela “de pequenas pedras”…