Muitas pessoas no próprio Plata me advertiram sobre os riscos de uma escalada sozinho por ali, pois o local era inóspito e provavelmente eu não encontraria ninguém nos dias em que estivesse na montanha. Porém, antes de chegar a montanha era necessário passar pela cidade. Então Barreal era meu objetivo. Entre os dois caminhos possíveis eu optei pelo mais longo, que passa por San Juan e dá uma volta tremenda. Mesmo assim peguei estradas horríveis, com muita pedra no asfalto, que me faziam imaginar que a alternativa mais curta deveria ser realmente intransitável. Mais tarde descobri que um rio atravessa esse atalho e por aqueles dias estava bem cheio, algo como até metade da porta de uma cabine dupla.
Barreal é uma cidade tão pequena que passei por ela sem querer e tive que voltar. Perguntei para alguns cidadãos onde tinha um camping, mas meu GPS tinha um ponto que me chamou a atenção: camping barato. Fui direto pra lá. O camping tinha chuveiro quente, piscina e custava cerca de 2 reais a diária. Era esse mesmo.
Logo na chegada o responsável pelo camping pediu pra tirar uma foto comigo, fez uma grande festa, me pediu pra assinar o livro de presenças, onde parecia que só gringos assinavam. Eu era uma presença ilustre no local.
Fui pro centro comprar o que precisava pensando em ir pra montanha no dia seguinte. Estava bem aclimatado e bem disposto e além de tudo o tempo estava bom, coisa que por esses lados não é de se desperdiçar. Mas Barreal era tão bonito, com um lindo céu, e a piscina tão gostosa que acabei ficando três dias. Claro que o camping barato me motivou a ficar por lá.
Quando já estava com tudo arrumado pra ir pra montanha, fui pagar o camping e o responsável se recusou a cobrar. Disse que ficava pela foto. Eu fiquei desconsertado com tanta gentileza. Eu havia sido muito bem tratado na cidade, no camping, em todos os lugares e o cara não ia nem me cobrar por ter ficado no camping. Eu pensava sobre a rivalidade entre argentinos e brasileiros e não acreditava naquilo. Então, na minha insistência em pagar ele disse que aceitava ao invés do pagamento uma pedra do cume do Mercedário. Aceitei o desafio e parti pra montanha.
Eu esperava que o caminho tivesse um pouco de asfalto e depois um pouco de terra, mas não foi bem assim. Logo na saída da cidade já é preciso entrar a direita e é só chão de terra. Aliás, não é chão de terra, mas chão de pedra. A base da estrada ali era pedras um pouco maiores que brita comum, com areia. Muito traiçoeiro. Eu, como não queria de jeito nenhum cair, fui a vinte por hora. De moto a uns três ou quatro mil quilómetros de casa tudo que não poderia acontecer era um osso quebrado. Estragaria a escalada.
Eu estava com um par de alforges bem cheios e a mochila nas costas, que ia apoiada no banco do garupa, mas o que a impedia de cair era que estava presa em mim. Na estrada de asfalto tudo bem, mas ali ficava horrível.
Eu fiz então uma conta de padaria e vi que teria 70 quilómetros pela frente. Na velocidade que eu estava demoraria muito tempo. E aquela parte, segundo relatos, era a mais fácil. Comecei a acelerar e percebi que tinha uma velocidade, trinta e sete quilómetros por hora, que era meu máximo. Eu queria ir mais rápido, mas sempre que olhava para o velocimentro aquele número me acompanhava.
Então, não sei de onde, baixou um piloto do rali Dakar em mim. Meti setenta num retão que deu medo. Mas logo percebi que o medo era a única coisa que me impedia de seguir rápido. Em estrada de terra eu sempre fui com muita cautela, que na verdade era um medo, agora superado. E não é que deixei aquela tensão do começo que deixava meus braços duros para trás. Então vieram as curvas.
É claro que eu ia curtindo tudo. A paisagem. O riozinho. A pedra grande sobre a pedra pequena que me fazia perguntar “Quem colocou ela ali?”. Tudo.
Cheguei na sede de uma mineradora da região, que tinha uma cancela onde era preciso parar para se registrar. Havia uma placa que autorizava somente a pasagem de veículos com tração nas quatro rodas. Mas o meu veículo sequer tinha quatro rodas. Fiquei com medo de ser barrado e fiz tudo o que precisava falando o menos possível. Passei.
Depois da mina havia uma ponte que nunca vi igual. Não parecia, a vista, perigosa. Mas era. As madeiras que formavam o assoalho pareciam estar soltas e a cada centímetro avançado pela roda eu tinha certeza que ia cair tudo. Quando terminei de passar, parei a moto e olhei para trás, como quem não acredita que está do outro lado. Mal sabia eu que aquela era a parte fácil.
Depois da mina a estrada não ficava mais difícil, mas traiçoeira. Um monte de areia aqui, uma pedras ali. Outra vez uns cavalos na pista. Eu seguia com cuidado, sem no entando imaginar o que me esperava. Se me avisassem em Barreal o que estava por vir eu não teria seguido. Se me avisassem na sede da mina o que estava por vir eu teria voltado. Leio entçao uma placa que falava sobre o perigo do nível do rio nos dias de cheia. Então eis que me deparo com um rio, só que sem ponte.
Desci da moto, coloquei a mochila de lado e me desesperei. Subi num monte de pedras a direita, olhei pra cima e pra baixo: nada de ponte. O nível nem era tão alto, a primeira vista, mas a correnteza estava forte. Então, como alguém que sabia o que estava fazendo, peguei uma pedra, grande, e atirei ao rio para tentar ver se era fundo. Ao invés da pedra ir para o fundo do rio foi levada pela correnteza. Ali, onde eu estava, não dava pra voltar. Então apertei bem a mochila, subi na moto e entrei de frente.
A correnteza, quando bateu na moto, subiu e me molhou inteiro. Isso inclui bota, que é impermeável a não ser que voce entre num rio com ela. Eu só lembrei quando já estava do outro lado com muita água. Nem parei pra secar, segui ao meu objetivo.
Eu não sabia, mas como aquele ainda haveria mais sete rios pra atravessar. Na verdade era apenas apenas um rio e não era ela que cruzava, mas era cruzado pela estrada, forçada pela geografia acidentada do local. Porque até antes do rio o caminho não tinha tanta inclinação e depois ficou bastante difícil passar da segunda marcha. A altitude não possibilitava minha moto de duzentas e cinquenta cilindradas funcionar corretamente e houve alguns momentos que altitude, inclinação e solo me inpediram de prosseguir. Então tive que descer, deixar a mochila num canto e, desmontado da Manu (o nome da minha moto), ajudar o motor empurrando ela pra cima.
Depois que cruzei o riacho pela última vez avistei o abrigo. Ou pelo menos o que sobrou dele, já que era uma casa abandonada que, se fosse em São Paulo, estaria dominada por mendigos e crackeiros.
Eu fiquei particulamente com medo de deixar minha moto ali e sair pra não sei quantos dias de escalada, mas logo achei um ferro chumbado no chão e a prendi. A segurança era apenas psicológica, mas me permitiria partir em direção ao primeiro acampamento.
Quando eu estava saindo chegaram quatro muleiros que me disseram que não havia problemas em deixar a moto ali, que era seguro. Pensei ainda que se eles fossem me roubar não me diriam algo diferente, mas mesmo assim parti.
Eu havia copiado um planejamento do Don Mercedário, um guia que faz a expedição em dezessete dias, e o trajeto que eu estava fazendo deveria demorar seis horas. Saí de Laguna Blanca com uma papete e a bota pindurada na mochila, esperando que secasse. Depois de quinze minutos sofrendo com as pedras pelo caminho, decidi colocá-la, mesmo molhada.
Cheguei então em Guanaquitos, o primeiro acampamento. Havia ali quatro pessoas e eu estava um tanto cansado, não sei se pelo ritmo rápido com que subi ou se pelo caminho feito de moto. Pensei por um instante em seguir para o próximo acampamento, mas fiquei por ali. Montei minha barraca e fui papear com os hermanos. Havia um deles, o Aníbal, que vivia no Brasil há alguns anos, trabalhando como fotógrafo. Ele ficava entre falar espanhol porque estava com os amigos e falar português porque estava falando comigo. No fim das contas nos entendemos.
O grupo tinha muita coisa, tendo contado inclusive com o apoio de mulas. O porém é que dali pra frente iam ter que ficar porteando coisas, o que na minha opinião era desnecessário. Eu penso que se levar comida pra quinze dias, vou ter que ficar quinze dias, porque dá muito trabalho carregar tudo pra cima. Na verdade aquele seria o meu sexto cume em alta montanha e eu nunca levava nada que não pudesse levar numa mochila. Mas eles queriam, na verdade, passar mais tempo na montanha. Eles tinham caixas cheias de coisas, e na noite em que passamos juntos pude comer macarrão com molho de brócolis junto deles. Claro, usando a tática do Davi Marski de aceitar tudo que me ofereciam. Foram uma companhia bastante agradável.
No dia seguinte acordei tarde e não fiz nada a manhã toda. Decidi, talvez na onda dos argentinos, curtir a montanha. O sol ali era gostoso e fiquei um tempo sobre uma pedra tentando terminar um cubo mágico que tinha levado para me distrair. É claro que não consegui. Os quatro foram portear coisas pra um acampamento chamado Piedras Coloradas enquanto eu cozinhava meu café da manhã meio-dia.
Depois de enrolar muito minha ansiedade me forçou a desmontar acampamento e subir. Já eram duas horas quando saí e queria chegar até um acampamento chamado Salto de Água. Porém, como andei rápido, em tres horas cheguei num outro acampamento mais acima, o Cuesta Blanca.
Esse acampamento parecia um beco sem saída. O tres lados, com excessão de onde vim, tinham paredes gigantes. Eu não imaginava como ia prosseguir com uma cargueira bem pesada dali. Fui dar uma checada no local e achei um pacote de macarrão e um de arroz. Os dois de qualidade, com molho em pó. O macarrão foi meu jantar e o arroz ficou pra uma emergência. Acho que os deuses da montanha tinham gostado de mim e até me davam oferendas. Ou seria uma isca?
Dormi ali e só acordei no dia seguinte com o sol me fritando dentro da barraca. Levantei tudo muito rápido e subi morro acima. O pior nesse dia foi começar subindo uma inclinação muito grande. Não pude nem aquecer e já estava no limite do esforço. Mas eu me sentia forte e o tempo estava ao meu favor.
Desde que eu havia chegado à montanha o tempo estava muito bom e eu me sentia um privilegiado. Seria uma peça que a montanha estaria pregando em mim ou eu era mesmo um cara de sorte? Eu tinha comigo um relato do Marcelo Delvaux que um ano antes havia tentado escalar a mesma montanha. Após alguns dias de tempo bom pegou uma nevasca de quatro dias e acabou voltando pra casa sem o cume. Sabia que quando o tempo virasse seria por um bom tempo e o cubo mágico não seria capaz de me entreter por mais que um ou dois dias, por isso meu planejando era chegar em Pirca de Índios, a 5100m, e de lá sair para o cume na madrugada seguinte e para isso eu não podia tardar na caminhada. Mais uma vez a programação que eu seguia previa seis horas, mas a custo de qual esforço eu chegaria na metade do tempo?
Então ao meio-dia cheguei ao acampamento e para minha surpresa havia ali dois alemães. De onde raios eles tinham saído? Soube que eles estavam por ali há duas semanas e no dia anterior teriam feito um ataque ao cume sem sucesso. Chegaram até 6400m e voltaram. Eu os disse que naquela altitude era mais difícil descer do que subir, mas eles me disseram que tinham filhos esperando por eles. Cada um dá a justificativa que acha conveniente. De repente eles trocaram algumas palavras no idioma nativo e me disseram que estavam descendo, não sei se incomodados com a minha presença. Melhor pra mim, que ficava com um bom lugar para armar a barraca.
Cozinhei alguma coisa pra comer, que ficou bastante gostosa e me deu calorias para o dia seguinte. Eu sabia que dali pra frente ficaria difícil comer qualquer coisa por isso era importante que aquela refeição fosse pesada. A diferença de altura pro cume era de cerca de 1600m, tal qual o Cerro Plata. Porém esse cume estava quase 800m acima do nível dos 6000m. Pode até parecer exotérico, mas essa barreira é importante. Acima desse nível o frio, a falta de oxigênio e os ventos tornam qualquer escalada muito difícil. Eu ainda não sabia disso e estava encarando tudo como se fosse mais um Cerro Plata.
Aquele final de tarde na montanha foi inesquecível. Eu sabia que de todos os possíveis lugares no mundo era exatamente ali que eu deveria estar. A solidão não me aplacou em nenhum momento e eu acabei fazendo uma cadeira de praia com pedras onde pude tomar os últimos raios de sol na pele sem camiseta. Não sei se o sol era forte, o vento fraco ou se minha alegria emanava calor. Eu coloquei as músicas do MP3 modo aleatório e fui surpreendido por uma canção. No Chile, enquanto fazia trabalho voluntário, um amigo quis trocar umas música comigo. Eu passei Los Hermanos, Arnaldo Antunes e Engenheiros do Hawaii. Em troca ganhei Pedro Guerra, Jorge Drexler e Fito Páez. Então começou a tocar uma música que eu não conhecia mas que me arrancou lágrimas naqueles instantes felizes.
quizá una canción de amor
quizá una historia de piratas
quizá el recuerdo de un dolor
quizá la ilusión de Dios
quizá un sonido de campanas
quizá un recado una oración
quizá sea el lobo feroz
una escalera de palabras
la leve estría de un temblor
quizá sólo un resplandor
el llanto seco de la rabia
quizá sea un sueño de pasión
Então o sol se escondeu atrás das montanhas me deixando no frio. Quase como um reflexo eu levantei para ver quem tinha tapado a luz. Quando percebi o que tnh acontecido corri para o lado oposto, onde a sombra ainda não havia chegado num gesto ridículo, impulsionado pelo momento de alegria.
Tão qual o sol se punha o frio chegava. Naquela altitude não dava pra ficar muito tempo fora da barraca e fui tentar dormir para o dia que viria. Coloquei o relógio pra despertar às duas da manhã mas mal pude dormir. Dia de cume pra mim é assim, sem dormir sem comer, alimentado pela adrenalina correndo nas veias. Bastante tempo depois consegui um cochilo mas às oito da noite acordei e saí da barraca pra ver como o tempo estava. E levei um susto.
O que vi não só estragava mas planos mas era por si só assustador. O local onde eu estava acampado era, assim como o do dia anterior, um beco. Tres paredes bem altas definiam claramente aquele espaço e livre apenas a direção por onde cheguei. Naquela noite então um neblina baixou no local, que era enorme, e o fez parecer um imenso e tenebroso ginásio. Parecia filme de terror. Eu olhei para os lados sem entender e não estranharia se de repente passasse por ali o cavaleiro sem cabeça. Entrei na barraca triste por ter a tentativa de cume tão prematuramente estragada. Já pensava no pior e me arrependia de ter passado tantos dias no camping com piscina em Barreal quando caí no sono.
Acordei despertado pelo relógio e apenas tirei a cabeça para fora da barraca para conferir se já havia começado a nevasca que na minha cabeça era inevitável. Para minha surpresa vi um céu cheio de estrelas. Fechei a barraca e enquanto me vestia cantava uma musiquinha ridicula “Vai ter cume, vai ter cume”. Saí da barraca e enquanto a água pro café fervia coloquei as botas. Tudo pronto. Pão com Nutella pra motivar e motanha acima.
O caminho já começava penoso e meu desafio era ir devagar. Eu sabia o que me esperava e ir rápido só me desgastaria. O caminho parecia bem demarcado e resolvi nem ligar o GPS. Depois de meia hora andando o liguei para ver que estava indo pro lugar totalmente errado. A trilha era tão gostosa que dava vontade de continuar indo pro lugar errado. Já o caminho certo era naquelas subidas dois passos pra frente e um pra trás. E, nesse tipo de caminho não há como ir devagar, isso me deixava nervoso.
Vencido a subida inicial o caminho ficava bem plano por bastante tempo, até chegar no pé dos Dientes. Claro, eu não conseguia enxergar nada na noite, mas por ter voltado com luz do dia, sei que a subida era forte. Até então eu já tinha andado bastande, cerca de quatro horas, num ritmo mais tranquilo. Eram cerca de seis da manhã e eu sentia muito frio. Aliás, durante todo o caminho o vento era meu companheiro. Com relação ao corpo, não sentia frio nenhum. Já as luvas não são muito boas e comecei a perder a sensibilidade das mãos. Fiz aqueles movimentos básicos, mas a perda de sensibilidade foi se repetindo e comecei a ficar com medo. Faltava pouco tempo pro sol nascer e decidi me esconder do vento atrás de uma rocha até que o sol nascesse. Foi uma boa estratégia e o frio deu uma trégua. Porém, às oito da manhã eu nem havia chegado aos 6100m esperados e estava bastante desgastado pela subida. Me dei conta que eu havia andando muito nos tres dias anteriores e não havia descansado nenhum dia antes de partir para o cume. Na gana por pegar tempo bom eu superestimei meu preparo físico ao mesmo tempo que subestimei a quarta maior montanha das Américas. Eu estava mentalmente desgastado e já pensava em desisitir. Mas, como estava tão perto dos Dientes eu queria só chegar até lá.
Cheguei em Dientes e procurei uma pedra boa pra sentar. Pensei em voltar com o rabo entre as pernas, mas nao sem antes descansar bastante. Eu tinha que fazer uma curva pra esquerda e tinha uma pedra boa mais pra la onde poderia descansar melhor. Ali comecava a neve. Tinha um negócio que as pessoas chamam de passo, que e como uma parte mais baixa numa crista, por onde se consegue passar sem ser necessário uma subida íngreme. Nesse passo tinha neve que caia em uma canaleta de uns 600m. Coisa de “cair, morreu”, mas bem simples de passar. Eu sou um montanhista previnido e sempre estou com o piolet. Estava na mochila e tirei, pois até admito morrer numa escalada, mas nao por cair numa canaleta com o piolet na mochila. O piolet, nesse caso, serviria pra auto-detenção. Se eu começar a escorregar enfio a ponta dele na neve e freio minha queda. Simples.
Nem precisei de nada disso, atravessei na boa a neve dura. Porem, na subida comecei a usar o piolet em outra função: piolet bastão. Meu piolet tem 80cm e numa subida vou usando pra apoiar. Nesse caso o piolet vai me acompanhando o tempo todo, e apesar de o caminho ser na maior parte com rochas, me sinto seguro nas partes com neve. Abaixo dessa pendente, uns 200 metros, havia um glaciar gigante. Pra sair dali depois de cair seria um problema. Porem o piolet bastão acabou se tornando um aliado muito forte e comecei a subir com mais facilidade. O cume voltou a minha cabeça. Afinal, faltava apenas 700 metros verticais. A verdade e que dali pra frente a coisa foi feia. Eu pensei muito em desisitir. Os falsos cumes vão minando todo o moral aos poucos. A ilusões de óptica ali mudam tudo muito rápido: primeiro parece perto, depois longe. Eu seguia mais parando pra respirar do que andando. O vento castigava e ainda assim eu ainda seguia.
No GPS havia um ponto chamado “col”, com 6400m, a partir de onde eu pensava que seria impossível desisisir. Quando cheguei, olhei mais a frente e vi algo que só poderia ser o cume. Fiquei tão feliz. Nem olhei mais pro GPS. Foi aquele último esforço. Eu rastejava. Cada passo era minúsculo, só não poderia parar.
Então quando estou quase no cume, olho no GPS: 6450m. Cara, eu andei tanto e não tinha subido nada? Assim são os falsos cumes. Eu subia de dez em dez minutos e minha ansiedade me fazia olhar pro altímetro. Sempre que olhava não estava mais que 30m da checada anterior. Aquilo foi me minando, mas eu não podia mais desistir.
De repente, no céu azul começou a surgir nuvens que vinham do nada. Sim, eu podia ver que vinham do nada. Elas se formavam à direita, acima do glaciar, do nada. Não eram nuvens, mas neblina. Mas o vento era tão forte que fazia elas passarem por cima de mim direto. Quando se tornaram mais fortes, parei e achei que seria o bode expiatório perfeito para minha desistência. O melhor a fazer era descansar: se as nuvens parassem eu continuaria.
Mas o desencando forçado pelo medo me fez ficar com vontade de continuar. E lembrei do que o Augustín, que fez cume comigo no Plata disse: “¡Passa nada!”. Algo do tipo “Não pega nada” no Brasil. E segui em frente, entre o medo de ser notícia no Brasil (Brasileiro desaparece no Mercedário) e o “¡Passa nada!” que surgia na minha cabeça quando olhava para o céu
Eu poderia passar horas escrevendo mas não consigo dizer o quando foi difícil chegar até os 6600m. Ali a coisa ficou feia mesmo. Além da névoa que continuava a surgir do nada o vento ficou com uns 50 km/h e eu não podia mais seguir. Sentei na neve e pensei no que fazer enquanto comecou a nevar. Eu nunca tinha visto um clima tão ruim na montanha e temi pela minha vida. Não havia o que fazer e disistir era realmente a melhor decisão. Mas que inferno, tão perto do cume não poderia ser. Então veio uma grande ideia na minha cabeça: vai sem mochila!
Tirei a mochila e a coloquei no chão. Dei um passo e o vento levou ela uns 2 metros em direção à face sul. Merda. Coloquei umas vinte pedras sobre ela e continuei. Por alguns metros. Pensei que, se o vento levasse ela eu estava perdido. Sem lanterna, a pilha do GPS acabando e a reserva na mochila, sem água. Voltei e a mochila estava lá, intacta.
Tirei o crampon e deixei sobre ela pra poder ir mais rápido e segui, pensando que se a mochila voasse eu estava perdido. Morto. Corri até o cume. Piolet na mão direita e GPS na esquerda. Cheguei ao cume. Parabéns. Felecitaciones. Marquei a posição no GPS e voltei. Não fiquei mais que dez segundos. Era o que dava. Voltei.
A mochila ainda estava intacta. Ufa. Estou vivo. Agora é só voltar. Só voltar? Eu andava dez minutos e parava onde quer que fosse: neve, pedra, ribanceira. Dizia a mim mesmo: preciso de um descansinho. Eu estava a ponto da exaustão. Tinha real medo de desligar a qualquer momento. Sei lá, as pernas poderiam parar. Eu sentia que iam. Eu tinha ido muito além do que podia. Muito além. Aquele cume tinha sido sofrido. Eu pensava na burrisse de não ter descansado um dia. Mas sorria. Se tivesse que tomar a decisão denovo não esperaria mais um dia.
Na descida o mal tempo ficou pra trás. Aconteceu um fenomeno bastante bonito. No glaciar, agora a minha esquerda, estava lá a neve branquinha. Então as nuvens de neblina, que nem são muito espessas, deixam um pouco do sol passar. E aquilo ia acontecendo sobre o glaciar, que parecia que tinha um movimento. Na verdade parecia um mar, não um glaciar. E eu ia ali, andando, decendo, olhando aquele mar ao lado.
E sempre parando. Quando parava, olhava alguma pedra bem distante e percebia que estava se movimentando. Eu me senatava, apoiava os braços sobre os joelhos e fazia como um binóculos com as mãos, para ver se a pedra se movia mesmo. Mas o vento me tirava a firmeza e tudo parecia ter movimento. E pensava que era alguém subindo, ou um animal. Na verdade eu estava cansado e com apoxia. E tudo ficava engraçado. Tudo.
Eu olhava pra esquerda e pensava em mergulhar no mar. Não sei como desci. Foi difícil. Mas depois que vi a barraca bem longe tive certeza que estava a salvo. Não comi nem nada dormi. Ah, um cume. Apenas quatro dias. Um cume.
No dia seguinte só consegui descer após o almoço. Eu estava muito cansado. Levei para ler um livro do Cesar Perez de Tudela, chamado Cinco Montanhas Solo, que foi bastante inspirador. O autor chegou a andar perdido por sete dias no Aconcágua. Foi dado como morto e, depois de resgatado chegou a ver uma plata com seu nome feita para ser colocada no cemitério dos andinistas. Eu me perguntava de onde seria possível tirar tanta força para andar por tanto tempo, mas começava a entender o quanto o mental influencia na escalada.
Na descida encontrei meus amigos argentinos, que estavam acampado em Salto, o suposto segundo acampamento, que pulei. Eles me perguntaram um monte de coisas, me parabenizaram e fui embora. Durante toda essa viagem, que durou mais de dois meses, conheci muitas pessoas. Nesse ponto da viagem por mais que conhecesse pessoas muito legais não fazia mais questão de pegar e-mails ou guardar nomes, pois sabia que aqueles momentos devem durar apenas o necessário. Continuei descendo.
No final do dia cheguei ao abrigo Laguna Blanca e para minha felicidade a Manu estava lá. Sim, minha motocicleta, intacta. Aliás, eu tinha deixado umas coisas mal presas no banco dela e esperava que pudessem ser roubadas, mas ao invés disso estavam fixadas com um arame. Ao invés de me subtrairem, se preocuparam em deixar minhas coisas melhor presas. Eu fiquei surpreso com aquilo.
Encontrei também os dois alemães, que me parabenizaram pelo cume. Eles esperariam até o dia seguinte quando o transporte deles chegaria. Já eu, por mais que estivesse sedento por um banho e comida de verdade, pensei bastante e decidi passar a noite ali. Não estava escuro e creio que eu chegaria ainda com a luz do dia em Barreal, mas o que me impedia eram os níveis dos rios. Durante o dia o sol atinge os glaciares e derrete a neve, o que aumenta o nível dos rios. Por isso o mais indicado seria fazer a travessia de manhã. Foi o que fiz.
O restante ainda foi divertido. Atravessar oito rios novamente. Acabar a gasolina na estrada de terra. Encontrar um francês que vinha andando de Puente del Inca. E ainda, no camping, logo que vi o dono lembrei da pedra que deveria ter pego no cume. Mas como pedras são todas iguais meu amigo não ficou sem seu souvenir. Só fiquei com um pouco de ressentimento quando ele pediu que eu autografasse um papel que guardaria com a pedra. mais uma vez não cobrou minha estadia e insistiu para que eu voltasse no próximo ano. Sendo assim tão bem tratado não posso crer nessa tal rivalidade com os hermanos.
Alguns dias depois segui para Fiambalá, a cidade dos maiores vulcões do mundo. Ali se encontram seis das dez maiores montanhas das Américas. Novamente sozinho, apenas com o que podia carregar iria encarar colossais montanhas de rocha e gelo. Mas isso fica para um próximo relato… ,
1 comentário
Muito bom cara!!!!!
Inspirador, assustador e divertido. Já passei por esses lados de moto (uma 250 tbem) e fiquei encantado com os Andes, com a altitude. Esse ano fui até a Bolívia e senti o gostinho de um cume (Chacaltaya). 5.500 metros, bem barbada , até pq chega-se muito perto cm a van. Mas enfim, lá em cima pensei q seria a coisa q mais me traria satisfação: escalar.
Comecei ontem a noite a pesquisar e achei teu relato. Vou ler os demais.
Obrigado por compartilhar e boa sorte!
Emerson
Blumenau-SC