Chamem a Polícia, pois é proibido escalar!

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O título deste texto pode ser considerado exagerado, até mesmo sensacionalista, como alguns já me chamaram antes. Entretanto é preciso chamar atenção para o que vêm acontecendo com o montanhismo nos últimos anos, aonde pequenas proibições locais vão, pouco a pouco, minando nossa atividade na montanha e acabando com a cultura do montanhismo.

Proibido escalar

O montanhismo é uma das atividades mais antigas do homem, mas ele foi apenas considerado como tal a partir de quando os homens deixaram de subir as montanhas por motivos religiosos e estratégicos e passaram a subir por subir. Isso aconteceu no século XVIII, o “século das luzes”, que de acordo com os historiadores, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade triunfaram sobre a velha mentalidade feudal e medieval que existia na Europa.

O montanhismo seguiu tendências de acordo com o período político de cada época. Foi propaganda imperialista britânica no século XIX, serviu para enaltecer o patriotismo perdido dos franceses no pós-guerra, passou a ser patrocinado por empresas no período neoliberal e hoje certamente o que mais o afeta é o paradigma da crise ambiental que é um dos maiores desafios do homem para o século XXI.

É extremamente importante a consciência de preservação da natureza e nossas ações têm que ser focadas na busca da minimização dos impactos e da escolha do “menos pior”, pois acho que desenvolvimento sustentável seja algo inalcançável com a manutenção de nosso sistema econômico, onde a primeira premissa é a do crescimento e isso inclui crescimento de população, crescimento de produção e de vendas.

Assistimos a destruição de nossas florestas e de nossos campos. Nossos sistemas ecológicos ficaram desbalanceados com a globalização de espécies que trazem benefícios econômicos para o homem, vimos a total perda de originalidade de nossas paisagens.

Apesar do distanciamento do homem de seu meio natural, existem lugares onde a natureza ficou preservada e lá, a população cada vez mais urbana e industrial pode calibrar sua energia com a natureza. Obviamente que apesar das aparências, estes lugares não se mantiveram intocados, mas apenas menos alterados, disso as montanhas são um exemplo.

A maneira como hoje estas zonas protegidas (de nós mesmos) são geridas, criou uma natureza artificializada onde os próprios princípios evolutivos que culminaram por selecionar genéticamente os elementos vivos das paisagens são artificialmente coibidos, pois eventos catastróficos e naturais ocorreram com freqüência na história geoecológica das paisagens, dentre eles, cito as queimadas e a erosão.

Vejo isso na Serra do Mar, onde processos morfogenéticos atuaram durante milhares de anos, provocando o recuo de centenas de quilômetros das vertentes, de onde formações geológicas com pacotes imensos de sedimentos são correlativos destes processos, tais como as formações Cenozóicas do Vale do Paraíba e baixada fluminense, ou como a formação Guabirotuba em Curitiba e até mesmo a formação Barreiras que orla todo nosso litoral atlântico.

Quanto à vegetação, o que não dizer das oscilações climáticas do Quaternário, que fizeram expandir as floras secas e retrair a vegetação úmida em refúgios, provocando especiações, endemismos e extinções.
Lembro a todos que nossos animais gigantes do Pleistoceno se extinguiram sem terem sofrido uma grande pressão do homem e antes deles, houveram 3 mega extinções em massa no planeta.

Acontece que há muitos anos, muito tempo antes que a consciência ambiental chegasse ao senso comum , ela já era popular entre os homens de montanha. Por conta disso vários paraísos ameaçados conseguiram se livrar da destruição. Quem não se lembra do Morro da Pedreira na Serra do Cipó, salvo pelos montanhistas de virar pia de cozinha, ou até mesmo pela luta pela preservação da Serra do Mar no Paraná e a conquista dos montanhistas em conseguir transformar o Anhangava em um parque Estadual? Isso só para citar alguns exemplos.

Esqueceram capítulos recentes da história do montanhismo e hoje somos culpados pelos problemas que existem nos parques.

Eu sei que é difícil gerir uma Unidade de Conservação, sei que não existe interesse político em pôr dinheiro em algo que não gera receita e que os funcionários dos órgãos ambientais sofrem uma desvalorização profissional, seja por que não recebem o justo para o desempenho de suas funções e até mesmo porque existem pouquíssimos concursos públicos para o ingresso de novos braços e de novas cabeças. Os órgãos ambientais são carentes em recursos humanos.

Entretanto, o que os órgãos ambientais não podem fazer é colocar tudo isso como desculpa e marginalizar uma atividade muito mais antiga no nosso país que o popularíssimo futebol. O não reconhecimento do montanhismo e pior ainda, a proibição deles nas Unidades de Conservação relega o montanhismo à marginalidade.

Os montanhistas por sua vez têm sua parcela de culpa. Primeiramente por não quererem participar das federações e de clubes, uma atitude que faz parte um pouco do próprio espírito do montanhista, que é ser independente e muitas vezes romântico (não no sentido sentimental, mas sim do pensamento filosófico). O montanhista simplesmente sabe que mesmo proibido não existe fiscalização e fazem uso do famoso “cambau” para manter suas atividades, afinal, é muito mais fácil pular a cerca do que ir lutar por seus ideais. O “pular a cerca” é outro ato que faz do montanhismo e do montanhista um marginal…

Há por outro lado toda uma geração que sabe respeitar as regras, na maioria das vezes absurdas, que se impõem sobre nossas áreas naturais. Por conta disso eles não sabem o que é acampar em Itatiaia, não sabem o que é realizar a travessia Alpha-Ômega no Marumbi e nem podem escalar vias técnicas em lugares como a cachoeira do Tabuleiro, ou a Gruta do Monge no Paraná, pois se houver um acidente, o parque vai ser responsabilizado. O que não é verdade, pois nunca na história de nossas UC´s um diretor foi responsabilizado por um acidente dentro de um parque.

Em minha experiência em 11 anos de montanhismo (que é pouca), tenho visto que a maioria dos escaladores não são montanhistas e não assimilam a cultura do montanhismo. Eles não sabem o que é liberdade de verdade e nem sequer assumem os riscos inerentes em nossa atividade. Isso se deve, dentre outras coisas, à questão de que as próprias regras impostas já são, por si, contrárias à cultura do montanhismo, portanto nossa cultura é marginalizada por regras que não permitem a liberdade e nem o risco.

O problema não está só em áreas públicas, as proibições também ocorrem em áreas particulares. A diferença é que uma área pública e uma privada há exatamente o direito em não permitir a entrada e o dever em incentivar atividades ao ar livre, de acordo com a própria legislação que regulamenta os Parques Nacionais brasileiros (artigo 34 do decreto n. 84.017 de 1979). Outra coisa é que no Brasil, sempre achamos forma de negociar com proprietários que não entendem a escalada (afinal não somos a sociedade do trato?) e na esfera governamental há todo um aparato burocrático que impede o reconhecimento do montanhismo como cultura e o montanhista como uma população tradicional, onde teríamos o direito de freqüentar nossas montanhas.

Acontece que a lei é interpretável e da mesma forma em que interpreta-se o SNUC para proibir nosso acesso à montanha, podemos interpretá-lo de forma contrária. Digno de nota, nossas proibições não tem efeito de lei, embora você pode sim ir para na delegacia por escalar em lugares como na Gruta do Rei do Mato ou na Lapinha em Minas, assim como no Canyon do Guartelá no Paraná, Pedra Azul do Espírito Santo, …. e outros tantos lugares que engordam a lista das proibições, isso apenas para citar a escalada, pois a lista de caminhadas seria muito maior.

Só para constar, não somos os responsáveis pela elaboração de planos de manejo, mas é extremamente necessário estar presentes na criação destes, pois muitas vezes os técnicos não sabem o que é o montanhismo e nem mesmo sabem nossa história. Se baseiam em preceitos que advém do senso comum para determinar a restrição.

Outra coisa, a ausência de Plano de Manejo em parques não pode punir os montanhistas com proibição, pois a responsabilidade destes é dos órgãos ambientais competentes. Então não temos que esperar um documento atestando o nosso não impacto para possibilitar nossa escalada… Em diversos lugares a escalada é proibida apenas porque não pode, numa situação que chega no limite da perseguição: “Não sei o que vocês fizeram, mas vou descobrir…” Ou melhor, “até agora não sabemos porque escalar é proibido, mas ainda vou achar um impacto pelos quais vocês são responsáveis….”

Há pouco tempo atrás dançar um samba era proibido no Brasil e qualquer manifestação da cultura popular era “caso de polícia”. Apesar das nítidas diferenças entre o montanhismo e o carnaval, estamos quase chegando na situação de ser preso por tentar escalar uma montanha. Não vamos deixar isso acontecer, vamos?

Portanto, escaladores de todas as montanhas. Uní-vos!

Ps. Este é apenas uma pincelada no problema, pois ele é muito mais complexo. Vamos com calma, mas sem abandonar a causa. Parafraseando Kenitiro Suguio: Passado + presente = Futuro. O que você está fazendo no presente do montanhismo?

 

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Sobre o autor

Pedro Hauck natural de Itatiba-SP, desde 2007 vive em Curitiba-PR onde se tornou um ilustre conhecido. É formado em Geografia pela Unesp Rio Claro, possui mestrado em Geografia Física pela UFPR. Atualmente é sócio da Loja AltaMontanha, uma das mais conhecidas lojas especializadas em montanhismo no Brasil. É sócio da Soul Outdoor, agência especializada em ascensão em montanhas, trekking e cursos na área de montanhismo. Ele também é guia de montanha profissional e instrutor de escalada pela AGUIPERJ, única associação de guias de escalada profissional do Brasil. Ao longo de mais de 25 anos dedicados ao montanhismo, já escalou mais 140 montanhas com mais de 4 mil metros, destas, mais da metade com 6 mil metros e um 8 mil do Himalaia. Siga ele no Instagram @pehauck

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