Por: Samuel Schwaida
Localizada no planalto central do Brasil, no nordeste goiano, a Chapada dos Veadeiros corresponde à uma região formada por 8 municípios e abriga belezas pouco conhecidas pelos brasileiros. Pior ainda, por boa parte dos brasilienses e demais habitantes da região.
Inserida totalmente no bioma cerrado, considerado um hotspot de biodiversidade, a Chapada abriga uma variedade de fitofisionomias e espécies, centenas de cachoeiras e formações geológicas únicas. Com tantos atrativos e reconhecida como Patrimônio Mundial Natural pela Unesco em 2001, era de se esperar que houvesse muitas rotas de trekking disponíveis para imersão total nesse paraíso. Infelizmente, apesar do grande potencial e beleza, as opções de trilhas com pernoite na região ainda são bastante limitadas e os trilheiros competem por espaço naquelas já estabelecidas e autorizadas. Como exemplo, as vagas para pernoite na travessia Sete Quedas, no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, esgotam-se em poucos dias após a abertura do sistema de reserva.
Procurando suprir um pouco da demanda e saciar nossa necessidade de passar dias no mato, implementamos a travessia Duas Cruzes-Morro do Chapéu, a mais nova travessia do Planalto Central. Uma linda trilha que conecta carreiros antigos, estradas e estradinhas de terra com pouco ou nenhum movimento, acompanhando as curvas da Serra do Paranã. Um caminho que corta diferentes formações do cerrado e oferece lindos mirantes, cachoeiras, poços de água limpa e gelada e a típica hospitalidade goiana.
Essa rota já está lá há muito tempo, mas só começou a ser tratada como uma potencial trilha recreativa quando Geraldo Bertelli (o Seu Geraldo), guia e grande conhecedor da Chapada dos Veadeiros – e atual Secretário de Turismo de São João d´Aliança – concebeu uma rota de caminhada de 128 km no município e que contemplava a região entre as Duas Cruzes e o Morro do Chapéu. Com o lançamento do Sistema Brasileiro de Trilhas de Longo Curso pelo ICMBIO, que prevê uma trilha de longo curso cortando o Estado de Goiás (Caminho dos Goyazes), começamos os trabalhos de levantamento de informações, mapeamento e planejamento da seção que ligará o DF à Chapada dos Veadeiros, posteriormente batizado de ‘Caminho dos Veadeiros’. Esse trabalho nos levou até o Sr. Geraldo, sua rota e as belezas escondidas de São João, cidade que se tornou meu refúgio nos finais de semana.
Após algumas expedições de reconhecimento da rota em 2018 com muito vara-mato e carrapatos, e com o apoio de voluntários e doadores, em maio do presente ano realizamos a primeira oficina de sinalização do Caminho dos Veadeiros e a travessia Duas Cruzes-Morro do Chapéu começava a se consolidar. Ações de sinalização complementares foram realizadas e em julho de 2019, conduzimos a primeira experiência piloto da travessia, dessa vez com duas pessoas que não conheciam o caminho, para verificar a eficiência e realizar ajustes na sinalização e acertar detalhes com a família hospedeira. Enfim, em 06 de setembro a trilha foi lançada e divulgada no perfil oficial do Caminho dos Veadeiros na Wikiloc, pronta para uso.
A TRILHA
A travessia Duas Cruzes-Morro do Chapéu possui aproximadamente 30 km de extensão, com dificuldade moderada. Foi concebida para ser percorrida em dois ou três dias com pernoite, mas pode ser percorrida em apenas um, embora em três dias seja o mais recomendado para contemplação. É possível, também, percorrer apenas o trecho Andorinhas-Morro do Chapéu com pequenos ajustes na logística. A cidade base é a pacata e acolhedora São João d´Aliança, conhecida como Portal da Chapada dos Veadeiros.
A trilha pode ser percorrida o ano todo, sendo a melhor época de maio a setembro. Os meses de outubro a abril correspondem a estação chuvosa no cerrado e há risco de cabeça d´água nos rios e cachoeiras. Recomenda-se cuidado redobrado na época de chuvas, principalmente ao cruzar rios e visitar as cachoeiras.
PRIMEIRO DIA
A trilha na região das Duas Cruzes. Segundo a tradição local, na década de 70 pai e filho voltavam de compras na cidade e foram atingidos por um raio naquele ponto, vindo a óbito junto com seus cavalos. Em memória dos dois homens, duas cruzes foram colocadas ali. Cruzando-se a porteira fechada, o caminho segue exclusivamente por umas estrada desativada que corta a área conhecida como Fazenda do Japonês. Após 1,2 km passa-se uma casa atualmente abandonada, antiga casa do caseiro. O caminho desvia levemente à esquerda, e retoma a estrada. Em mais 1,2 km chega-se à construção inacabada da sede da fazenda, que pode servir de abrigo em caso de emergência. Na bifurcação, mantenha-se à esquerda, seguindo reto e orientando-se pela sinalização. A estrada cortará um pequeno pasto, onde há uma antena e placa solar. Este ponto fornece uma belo visual dos morrotes e vales da Serra do Paranã.
O caminho segue pela estrada principal cortando o que parece ser um Cerrado Rupestre ou Cerrado Ralo muito bem preservado e após 8,76 km do início chega-se ao Alto da Andorinhas, onde é possível ver parte do vale do Extrema, rio que forma a Cachoeira do Label – maior cachoeira de Goiás, com 187m de altura – e onde se situa o topo da cachoeira. Mais além no horizonte é possível ver o lago do Paranã. O Alto da Andorinhas é também um dos pontos de divisão do trajeto de bicicleta e caminhada do Caminho dos Veadeiros. A trilha de caminhada segue à direita, descendo a serra no sentido da Cachoeira das Andorinhas, enquanto a de bicicleta segue a estrada até encontrar a GO 236. Segue-se a sinalização do Caminho dos Veadeiros e em pouco tempo chega-se a um curral abandonado. Este é o único ponto de pernoite autorizado na região da Andorinhas e ainda não conta com nenhum manejo. Sempre verifique e esteja atento quanto à presença de animais peçonhentos, abelhas e marimbondos, lembrando que é sempre bom termos equipamentos de proteção para esse tipo de animais. Não há água ao redor do curral, sendo necessário ir até o rio Rodeador, a apenas 400m do curral seguindo as pegadas amarelas. Os melhores pontos de água estão no poço superior, na a pequena queda e no veio de água na margem direita. Os poços ora esverdeados, ora azulados, são ótimos para banho.
DIA 2
No segundo dia, após um bom café da manhã e talvez um banho nos poços superiores, é possível fazer um ataque até a base da cachoeira das Andorinhas. A trilha de ataque inicia após o rio, à direita e é sinalizada com marcas amarelas nas árvores. São aproximadamente 15 min do rio até a base da Cachoeira das Andorinhas, uma linda e fina queda em um imenso paredão, com sombra constante. Não há poço para banho e as pedras são escorregadias, exigindo atenção, mas o lugar é incrivelmente belo e silencioso.
Para continuar a travessia, é necessário retornar ao rio e seguir a sinalização do Caminho dos Veadeiros ao longo de uma antiga trilha cavaleira ainda utilizada por moradores e animais da região. Após 1,5 km chega-se ao Mirante do Vale do Extrema, ponto de parada obrigatório. Dali segue-se mais 330m até uma estrada de terra, onde toma-se a direita, sendo necessário cruzar a cerca, adentrando na propriedade do Sr. Aprígio, sujeito muito receptivo mas que nem sempre está pela área. A caminhada segue por estrada por mais 4,5 km até a descida da serra por uma trilha cavaleira antiga. Esse é um trecho bastante interessante da trilha, por conta da vegetação densa que faz lembrar a Mata Atlântica, mas é também o trecho com maior concentração de carrapatos! Calça por dentro das meias e manga longa são fundamentais para diminuir a infestação.
Parte do caminho pode estar tomado por mato fechado, principalmente na estação chuvosa, o que pode dificultar a caminhada, mas em breve receberá o manejo adequado. No final da descida chega-se a um córrego de água limpa e gelada que nasce na propriedade e onde é possível abastecer os cantis. A trilha segue pela mata de galeria – o que é um alento após horas sob o sol – até uma cerca de madeira que deve ser cruzada e ,então, ora pelas pedras no leito, ora pelas margens, até acompanhar um cano de captação de água na margem esquerda e sair da mata fechada em uma área de pasto. Em mais alguns km chega-se a sede da fazenda, onde moram os simpáticos e receptivos Alex e Juliana e onde é possível pernoitar.
A área ainda não conta com estrutura complexa para camping, mas há muito espaço para armar barracas e é possível utilizar o banheiro e chuveiro da casa. A água da pia externa é potável e o valor do pernoite é de R$ 20,00 e deve ser pago em dinheiro ao Alex ou Juliana. A família produz principalmente mandioca. Em nossa última expedição antes da liberação da trilha nos serviram mandioca cozida e torresmo: uma humilhação à minha comida liofilizada sem muito sabor..
DIA 3
No terceiro dia é possível acordar mais tarde, mas vale a pena dar uma olhada no nascer do sol, quando tons laranjas tingem o Vale do Paranã e as encostas da Serra acima da fazenda. Pela manhã deve-se visitar a Cachoeira São Mateus (ou Cachoeira do Alex), a menos de 1 km da sede da fazenda. A trilha é bem batida e há poços para banho na parte alta e baixa da cachoeira. Na parte baixa há um poço de águas bem geladas e esverdeadas, um bom local para aquietar e desligar a cabeça pela manhã.
A travessia segue da sede da fazenda do Alex por estrada de terra e tem os paredões da serra como pano de fundo. Após 1,3 km, já em outra propriedade, chega-se ao Palmeiral, uma área onde toda a vegetação foi retirada para plantio de pasto, exceto as palmeiras, mas que hoje está abandonada. Aproximadamente 3,3 km após a fazenda do Alex, há uma bifurcação: à direita a casa de Nilza e Virgílio, onde é possível abastecer de água e comprar doce de leite artesanal; à esquerda continua-se a subida da estrada, margeando o Morro do Chapéu. A subida é exigente. A partir de um determinado ponto é possível fazer um bate-volta e ascender até o cume do morro, que oferece uma vista única do Vale do Paranã. Ainda não há trilha aberta ou demarcada para o cume do Morro do Chapéu e há presença de animais peçonhentos – ouvimos o guizado de uma cascavel. Enquanto não abrimos e sinalizamos a trilha, fica a recomendação de atenção redobrada e uso de perneira. Da base do Morro do Chapéu, são mais 2 km até a Fazenda Eliza, o ponto de referência para resgate/final da travessia.
Recomendações:
– Esta trilha está situada em ambiente sensível e em terras privadas, com pernoite em propriedade rural familiar. A conduta consciente dos visitantes é essencial para que a visitação continue autorizada. Respeite as regras e costumes locais. É desaconselhado o consumo de bebidas alcoólicas e outras substâncias e uso de som alto.
– Recomenda-se a visitação em grupos pequenos, de no máximo 6 pessoas.
– A abertura e sinalização é fruto do trabalho de voluntários no âmbito do projeto ‘Caminho dos Veadeiros’. Não danifique, remova ou altere a sinalização.
– Leve todo seu lixo de volta. O lixo orgânico pode ser deixado na fazenda do Alex.
– As informações aqui contidas não são um incentivo a visitas desprogramadas ou despreparadas. Trata-se de rota de trekking em ambiente natural, sendo necessário conhecimento das técnicas, equipamentos e riscos envolvidos. Você é o principal responsável por sua própria segurança. Na dúvida, contrate um guia.
– Todas as atividades e materiais do Caminho dos Veadeiros são desenvolvidos de forma voluntária e sem fins lucrativos por praticantes e entusiastas amadores.
– Ambientes naturais estão sujeitos a mudanças e as informações aqui apresentadas podem se encontrar desatualizadas. Não nos responsabilizamos por eventuais inconsistências ou acidentes decorrentes da prática esportiva
– Se equipe para minimizar possíveis problemas com relação a insetos e animais peçonhentos ou até mesmo para diminuir problemas físicos referente ao uso de equipamentos errados.
CONTATOS:
Geraldo Bertelli (translado, informações, pernoite em São João d´Aliança, guia): 62 996694729
Zéria (translado, informações, guia): 62 998461082
Alex (informações, camping): 62 996663846
Samuel (aluguel de equipamentos em Brasília): 61 999338383
Chapéu de Sol (pernoite em São João d´Aliança): 62 996461621
Pousada Vitória (pernoite em São João d´Aliança): 62 996487792
Hotel Almeida (pernoite em São João d´Aliança): 62 3438-1923
TRACKLOG E INFORMAÇÕES ADICIONAIS:
1 comentário
Já diei a viagem pra Chapada dos Veadeiros duas vezes. Depois de ler essa belíssima reportagem não vai ter a terceira vez. Obrigado pelas dicas.