Cinco dias acima dos 4.000m

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Sendo um idioma muito prático, o inglês tem adjetivos que resumem frases inteiras do português. A palavra breathtaking, que significa “de tirar o fôlego”, é um exemplo. E foi ajudando a guiar um grupo de turistas ingleses num trekking de 5 dias ao redor do nevado Ausangate, no Peru, que compreendi o que é deparar-se com uma paisagem literalmente breathtaking. Um destes momentos é quando atingimos o topo do passo Palomani, que com 5200 metros é o ponto mais elevado do caminho: o oxigênio já nos faltava naturalmente devido à altitude, e a beleza daquele cenário de picos nevados que apreciávamos ali roubava qualquer restinho de fôlego que ainda tínhamos.

Com quase 6400 metros, o Ausangate é a montanha mais alta da região de Cusco e marca o início da Cordilheira Vilcanota, um segmento dos Andes peruanos que se estende por 120 km. Protagonista de lendas contadas através das gerações desde os tempos incaicos, o nevado ainda é venerado como uma divindade (chamada apu) pelos habitantes dos seus arredores. Depois de caminhar por 5 dias no seu “território”, perdendo o ar diante da grandeza de suas paredes de neve ou do exotismo do turquesa de suas lagoas glaciares, não há como não ter pelo menos uma pontinha de reverência ao apu Ausangate.

A Reserva Nacional Ausangate está a 120km (cerca de 3 horas de viagem) de Cusco.  Os trekkings de 5 a 7 dias que fazem a volta ao nevado percorrem um caminho qualificado por montanhistas experientes como moderado-difícil e que está quase sempre acima dos 4000 metros de altura. A maioria dos pacotes inclui cavalos para o transporte de todo o equipamento de camping e até dos artigos pessoais dos trekkeiros, que carregam só uma mochila de ataque com água, lanche, câmera, protetor solar, abrigo. O frio, a falta de oxigênio e um ou outro sintoma do “mal de altura” são dificuldades óbvias que irão enfrentar os que se aventuram por ali, mas que trazem como recompensa paisagens que parecem ser de outro planeta de tão impressionantes.
Dia 1 – Cusco – Rodeana – Upis
Nada de passos altos ou subidas íngremes neste primeiro dia de trekking: o caminho do povoado de Rodeana, a 3900m, até o acampamento Upis, a 4440m, é relativamente tranquilo, apesar de ser em terreno irregular. A primeira hora de caminhada, que começou às 10h da manhã, foi em estrada de terra, depois em trilhas cruzando pastos repletos de alpacas, cuja lã é uma das principais fontes de renda da população local.
Os sombreros coloridos das mulheres trabalhando perto dos currais, nos campos de batata ou fazendo artesanato sentadas no chão se destacavam em meio aos tons acinzentados e amarelados da puna. O silêncio só era quebrado por alguma música da Rádio Tinki, que escutávamos tocando nos aparelhos de pilha que os homens levavam pendurados no pescoço.
Chegamos ao acampamento Upis perto das 14h. O local dispõe de banheiros “convencionais”, mas que nem sempre estão abertos, às vezes algum morador da área cobrava 2 soles para o uso desta facilidade. O resto da tarde foi para descanso e aclimatação, tomando bastante mate de coca e admirando o cenário que nos rodeava: a face norte do Ausangate à frente e o início da Cordillera Vilcanota à direita.
Dia 2 –Upis – Ausangatecocha
Ccomerococha, Yanacocha, Puccacocha. Estas e outras lagoas glaciares foram o destaque do segundo dia de trekking. Seja por sua formosura, carga energética ou qualquer outro atributo, estas cochas são consideradas sagradas e às vezes representam mitos da tradição oral local. Mas antes do “espetáculo das águas”, tínhamos que vencer o primeiro passo elevado do trekking, o Arapa, com 4764m.  Foram cerca de 2 horas de caminhada até o alto deste abra circundado por uma paisagem árida, exótica, quase extra-terrestre, em que o verde-cinzento da grama contrastava com o marrom-avermelhado das encostas das montanhas. O azul profundo do céu característico da estação seca andina completava a paleta de cores.
Após cruzar o Arapa, descemos por cerca de uma hora no vale Huayna Ausangate, caminhando ao redor da face sudeste do nevado. Nosso almoço foi à beira de Huchuy Puccacocha, que, apesar de significar “Pequena Lagoa Vermelha” em quéchua, exibia um lindo azul-esverdeado-escuro em suas águas muito próximas ao glaciar. Continuamos o trekking em direção a Hatun Puccacocha – a “Grande Lagoa Vermelha” –, para depois nos depararmos com o indescritível verde-turquesa-claro de Ccomerococha (“Lagoa Verde”).
Antes de atravessar o segundo e último passo do dia, o Muchacho, com 4880m, andamos por um imenso bosque de boulders, onde infelizmente não pudemos parar nem para uma escaladinha rápida. Ficou para a próxima. Atingimos o acampamento Ausangatecocha, a 4675m, perto das 15h. Nosso arrieiro Mário Huaman e seu pai – que sempre chamávamos “Papi” – já nos esperavam ali com as barracas montadas, mate de coca e pipoca quentinha, algo para enganar os estômagos famintos antes da janta contundente de lomo saltado, um prato típico peruano com carne refogada com tomate, cebola e batata frita.
Dia 3 – Ausangatecocha – Soracuchupampa
Com um passo de 5200m pela frente, necessitávamos de muita energia para o terceiro dia de trekking, por isso o desayuno foi reforçado: além do usual mingau de aveia com mate de coca e pães caseiros, havia panquecas com doce de leite, chocolate quente e abacaxi com granola. Partimos de Ausangatecocha um pouco atrasados, às 8h45, e depois de cerca de meia-hora de caminhada “digestiva” iniciamos a subida do abra Palomani, um dos trechos mais duros do trekking. O caminho não era tão íngreme, tinha no máximo 30° de inclinação, mas a crescente altitude tornava cada passada um esforço maior. Logo a trilha estava coberta de gelo e neve derretida, exigindo atenção redobrada para andar. Naquele momento, talvez mais valioso do que qualquer diamox ou sorojchi pill era o conselho do Papi de ter paciência e procurar admirar a paisagem ao redor para tornar a jornada mais prazerosa.
Quando alcançamos o alto do passo, às 11h, foi como virar a página de um livro em que uma nova pintura se escancarava diante dos nossos olhos. O glaciar Quelcaya, a maior massa de gelo dos trópicos, e os Três Picos que marcam o início da Cordilheira Vilcanota formavam o cenário “literalmente breathtaking” do início da matéria. À nossa esquerda estava a face sul do Ausangate, onde podíamos ver o caminho usado pelos escaladores que atacam o seu cume.
Enquanto os turistas estrangeiros saltavam para tirar fotos, os guias e arrieiros peruanos que estavam por ali se sentavam para assoprar seus agradecimentos ao apu com três folhas de coca perto dos lábios. Entre um e outro “gracias”, mascavam as folhas, punham em dia a fofoca em quéchua e colocavam uma pedra a mais no alto das várias apachetas (amontoados de rochas que servem para marcar o caminho ou como oferenda à Mãe-Terra Pachamama) que podíamos ver ali.
Na descida do Palomani avistamos várias lagoas glaciares ainda congeladas. Fizemos um lanche no Vale de Chilca, uma imensa planície verde pontilhada de casinhas de pedra e palha, alpacas pastando e algumas vicuñas e viscachas (animais silvestres da puna) correndo pelas alturas.
Fiquei imaginando como seria a vida por ali, onde qualquer bodega vendendo fósforos está a pelo menos dois dias de caminhada. Naquela região, um ajuntado de três choupanas com currais de alpacas já é um pueblito, com nome próprio e talvez até autoridade local, como é o caso de Huchuy Phynaya, por onde passamos logo depois do almoço. Nas próximas 2 horas de trekking o caminho foi uma sucessão de passos baixos e pampas com pueblitos, até alcançarmos o acampamento Soracuchupampa, a 4662m, perto das 15h30.
Dia 4 – Soracuchupampa – Pacchanta
Os riachos que cortavam o Vale Huano Huano ainda estavam congelados quando iniciamos a caminhada do quarto dia, que termina na vila de Pacchanta. Atravessando a pampa em direção ao Passo Ccampa, com 5080m, já podíamos ver os três cumes nevados dos Pucca Puntas.
Ao chegar ao alto do abra, perto das 11h30, outro fantástico panorama se descortinava: o cume do nevado Ccampa, que eu havia escalado no mês anterior, acompanhado do Ausangate, que estava “escondido” desde a tarde anterior. Dali para frente o trekking assumiu um ritmo mais tranquilo, pois só tínhamos que descer em direção a Pacchanta, a 4400m. Em alguns trechos o caminho era uma estreita passarela com a encosta do Ccampa de um lado e um profundo vale do outro. Do outro lado deste vale podíamos admirar as várias nuances de cores dos cogumelos e saliências de neve dos Pucca Puntas.
Na descida pelo vale Ccomerococha, o negro-espelhado de Huchuy Yanacocha e o turquesa-esverdeado das Alcacochas deixaram ainda mais duro o páreo da “lagoa espetacular” do trekking. O farfalhar dos riachos entre as pedras nos anunciava a chegada a Pacchanta, que em quéchua significa “terra das cascatas”. Nosso acampamento já estava montado quando chegamos ali, perto das 15h.
Além de Mario e Papi, meia dúzia de mulheres vendendo bebidas e artesanato nos aguardavam em Pacchanta. Antes de entrar nas águas termais do vilarejo, o grupo todo tomou uma (duas, três, quatro) cerveja(s) para agradecer ao apu Ausangate pela beleza e segurança daqueles dias dentro dos seus domínios e a Alex Cuadros (nosso guia), Mário e Papi pelo trabalho deles. A esposa e um dos filhos de Mário vieram visitá-lo no acampamento à noite, o que deixou o jantar com um clima aconchegante de “família”. Sem passos altos ou qualquer subida para enfrentar no outro dia, ficamos acordados até “tarde” – ou seja, depois das 21h.
Dia 5 – Pacchanta – Rodeana – Cusco
Comparada às caminhadas dos dias anteriores, a de Pacchanta a Rodeana era praticamente um passeio, descendo de 4400m a 3900m em estrada de terra. Isso nos possibilitou sair do acampamento um pouco mais tarde, já passando das 9h. Chegamos a Rodeana perto do meio-dia e nosso táxi de retorno a Cusco já nos esperava ali com o porta-malas aberto. De volta à ciudad imperial, todo o movimento, o barulho e a confusão de turistas, carros e vendedores da Plaza de Armas foi um choque para os meus olhos, que já tinham se acostumado ao encanto inóspito das montanhas.
SERVIÇO
Quando ir: a melhor época do ano para explorar a área do Ausangate é de maio a outubro, sendo a temporada alta de junho a agosto.
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