Conquista da Face Leste do Pico Paraná – 1ª Parte

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1.877,33 metros. Esta é a altura precisa e oficial do ponto culminante da região sul do Brasil, o majestoso Pico Paraná. Isso de acordo com as medições feita pela parafernália científica e tecnológica da nossa época. Essa altura muda sempre a cada nova medição, e para menos, lamentavelmente. Nossa esperança é que as novas atualizações acabem mexendo apenas na casa dos centímetros, ou milímetros quem sabe.


Já o mar é diferente, não precisamos de sofisticados altímetros, nem tão pouco de triangulação de satélites para sabermos que estamos a zero metro. Mas até mesmo os oceanos acabarão conspirando para diminuição na altura das montanhas, não só do Pico Paraná, mas de todas no planeta. Se esta nova tendência de aquecimento global for mantida, ou agravar-se, o derretimento das calotas polares em pouco tempo subtrairá um desnível de no mínimo dois metros, em qualquer território que aflorar dos oceanos.

Mesmo assim, se você está em Antonina, mais precisamente na estrada que liga esta a Usina Parigot de Souza, sem dúvida poderá sentir, da forma mais intensa, espetacular e assustadora, a discrepância de nível existente entre zero e mil oitocentos e setenta e sete metros. Uma verticalidade hipnótica e desafiadora que intimida qualquer espírito aventureiro, por mais insano que ele seja. Estando no cume do Pico Paraná, não muda muita coisa. A estrada e a usina vistas de lá, parecem destinos inalcançáveis, mais ainda se aliado ao cansaço da subida e a dúvida angustiante sobre os desafios que estão por vir.

Apesar dos perigos reais e imaginários, ou talvez justamente por causa deles, que todos os autênticos montanhistas e aventureiros já consideraram tal hipótese, entretanto ninguém o fez. Então, surge a oportunidade, e os personagens. Junto a eles vêm somados outros fatores de real importância. A necessidade por uma demanda cada vez maior de adrenalina, a restrição e comercialização cada vez maior dos caminhos que dão acesso a trilha principal e a empolgação por ser algo novo e por uma face magnificamente inusitada. Tudo fez com que este sonho se tornasse uma realidade. Então houve um dia, que para três montanhistas, o cume do Pico Paraná deixou de ser um destino final, para se tornar o princípio de uma grande aventura.

Os Preparativos
Confesso que, quando recebi o telefonema do Paulo Marinho, um grande amigo de inúmeras andanças pela serra, jamais imaginava que tipo de convite viria. Logicamente não poderia ser algo muito simples, pois estávamos a alguns dias do feriadão de sete de setembro, e com certeza o utilizaríamos inteiramente. Quando ele falou o que era, fiquei estarrecido, e percebi que não poderia ter recebido um convite melhor, tanto que topei imediatamente. Descer o pico Paraná pela face leste habita os sonhos de incontáveis montanhistas, e as razões pelas quais ainda não havia sido feita, se tornam obvias ao olhar para a montanha ou para a carta topográfica.

Nenhuma delas o encoraja a fazer ainda mais se considerar a má fama que sete de setembro tem de ser chuvoso e carrancudo. Mas é justamente num instante mágico, que à vontade de ir além, de ver o que há atrás, de revelar segredos e mistérios guardados a sete chaves pela nossa exuberante serra, e acima de tudo a chama inextinguível que alimenta o espírito aventureiro, que nos faz ignorar as mais sombrias estatísticas e prosseguir.

Nossa conversa continuou por mais um bom tempo, sempre em tom de euforia. Só fique um tanto chateado ao saber que outros dois companheiros, o Fiori e o Pioli, sempre presentes nesse tipo de empreitada, não iriam nos acompanhar. Nosso quarteto se mostra muito eficiente com facão, bússola e altímetro nas mãos, especialmente em terras selvagens. Um bom exemplo é a nova trilha que inauguramos recentemente, a qual leva até o cume do Taipabuçu, partindo do rio aos pés do Caratuva. Trata-se de uma trilha muita bem planejada que segue em curva de nível pela cota de 1500 metros até os campos de altitude desta montanha, até que encontra a trilha original (vinda do Caratuva) já quase no cume.

Este caminho novo e objetivo acabou reduzindo pela metade o tempo de ascensão ao Taipabuçu, além de ser uma válvula de escape em casos de emergência. Então, como a idéia de descer pela face leste é justamente inaugurar uma nova trilha, a ajuda destes amigos seria de grande valia. Conversamos então sobre a possibilidade de convidar outros amigos para ir conosco. Concluímos que a equipe não deveria ultrapassar quatro membros, por questões logísticas. Fui incumbido da missão de recrutar mais uma, ou duas almas dispostas a encarar o desafio. Não foi fácil pensar em alguém, pois devido aos relatos dos livros de cume, e poucos encontros casuais nas trilhas, deduz-se que a maioria dos amigos montanhistas tem estado ausente das montanhas ultimamente.

Decidi ligar para o Anderson Batista. Sei que o bicho gosta de novidade, e tínhamos feito um bate-volta no Taipabuçu e Ferraria partindo da BR116, há dez dias atrás. Quando lhe fiz o convite, ficou quieto por algum tempo, e em seguida, de rompante aceitou. Já éramos três então, mas ainda faltava um. Tinha ainda uma pessoa que eu poderia convidar: Ivon Cezar, vulgo “Índio Sexta-feira”, grade amigo montanhista de Matinhos com o qual compartilhei expressivas aventuras e travessias.

Vale a pena lembrar, a inédita travessia de quatro dias feita na virada do milênio, onde partimos a noite de Bairro Alto até a Janela da Cotia, subimos a terrível e impiedosa crista sudeste do Ferraria (batizada por nós de trilha dos 500 anos, pois a fizemos pela primeira vez no aniversário dos 500 anos do Brasil), e na seqüência e de baixo de forte chuva, fizemos Taipabuçu, Caratuva, Itapiroca, Cerro Verde, Taquaripoca, Pico do luar, Ciririca, Agudo da cotia, e de lá, após andar intermináveis horas dentro de rios e mata selvagem, saímos na Graciosa, totalmente destroçados, e ainda com chuva e nevoeiro, faltando meras cinco horas para virada do milênio. Sem dúvida alguma, esse era um forte candidato para completar a equipe, a não ser por um pequeno problema.

Recentemente este veio de Matinhos para Curitiba para trabalhar na rede de farmácias Drogamed e feriado é uma palavra que não existe no vocabulário das farmácias. Meditei sobre a possibilidade de convidá-lo, e decidi não fazê-lo, pois iria ser um torturante dilema para ele abrir mão da montanha ou do emprego. Deixei que o destino fizesse a escolha. Caso o citado amigo ligasse ou aparecesse para uma visita, contaria sobre o plano e deixaria a escolha em suas mãos.

Enquanto isso tratei de estudar as cartas topográficas e fotos aéreas para tentar achar uma brecha e traçar uma rota mais obvia e lógica possível. Procurei pontos onde a curva de nível não era tão apertada, e que ao mesmo tempo nos mantivessem próximos aos córregos, tendo em vista que devido ao tempo, há muito seco, teríamos sérios problemas para obtenção de água. Decidi também verificar as condições atmosféricas para os próximos dias. Para minha surpresa, e de muitos acredito, a previsão era esplendida para todo feriado. Isso por si só já era motivo de euforia, pois mesmo se a investida falhasse, ainda assim curtiríamos um belo visual.

Após desenhar na carta topográfica que estava no computador a possível rota, imediatamente enviei por e-mail ao Paulo, o qual retornou pouco tempo depois validando a possibilidade. O mesmo me informou que no dia seguinte compraria as passagens até Terra boa, e então informei a ele que o Batista estava dentro, e que ele deveria compra então três passagens. Por fim comentei com ele que iria falar com o Vitamina no dia seguinte sobre nossos planos, e ele achou que era uma boa idéia.

Não conseguia me concentrar em mais nada a não ser a aventura, estava realmente muito animado com tudo, tanto que ao chegar em casa, a noite, comecei a arrumação da mochila, algo novo, pois sempre faço isso em cima da hora, perdendo preciosas horas de sono na noite que antecede a partida. Só ficaram faltando colocar as provisões alimentícias, cartas e fotos, pequenos detalhes que providenciaria no dia seguinte.

Logo pela manhã, liguei para o Vita, o qual como sempre se prontificou em me atender. Não adiantei nada pelo telefone. Preferi ir até a Secretaria da Cultura para contar-lhe pessoalmente, e também convidá-lo a unir-se à equipe. Ele achou a idéia interessante, e contou que há muito tempo atrás, ele, o Gavião e não me recordo quem mais, haviam descido até a usina, mas pelo Tupipiá. Informou-me que havia vários pontos de parede de rocha, onde técnicas de escalada eram necessárias. Conversamos por mais de uma hora sobre isso e outros assuntos também, porém o convite ele não pode aceitar, pois já tinha um compromisso inadiável na Ilha do Mel. Como sempre, muito amigo e acolhedor, ao se despedir desejou boa sorte para mim e a equipe, e disse que acreditava que conseguiríamos.

Na volta para empresa passo no mercado e compro os alimentos. Já na empresa, num determinado momento alguém bate. Ao atender percebo que é o amigo Cezar (Sexta) e conto-lhe o plano. Vejo o brilho nos seus olhos. Ele me diz que já faltou ao trabalho no dia anterior. Como já havia decidido não interferir em sua decisão, deixei quieto. Então ele joga tudo pro ar e diz que está conosco nesta. Mesmo sabendo que isso pode lhe trazer sérios problemas no trabalho, não consigo conter a euforia e imediatamente ligo pro Paulo, esperando que ele ainda não tenha ido comprar as passagens. Ele atende e conto que o Sexta vai também, então ele fala rindo “Então ele vai no meu lugar…” Existe um tabu entre o Paulo e o Sexta, um acha que o outro atrai mau tempo, é claro que tudo não passa de uma brincadeira, e o Paulo fica feliz em tê-lo conosco.

Desta forma a equipe se completou, e até então tudo parece estar favorável. Todos nos despedimos e ficou combinado de nos encontrarmos no dia seguinte as 7:00h na rodoferroviária. O ultimo detalhe a ser resolvido são as cartas e fotos que utilizaremos, as quais imprimi a noite, pouco antes de deitar. Ok, agora seria só esperar e ver no que isso tudo ia dar.

Rumo ao Ibitirati
Acordei as 5:00h, e as 6:45h estava no local marcado. Logo aparece o Batista, todo animado com a cargueira nas costas. Porém o Paulo e o Sexta, só apareceram minutos antes do horário da partida. Enfim estávamos bem acomodados nos primeiros lugares do ônibus, prestes a iniciar uma longa jornada. As previsões, desde cedo já se confirmavam, pois o céu estava claro e ensolarado. Assim prosseguimos viagem e no ônibus havia outros montanhistas, com os quais trocamos algumas palavras. Logo nos primeiros minutos de viagem, o ônibus fez a primeira de infinitas paradas, para o embarque de passageiros.

É difícil descrever em palavras o tamanho da injuria que esse sistema absurdo adotado pela empresa Princesa dos Campos, causa nos infelizes usuários de suas linhas. Neste sistema tirano, o motorista atua também como cobrador. A cada ponto, de trezentos em trezentos metros, um aglomerado de pessoas se amontoa a espera do dito cujo. No embarque o motorista pergunta a pessoa o destino, emite a passagem através de uma máquina e finalmente calcula o troco, isso pra cada uma das inúmeras pessoas que embarcam. Se pro motorista isso é estressante, não menos é para os passageiros, que ávidos por chegar ao seu destino, são abrigados a acompanhar impotentes o moroso procedimento.

Desumano? Com certeza! Pois como se não bastasse tudo isso, ainda são obrigados a viajarem compactados no estreito corredor do ônibus. Tenho absoluta certeza que porcos num caminhão viajam com mais conforto. Com certeza será necessário acontecer um grave acidente com muitas vítimas, para que órgãos públicos competentes percebam e tomem as providencias cabíveis.

A viajem, que costuma levar menos de uma hora, acabou com mais de duas. Descemos na ponte do Rio Tucum. Os outros cinco montanhistas pegaram carona com um saveiro, e ficamos nós e um sol de rachar na estradinha até a fazenda onde a trilha se inicia. A caminhada durou aproximadamente 45 minutos. Decidimos então utilizar a trilha original por ser mais curta. Tudo transcorreu normalmente, e na lagoa seca fizemos nossa primeira pausa para tomar fôlego.

Ali o Paulo nos informou que poderíamos nos largar na frente que ele iria atrás bem devagar, pois queria fazer suas tradicionais medições com o GPS. Ficou acertado que talvez só voltaríamos a nos ver no cume. É lógico que só se concorda com uma decisão destas quando a trilha é pra lá de conhecida, e principalmente quando o montanhista tem vasta experiência. No cume do Morro da desistência, observamos um grupo de nove pessoas que descansava. O Cezar que estava um pouco na frente conseguiu passar antes que reiniciassem a caminhada, mas eu, infelizmente cheguei depois e peguei todo aquele trafego pela frente. Era um grupo inexperiente, pois mesmo vendo que eu estava literalmente em seus calcanhares, não abriram passagem, me obrigando a “pedir licença” para passar.

Eu, o Cezar e o Batista chegamos praticamente juntos na bica, e após pegar água e perceber que o grupo se aproximava, retomamos a caminhada. A trilha e a vegetação e até mesmo os rios estavam muito secos devido à estiagem. Tal anomalia tornou a caminhada limpa, agradável e pouco desgastante dentro da mata. Progredimos rapidamente até o ultimo rio antes do A1 (1º abrigo), onde novamente enchemos as garrafas, pois certamente o filete d´água perto do A2 estaria completamente seco.

Do A1 descemos rapidamente até a cela. O ritmo caiu um pouco com a subida que começa a partir dela, aliada ao implacável sol das 14:00h direto na pinha. Encontrei o Sexta descansando no A2, conversamos um pouco e prosseguimos. O batista por sua vez já estava bem à frente. Parei varias vezes para contemplar o esplendido visual. Essa era minha 28ª vez no Pico Paraná, mas sempre reajo diante do idílico cenário como se fosse a primeira. As 14:45h cheguei ao topo. Foi muito estranho imaginar que não usaria o mesmo caminho que sempre fiz para retornar. A impressão que dava é que a verdadeira aventura ainda estava por começar, e realmente estava.

O Batista de o Sexta haviam chegado minutos antes e já descansavam sobre o cume. Eles queriam muito ir ao Tupipiá, mas já estava tarde e meu muito ritmo lento, de forma que expliquei bem o caminho, levei-os até onde o mesmo começava e desejei-lhes boa sorte. Ficou combinado que quando o Paulo Marinho chegasse partiríamos pro Ibitirati e lá os aguardaríamos já com acampamento armado. Então eles se foram. Fiquei num mirante abismal que dava visão pro Tupipiá, para tentar vê-los chegando, e às vezes voltava pro cume ver se o Paulo já estava visível também, então vejo vindo um pouco depois do falso cume, a dez minutos do topo. Aguardei sua chegada e o cumprimentei.

De volta ao mirante, vimos nossos amigos numa batalha pelo cume do Tupipiá. Pareciam formiguinhas, e nada mais os ameaçava na conclusão do objetivo. Mas ainda tinham um problema. Quando instalei o tubo de PVC do caderninho em 97, tive que encontrar uma pedra nas adjacências do topo, pois no mesmo não havia. E isso, eu tinha esquecido de explicar a eles antes de partirem. Agora, vendo-os no topo procurando pelo caderno de registro, a única coisa que me restava fazer era explicar onde estava aos berros. O vento não estava forte, mas mesmo assim foi difícil estabelecer contato. O próprio atraso das ondas sonoras fazia com que eles respondessem só algum tempo depois, e eu só escutava resmungos indecifráveis. Finalmente na linguagem restrita de “direita… esquerda… reto…” consegui guiá-los até o pedra certa. Agora estávamos desimpedidos pra prosseguir pro Ibitirati, e foi o que fizemos. Dissemos até logo a todos, e descemos pra lá.

Continua…

Texto de Elcio Douglas Ferreira com fotos de Julio Cesar Fiori

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Sobre o autor

Elcio Douglas Ferreira é um dos maiores personagens do montanhismo paranaense. Experiente, frequenta nossas serras há mais de 35 anos, sendo responsável pela abertura de inúmeras trilhas e travessias. Foi um mentores da Travessia Alpha Crucis, considerada como a maior e mais difícil travessia entre montanhas no Brasil, que ele fez pela primeira vez em 2012. Possui experiência em alta montanha, já tendo escalado O Illimani na Bolívia e o Aconcágua na Argentina em poucos dias num esquema non stop impressionante.

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