Conquista da Face Leste do Pico Paraná – 2ª Parte

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Era a quarta vez que eu seguia para esse vizinho do pico Paraná, um imenso bloco rochoso que compõe uma das maiores paredes de escala do Brasil. O inicio da descida é relativamente íngreme, e exige um pouco de cuidado pra não torcer um tornozelo ou se esfolar. O fim da descida é o União, o qual se cruza rapidamente, e então um pouco mais de subida, e chega-se ao Ibitirati. Já de cara fiquei buscando por uma provável saída a direita, onde começaríamos a trilha no dia seguinte. Como todo mato era igual, sair do topo seria o mais obvio, mas isso era algo a se estudar pra frente ainda. Agora, tínhamos que encontrar locais bons para armar barracas, o que é meio difícil numa rocha sólida e maciça. Mas pra minha surpresa encontrei um rapidamente, encostado na trilha do lado esquerdo.

Veja a primeira parte

Larguei ali mesmo a cargueira e disse pra mim mesmo: “É aqui!!!”. Enquanto o Paulo não aparecia, subi numa pedra na ânsia de ver o que tínhamos pela frente. De cara notei que o começo não seria problema. Era um terreno levemente inclinado coberto por vegetação baixa. Essa vegetação para quem desce não oferece problema, bem diferente seria se tivéssemos que subir por ela. Enquanto examinava atenciosamente, o Paulo apareceu. O chamei ele pra ver também. Sempre cauteloso, não quis opinar se era fácil ou difícil, mesmo me vendo otimista. Foi procurar um lugar pra armar sua barraca, pois não achou bom o lugar que encontrei, porém eu fiquei ali mesmo.

O lugar que ele encontrou era bom também, cabiam mais barracas e ficava a uns 50 metros da minha.Um final de dia se montava, e nada dos amigos ainda, no cume do Paraná via-se movimentação, mas não era possível identificar ninguém. Logo o sol se pôs avermelhado no oeste. Dali pra frente à noite cairia rapidamente, mas logo os amigos surgem para completar o time novamente. Comentam que não viram graça alguma no cume do Tupipiá, e que ter feito só serviu para currículo, e também uma pré-avaliação do caminho que percorreríamos no dia seguinte, pois esta montanha oferece um perfil parcial do trajeto. Foram então até onde o Paulo estava, e lá armaram sua barraca.

Mais tarde, já noite e num estado de sonolência recebi a visita do Sexta. Dividimos comidas e conversamos um pouco. A principal parte da conversa foi sobre o Batista. Este estava com receio de não concluir a travessia no dia seguinte, e se ver obrigado a ficar mais um. Esse dia a mais para ele não seria feriado, pois mora em Araucária, e o feriado era só pra Curitiba. O Sexta me informou que ele retornaria de manhã. Isso me entristeceu, pois sabia o quanto ele gostaria de seguir com a gente, mas mesmo assim tinha esperança que até o dia seguinte ele mudasse de idéia e fosse com a gente. O Sexta se foi, eu coloquei minha chave em “OFF”, e só acordei no dia seguinte.

O Grande Feito
Como sempre acordei com os primeiros indícios de alvorecer e também como sempre, comecei infernizar os amigos para que levantassem. O tempo continuava bom, e um grande clarão alaranjado se apresentava no leste. Eu estava satisfeito, pois até então, tudo corria rigorosamente conforme planejado. Comecei os preparativos para levantar acampamento, e antes do sol raiar, já estava tudo pronto. Fiquei então com muito tempo livre pra fotografar e apreciar o lugar. Fiz algumas fotos na beira do abismo, logo que o sol nasceu. Fotografei todo o perfil da trilha de Paraná desde o A1 até o cume, o conhecido disco porto, a 600 metros verticais (e bem verticais) abaixo, e a tenebrosa trilha dos 500 anos do Ferraria, cujo nome tem duplo significado, primeiro por que foi feita pela primeira vez nos 500 anos do Brasil, segundo, por que quando se esta fazendo, parece que 500 intermináveis anos de sofrimento de passam.

Coincidentemente, os três que a fizeram pela primeira vez estavam ali, Eu, o Ivon Cezar (Sexta) e o Anderson Batista. Quando fui até as barracas dos amigos, estavam terminando a desmontagem, mas o Batista estava irredutível com o seu retorno, e a gente, por nossa vez, não insistimos muito, pois era o seu emprego que estava em jogo, então só nos restou lamentar e aceitar sua decisão. Pouco antes de partirmos, o Sexta nos levou até um lugar onde o paredão se mostrava mais exposto e assustador, e realmente era. Aconselho pessoas vertiginosas nunca visitarem esse local. Fizemos mais algumas fotos e retornamos, pois o Paulo, que não nos acompanhou, já estava atônito a nossa espera.

Mochilas nas costas e fomos até o lugar que eu havia dormido. Achamos bom ir um pouco pra frente em direção ao União para aproveitar o desnível da trilha existente, mas então vimos que havia gretas profundas mais abaixo e decidimos começar do cume mesmo. Gritamos pro Batista que já estava mais à frente que esperasse. Nos despedimos dele e seguimos de volta ao topo. Ai lembrei que o Sexta estava sem facão, e eu sem luvas, e que nosso amigo não iria precisar disso no seu retorno. O chamamos de volta e pegamos esse material. Agora sim, era só achar um ponto qualquer e começar.

Vi uma pequena reentrância à direita, uns cinco metros antes de chegar no lugar que armei a barraca. Parei e disse: “Aqui começa nossa jornada!!!”, e já com o facão em mãos, dei o golpe inaugural da trilha Sudoeste do Pico Paraná. Foi um momento muito especial pra todos tenho certeza. Neste momento definimos que cada um seguiria golpeando com o facão por 20 minutos, abrindo de forma mais grosseira os fechados arbustos, o segundo faria o complemento, e o terceiro faria o acabamento final, bem como marcações com fita. Estávamos bem descansados, a descida era suave e os facões bem afiados ainda, tais virtudes refletiram num rendimento excelente, mesmo abrindo mata virgem num terreno desconhecido.

Mais a frente surgiu a primeira discussão entre eu e o Sexta por causa da forma como ele estava abrindo o caminho, mas em menos de cinco minutos já estava tudo bem de novo. Seguimos revezando, abrindo e marcando, o céu estava limpo e não havia limitações no visual, de forma que o deslumbre foi total. Olhávamos para trás e víamos o pico Paraná cada vez mais imponente, e visto de um ângulo inusitado. A essa altura, já estávamos caminhando num trecho com caratuvas, e víamos pedras expostas mais à frente. Era interessante a trilha passar ao lado delas, pois serviriam como totem natural para futuras referencias.

Paramos para descansar em cima delas, e visualizar o caminho à frente. Percebemos grandes degraus de rocha adiante, mas tínhamos esperança que não fosse necessário rapel para transpô-lo. O vento nesse momento quase nos derrubava da pedra, mas não havia possibilidade de chuva e tudo estava muito seco, o que nos preocupava com relação ao abastecimento de água. Descemos da rocha e a contornamos. Seguimos por um corredor com as pedras à esquerda por um bom tempo, num lugar que se tornará inconfundível nas futuras investidas.

Marcas com fitas azuis e brancas também foram feitas em muitos pontos de importância, além dos pés, que na parte de vegetação rasteira, deixaram um carreiro bem definido. Pouco mais a frente parecia que estávamos num leito seco de um córrego e vegetação muito densa, de forma que ficou muito difícil andar por ali. Então demos uma guinada pra esquerda e começamos subir uma pequena encosta que nos tiraria de dentro do vale. Neste momento, apesar do sol forte, era muito melhor andar pelo campo de altitude, sem a indesejável quiçaça fechando o caminho.

Enquanto o Paulo vinha mais atrás amarrando fitas de marcação em bambus, eu e o Sexta vimos que a nossa frente o chão parecia acabar, exatamente como acontece quando você se aproxima da beirada de um penhasco. Nos esforçávamos para acreditar que poderia ser outra coisa, uma maior inclinação do terreno somente, mas não deu outra. Quando chegamos mais perto, notamos que se tratava de um imenso degrau, com altura de aproximadamente 30 metros, inclinação de 90º e uma extensão incalculável.

Com toda cautela, fomos bem na beirada fazer uma avaliação. Naquele ponto, e em qualquer outro era impossível descer sem uma corda, e pior, depois desse degrau a vegetação se estendia por mais algumas centenas de metros, e daí, outro degrau parecia se armar. Não fazíamos a menor idéia se esse outro seria melhor ou pior de transpor do que esse que estávamos. Decidi com o Sexta procurar pelos lados um meio de descer. Do lado direito parecia improvável, pois se seguia vegetação baixa a perder de vista, nem mesmo com corda seria possível, por não ter pedra alguma ou arvore para ancoragem.

Só restava então o lado esquerdo, em direção ao vale abismal entre o Ibitirati e o União. Voltamos um pouco para poder caminhar em segurança e mais afastado da parede. Contamos pro Paulo sobre o problema, e nosso plano. Ele concordou e lá se fomos. Entramos numa vegetação composta de arbustos mais altos, arvores de pequeno porte, que poderiam servir como ancoragem para rapel, mas ainda tínhamos esperança de encontrar uma passagem que dispensasse tal procedimento. Descemos, subimos, descemos de novo, e nada. Poderíamos procurar mais, mas por outro lado, não podíamos perder muito tempo, então optamos relutantes pelo rapel.

O Sexta sacou a corda de 50m da mochila e começou o preparativo, enquanto isso, eu e o Paulo colocávamos as cadeirinhas, mosquetões e freios para realizar a descida. Tudo pronto, agora só precisava de um voluntário pra servir de cobaia. Eu me prestei de imediato a tarefa. A grande dúvida naquele momento era saber se a corda havia chegado até o fim do precipício. Se a altura fosse superior a 25 metros, faltaria corda, pois tivemos que dividir a mesma em duas para poder recuperá-la depois que o ultimo descesse. Atrelei-me a corda, e comecei a andar em direção a parede. Antes de iniciar o rapel, queria ver se as duas pontas da corda tocavam o chão.

Claro que além dessa preocupação, ainda tinha aquela em relação à ancoragem, será que uma arvore equilibrada na beira de um precipício agüentaria meu peso. O Paulo e Sexta ficaram de olho no aparato o tempo todo, e deram uma segurança extra também. Para nossa alegria as duas pontas da corda chegavam ao fundo com folga. Foi um belo rapel, quando terminei gritei pros amigos que o próximo já poderia descer. Enquanto o Paulo e o Sexta desciam, procurei encontrar uma continuação para nossa trilha. Este lugar era especialmente belo, composto por floresta densa, e grandes rochas com altura superior a dez metros, que criavam sombra e temperatura muito agradáveis para um descanso.

Percebi no amontoado dessas grandes rochas, uma fenda por onde vertia luz. Deixei a mochila e fui até ela para ver se conseguia um visual. Passei com certa dificuldade, mas do outro lado uma ampla visão se abria. Pude ver toda a imensa descida que ainda teríamos que fazer, cujo final dava numa bela montanha, que até esse momento ainda estava muito, muito abaixo de nós. Do outro lado dessa montanha, mais precisamente nas suas encostas e ainda muito distante aos nossos olhos, estava a antena da Copel, nosso sonhado objetivo. Lugar esse que se chegássemos, poderíamos considerar que nossa missão estaria cumprida.

Enquanto observava, o Sexta, que tinha ficado por ultimo pra descer já tinha chegado. Voltei até eles e continuamos em nossa jornada. Prevendo que poderia ter mais degraus pela frente, deixamos a corda meio na mão, e nem sequer tiramos os aparatos de rapel. O Paulo em especial, tinha uma grande preocupação, que na verdade não era em vão. Já tínhamos optado por descer uma grande parede vertical de rocha, se houvesse outras pela frente, e alguma tivesse altura superior ao tamanho da nossa corda, não poderíamos descer, nem tão pouco retornar, a não ser que escalássemos, o que seria por demais arriscado. Desta forma, ficaríamos “ilhados” no meio da descida, sem poder avançar ou recuar. Mesmo assim decidimos arriscar, pois na verdade, esse já era um risco calculado e previsto antes mesmo de sairmos de casa.

Em menos de uma hora de caminhada, essa ameaça se fez mais presente do que nunca. Lá estávamos nós, novamente diante de um grande vazio sobre a rocha nua e vertical, diria negativa até. Felizmente nesse ponto, escorria água preguiçosamente. Mesmo assim foi o suficiente para abastecer nossos reservatórios, e subtrair uma preocupação das nossas perturbadas mentes. Iniciamos logo depois os rituais para um novo rapel. Novamente eu fui primeiro. Uma grande quantidade de touceiras de capim formavam um topete sobre a parede, de forma que era impossível ver o final da mesma antes de começar descer realmente. Mesmo assim fiquei pronto para recuar, caso visse que as pontas da corda balançavam no vazio. Para nosso alívio (meu principalmente) vi que as pontas deitavam-se suavemente sobre uma rampa de rocha pouco inclinada, onde era possível caminhar, e logo a frente havia vegetação, o que era ótimo.

A parede era negativa, de forma que o rapel foi muito agradável. No platô de rocha, aguardei os amigos. Paulo pediu para fotografar, mas estávamos na sombra, e vista de baixo, não parecia muito alto, e na verdade não era mesmo, algo em torno de vinte metros, não mais. Mesmo assim fiz a vontade o amigo. Quando o Sexta chegou, recolhemos a corda e continuamos. Seguimos pela rampa de rocha enquanto deu. Mas as coisas estavam assumindo uma verticalidade assustadora, forçando-nos a seguir para esquerda e pela vegetação.

O azimute que havia sido tirado na direção da antena estava sendo abandonado, e isso não era nada bom. Nosso objetivo estava ao leste, e não ao norte. Paramos para decidir o que fazer. Concluímos que para direita também cairíamos em abismos intransponíveis. Tínhamos que continuar pela crista, mas pendendo para esquerda para interceptar o córrego que descia. Assim ficou definido. A esse ponto, todos concordavam que nosso amigo Batista fez bem em ter retornado, pois já era certo que não seria possível concluir a travessia nas horas que ainda sobravam daquele dia. Para nós, isso já não tinha a menor relevância. O importante agora era escapar daquele terreno íngreme e inóspito, encontrar o rio e achar um lugar razoável para montar um acampamento, pois tínhamos menos de duas horas de luz para alcançar tais objetivos.

Os primeiros sinais de fadiga já começavam a aparecer, após um dia inteiro de jornada. Os cuidados então devem ser redobrados, pois nesse ponto fica-se mais suscetível a cometer erros, e o facão, por sua vez, passa a ser um terrível coadjuvante para que esses erros se tornem graves acidentes. Num momento, quando descíamos pela crista, a inclinação ultrapassou 65º. Só conseguimos descer por que havia muita vegetação de bambus pra nos agarrarmos. A montanha que estava a nossa frente, já estava mais alta que nós, e nosso objetivo final, a antena, não parecia mais tão inatingível.

No leito do rio, bem mais abaixo, vimos uma laje natural de rocha nua. Imaginamos que se conseguíssemos atingi-la, poderíamos pernoitar lá. A este ponto já estávamos mergulhando numa vegetação mais alta, composta por muitas raízes expostas e com muitos degraus de rocha com altura variável entre meio e quatro metros. Em todos foi possível descer sem a ajuda da corda, graça a estas raízes. Não demorou muito a ouvirmos borbulho de água, o que recebemos com muita alegria, pois já estávamos novamente&nbsp, com muita sede. Quando chegamos, aproveitamos para descansar um pouco também.

Continua…

Texto de Elcio Douglas Ferreira com fotos de Julio Cesar Fiori

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Sobre o autor

Elcio Douglas Ferreira é um dos maiores personagens do montanhismo paranaense. Experiente, frequenta nossas serras há mais de 35 anos, sendo responsável pela abertura de inúmeras trilhas e travessias. Foi um mentores da Travessia Alpha Crucis, considerada como a maior e mais difícil travessia entre montanhas no Brasil, que ele fez pela primeira vez em 2012. Possui experiência em alta montanha, já tendo escalado O Illimani na Bolívia e o Aconcágua na Argentina em poucos dias num esquema non stop impressionante.

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