Seguíamos pela mata e pelo rio de forma intermitente, sempre tentando o que parecia ser mais fácil. Depois que os degraus dentro da mata recomeçaram, paramos de bater facão, e agora procurávamos ir sempre por perto do rio. Até o momento, não tínhamos passado por nenhum lugar que fosse possível montar um acampamento, e isso me preocupava, pois a noite chegava rápido. O terreno irregular cheio de gretas e platôs tornava perigoso nosso progresso. Começamos procurar mais avidamente por um terreno menos ruim. A noite havia chegado de vez quando encontramos um. Era próximo a margem do rio, que neste ponto corria subterrâneo. O lugar era úmido, mas relativamente plano.
Dava pra encarar sim. Já eu, achei um bloco de pedra plano no próprio rio, olhei pro céu estrelado, e decidi fazer bivaque. O Sexta decidiu subir numa pedra no próprio leito seco do rio, e gritou pro Paulo que havia um lugar plano em cima da gigantesca pedra. Disse que estava seco, e que era melhor pra armar a barraca que no lugar que haviam escolhido. O Paulo sofreu pra subir lá no escuro, mas concordou que era bem melhor e começaram ajeitar tudo lá em cima. Eu saquei tudo fora da mochila. Coloquei o isolante térmico sobre a pedra, e em cima deste, o saco de dormir. Estava pronta a minha cama.
Somente uma chuva inesperada durante noite poderia estragar meu descanso. Digamos, quase nada. Dei-me conta de que por estar andando em rio, não precisaria pegar água. Durante a noite costumo acordar com muita sede do meu popular sucão. Mas agora, minha garrafa estava vazia, e o leito do rio, seco. Eu ouvia barulho de água uns 50 metros abaixo, mas sabia que era perigoso andar naquele tipo de terreno à noite, porém sabia que não dormiria direito se não tivesse o delicioso suco, então peguei a garrafa, a lanterna e fui. Vinte minutos depois estava de volta com dois litros da preciosa.
Comemos e bebemos a vontade, e somente depois nos entregamos ao cansaço de um dia inteiro de muito esforço. A noite foi muito agradável e tranqüila. Não choveu nem ventou, de forma que todos puderam descansar a contento. Acordei com uma aurora púrpura no leste e chamei os amigos, pois havia ficado combinado que sairíamos o mais cedo possível. Mesmo sabendo que não poderíamos estar muito longe, não podíamos nos dar ao luxo de dormir mais, e desperdiçar importantes minutos. Uma noite a mais complicaria em todos os aspectos. Já estávamos com pouca comida, todos tinham que trabalhar no dia seguinte, sem contar a preocupação dos familiares, pois todos sabiam que estávamos fazendo um caminho novo e cheio de obstáculos. Então desmontamos tudo e reiniciamos a andar o mais breve que pudemos.
Logo no começo tivemos uma agradável surpresa. Em menos de meia hora de caminhada, chegamos nas rochas expostas do rio, que tínhamos visto durante a descida. Ou seja, no dia anterior por menos de meia hora que não chegamos no lugar que idealizamos. Todos ficamos pasmos quando olhamos pra trás. Um ameaçador maciço granítico que parecia tocar o infinito. Só então percebemos o monstruoso desnível que percorremos. Permanecemos ali naquele lugar hipnotizados por algum tempo. Em seguida fui olhar um pouco mais pra baixo e ver até onde ia aquela imensa laje natural. Depois de guardarmos todo o aparato de descer por corda, por achar que não mais o usaríamos, novamente nos surpreendemos. Ali estava, onde menos esperávamos o maior de todos os rapeis da viagem.
Havia três caminhos que a água seguia até precipitar-se. É lógico que neste dia o rio estava quase seco, o que nos permitiu escolher por qual desses caminhos íamos descer. Todos eram cabulosos, e a preferência foi dada ao que tinha um bom e sólido tronco por perto. Tudo certo, e eu desci, por primeiro de novo. Não consegui ver se a corda chegava ao final, pois desta vez não era totalmente vertical, e justamente por isso, não me preocupei muito, pois se fosse o caso, poderia desescalar os últimos metros da decida. Quando terminei, percebi que restou apenas meio metro de corda. Foi sem dúvida, até então, o maior rapel. Continuamos descendo, agora somente pelo rio. Nossa idéia era deixá-lo de lado ao pisar a cota de 700 metros, onde escaparíamos pela esquerda e seguiríamos de encontro à estrada que nos levaria até a torre de rádio da Copel.
Consulta ao altímetro, GPS e Bússola se tornaram mais freqüentes, bem como os mapas e fotos que levamos. Estávamos bem descansados, e ansiosos para concluir nossa aventura, de forma que baixávamos rapidamente. Em pouco tempo atingimos a almejada cota. Fugimos do rio pela lateral esquerda. Se estivéssemos certos, era só uma questão de tempo até interceptar a estrada. O ideal era chegar na antena, mas éramos cientes que atingir esse alvo com tanta precisão era uma missão quase impossível. Para nossa felicidade, o terreno e a vegetação ofereciam excelentes condições para caminhada. Era um pouco mais fechado que um bosque urbano, e seguíamos subindo por uma encosta ligeiramente inclinada.
Acreditava que ao final dessa subida daria na estrada, de forma que segui voraz rumo a ela. Mas quando lá cheguei não havia estrada alguma, mas sim, um desfiladeiro que levava ao fundo de um vale. Tentamos, antes de descer, visualizar a dita antena, ou a estrada, mas nada encontramos. Fomos rumo ao fundo do vale. Havia água lá, aproveitamos pra matar a sede e se recompor da frustração, antes de voltar a subir. Começamos tudo de novo. A subida era impiedosa e sugava nossa energia com voracidade, mas um novo topo se apresentava, e a esperança renascia. Agora tem que ser, agora tem que ser… Repetia pra mim mesmo. Mal sabia eu que a decepção novamente nos esperava. Não havia nada de novo neste novo nada. Só havia selva e uma nova decida, e depois outra subida.
Soltei a mochila no chão desanimado e deitei sobre uma espessa cobertura de folhas secas. Os amigos fizeram o mesmo. Pegamos os mapas e fotos para tentar descobrir o que estava acontecendo. Por que o que era pra estar ali não estava. Nas cartas topográficas, todas essas dobras do terreno não eram visíveis, o que nos irritou. Procurávamos enxergar a esbelta antena por entre a vegetação fechada, mas não conseguíamos. Não restava alternativa a não ser descer de novo e subir a encosta do outro lado. Isso parecia um ciclo vicioso, e todos já estavam fartos disso. Novamente descemos e recomeçamos a subir.
Num determinado ponto, achei que estávamos subindo muito, e em direção ao topo da montanha, que no caso ficava na direção oposta a torre. Então decidimos soltar as mochilas para ganhar agilidade, e procurar algum indicio da direção correta a seguir. Fui eu e o Sexta, e o Paulo ficou com as mochilas para não perdermos o ponto onde tínhamos parado. Algum tempo depois, nos comunicando aos berros, o Sexta disse que avistou algo ao subir numa arvore. Nos reunimos novamente e ele contou que viu um descampado parecido com aquele que a gente viu quando descia o Ibitirati, e que fazia parte da região onde a torre se encontrava. Mochilas nas costas e continuamos.
Andamos mais um bom tempo procurando nosso destino final. Logo olho de relance por entre as arvores e vejo algo não natural. Chamo os amigos e olhamos com mais atenção pra ver se não era uma miragem. A euforia era geral, lá estava a torre, parecia muito próxima, menos de cem metros talvez, e um pouco abaixo do lugar que estávamos. Abandonamos o caminho que seguíamos, e fomos direto rumo a ela. Descemos uns cinqüenta metros de desnível, e vimos que a mata terminava logo à frente. De súbito o chão se aplainou e um gramado apareceu, e grudado a ele, a estrada. Pouco a frente estava nosso sonhado ícone, a antena. Muitos abraços e congratulações aconteceram.
Alem da nossa comemoração, tudo mais parecia silencioso, mas não abandonado. O lugar era calmo, bonito e bem cuidado. A estrada era ladeada por grama aparada, e em alguns pontos as arvores altas se fechavam sobre ela formando um túnel verde. Do lugar da mata em que saímos a nossa direita ficava a antena, e a esquerda, no final da estrada, também havia uma construção em alvenaria que nem imaginávamos o que era. É claro que depois de soltarmos as mochilas na calçada que havia em volta da casa do transmissor, fomos com as máquinas fotográficas procurar um lugar mais alto pra contemplar e registrar a colossal visão que se apresentaria do conjunto do Pico Paraná.
Nós três olhávamos admirados, como se não acreditássemos que havíamos descido tudo aquilo, principalmente por parecer impossível. Decidi que subiria na antena, para conseguir novas imagens, e o Paulo gostou da idéia, dizendo que subiria também. Quando estava colocando a cadeirinha, o Sexta sugeriu que fossemos até o final da estrada para ver o que havia lá. Fomos todos juntos, mas deixamos nossas mochilas. Havia uma placa, pouco antes do fim da estrada. Nela dizia: “Válvula Borboleta”. Já havíamos ouvido falar dela, mas nunca imaginávamos que era ali, e agora a conheceríamos.
A válvula borboleta tem a função de interromper o fluxo da água que vai até a usina, seja para manutenção ou qualquer outro motivo que justifique tal procedimento. Um enorme portão de aço fechava a boca do túnel que levada até ela. Estava chaveado para nossa infelicidade. Mas da metade dele pra cima era grade, de forma que pudemos observar a extensão do túnel até onde o cordão de luzes composto por lâmpadas incandescentes separadas mais ou menos dez metros uma da outra permitia. Era um belo túnel escavado na própria rocha, semelhante às janelas da Cotia e Conceição, porém maior e com boa infraestrutura. Alem da iluminação, contavam com sistemas de drenagem e uma sólida pista de concreto por onde poderia, sem dúvida alguma, passar um ônibus.
Do lado oposto a entrada do túnel, havia um parapeito seguido de um enorme desfiladeiro, delineado por postes e cabos de energia que vinham da usina, e chegavam ali. A subestação de energia da usina podia ser vista ao longe e abaixo, embaçada pela nebulosidade, a oitocentos metros de desnível em relação a nós, e pouco mais adiante, a própria estrada de Bairro alto, onde nossa caminhada realmente acabaria. Antes dessa ultima pernada, ainda tínhamos que subir na torre, o que pra mim era indispensável. Com a cadeirinha, uma fita de segurança e dois mosquetões de rosca, iniciei a subida. A torre, apesar de alta, era estreita. Possuía forma triangular, e cada vértice não media mais que trinta centímetros, e jamais permaneceria em pé se não fosse pelos muitos cabos de aço que a sustentavam.
Em menos de cinco minutos estava a um segmento antes do topo. Então me ancorei com a fita de segurança e relaxei. Fiquei com as mãos livres para fotografar, e pude contemplar o visual sem preocupações. O Sexta e o Paulo pareciam minúsculos lá embaixo, mas quem roubava a cena mesmo, novamente era o Pico Paraná. Fiquei um pouco mais e comecei a descer. Em minutos a torre estava livre pro Paulo subir. O Sexta não ia, pois queria partir o quanto antes, a fim de tomar o ônibus e tentar salvar seu emprego. Logo que o Paulo terminou de descer arrumamos tudo nas mochilas iniciamos a ultima etapa da nossa aventura, sem saber ao certo quanto tempo ainda levaríamos para percorrê-la.
Fase Conclusiva
Íamos serpenteando as encostas, e volta e meia, nos dávamos de cara com o colossal Pico Paraná, não resistíamos em parar e fazer novas fotos. A estrada em si era muito pitoresca. Encravada em meio à selva e bastante inclinada, mas toda pavimentada e com grama nas laterais. Também havia um bem projetado sistema de drenagem, com canaletas dos dois lados, que a intervalos despejavam tudo encosta abaixo, e então uma nova canaleta começava, e assim sucessivamente. Havia também grades de contenção, onde se faziam necessárias. Algo realmente muito bem planejado. De tempos em tempos havia placas informando a altitude. Baixávamos rápido, e logo mais, a inclinação foi se amansando.
O tempo se fechava, parecia que iria chover, mas, no entanto, nenhuma gota caiu. Alias, durante toda a viajem não vimos chuva em hora nenhuma. Que isso sirva pra tapar a boca dos supersticiosos que dizem que todo sete de setembro costuma chover. Andamos um bom tempo em terreno semi plano, e de repente a subestação surgiu diante de nós, com o tradicional barulho de alta tensão, porém não ouvimos mais nada, além disso e não vimos ninguém também. Contornamos a mesma e vimos um prédio que certamente deveria ser a parte administrativa da usina. Ali a estradinha, que já era boa, acabou, e uma ainda melhor começou. O asfalto parecia novo, todo pintado, sinalizado e sem nenhum buraco, porém não havia veículos de nenhuma espécie trafegando por ela, apenas nós e nada mais.
O único carro que vimos apareceu muito mais além. Era uma camionete Toyota da Copel, e os ocupantes nos saudaram amigavelmente, sem jamais imaginar de onde surgimos. Logo mais vimos à portaria a poucas centenas de metros à frente. Nossa caminhada estava definitivamente terminando, mas faltava acontecer mais uma coisa pra dificultar ainda mais nossa vida. Eis que vimos passar rapidamente diante de nossos olhos, o ônibus da morosa linha que faz de Bairro Alto para Antonina. Tentamos em vão uma corrida com nossos sucatados corpos, mas quando chegamos na portaria da usina, o mesmo já estava fora do nosso alcance.
Confirmamos com a simpática porteira se aquele era realmente o ônibus que ia até Antonina e completou dizendo que o outro passava somente as 18:30, ou seja, quatro horas à frente. As alternativas que nos sobravam não eram muitas, e nem boas. Caminhar 30Km até Antonina era algo incompatível mesmo que estivéssemos descansados. Uma carona ali naquela estrada parada, também era improvável. Decidimos que era melhor relaxar e tomar um banho de rio, que precisávamos muito naquela hora. Tomamos banho sem pressa no córrego, e voltamos pra estrada, para tentar uma milagrosa carona. Durante as tentativas nem o caminhão de lixo escapou. A idéia era arrumar uma nem que fosse só pro Sexta, que precisava trabalhar. Foram muitas tentativa, mas todas em vão, até que alguém se compadeceu. Uma camionete reduziu a velocidade ao meu sinal. Eram dois senhores. Disseram que poderiam nos levar até Morretes.
Eles abriram a tampa da parte de trás, ajeitaram varias caixas de papelão que estavam lá, e nós nos acomodamos de qualquer jeito, mas muito felizes. Lá se fomos, ganhamos pelo menos duas horas antes do que seria se fosse com o ônibus. Quando saímos na estrada que liga Antonina até Morretes, vimos que logo atrás de nós vinha um ônibus da Graciosa, que ia até Curitiba. Fizemos torcidas a caminho inteiro para chegarmos na frente, e poder apanhá-lo. Isso até que aconteceu, mas quando paramos na rodoviária de Morretes, ficamos de cara com a quantidade de pessoas que havia lá.
O Sexta desceu na frente pra tentar comprar as passagens, mas logo voltou correndo e disse que só havia passagens pra 23:30, e eram apenas 16:30 naquele momento. Novamente o desanimo se instalou em nós. Mas então o senhor que dirigia a camionete disse que se nós tomássemos cuidado pra não ser vistos nos postos da policia rodoviária, poderíamos ir com ele até Curitiba. Concordamos de imediato e incondicionalmente. Ele seguiu pela estrada da graciosa, e por todos os pontos de ônibus que passávamos, dezenas de pessoas se amontoavam, esperando pelo ônibus super lotado. Naquele momento se demos conta da tremenda ajuda divina que tivemos.
Tomamos todos os cuidados para o bendito senhor que nos deu a carona não ser multado, e logo estávamos em Curitiba. Decidimos dar pelo menos dez reais pra ele tomar um café, pois iríamos gastar bem mais de fosse de ônibus, sem contar o tempo que perderíamos esperando. O Paulo e o Sexta foram o primeiros a descer. Ficaram na BR116, na altura da Av. Salgado Filho. Eu também ia descer, mas o homem disse que iria até o Portão e isso pra mim, era como estar em casa. Ele parou na garagem de sua casa, que ficava atrás do mercado Big do Portão. Eu desci, agradeci muito e dei os dez reais, ele relutou, mas acabou aceitando. Então fui até um orelhão e liguei pra mãe. Disse que estava chegando. Uma forte chuva estava se armando. Peguei um ônibus e em dez minutos estava em casa. Meia hora depois de chegar, um dilúvio descambou.
Precisa dizer mais alguma coisa?
Texto de Elcio Douglas Ferreira com fotos de Paulo Marinho