A opaca nebulosidade q tomara conta daquele inicio de manha de sábado cedia lugar a um céu azul despido de qq vestígio de nuvens, corado por um sol a pino. Foi esse quadro meteorológico q eu, a Báh (Bárbara) e a Katita (Kátia) encontramos em Cruzeiro assim q chegamos, por volta das11hrs, onde deixamos o veículo estacionado na rodoviária da cidade. Havíamos saído com ligeiro atraso de Sampa mas isso não era problema pq a pernada em questão podia ser dividida em dois dias sem problemas. E o melhor, era bem sussa e tranqüila.
Após comer um salgado e fatias de bolo regados a goles de café, jogamos as cargueiras nos ombros e atravessamos a cidade rumo a cadeia montanhosa avistada ao norte. Cruzeiro é daquelas pequenas cidades do alto Vale do Paraíba basicamente horizontais, situada aos pés da Mantiqueira – tanto q o altímetro da Báh marcava exatos 520m! – e q se desenvolveu à beira da ferrovia q ligava SP, RJ e MG e q era importante p/ o escoamento da produção de café no século XIX.
Após cruzar boa parte da cidade chegamos finalmente numa feira sabatina, q se esparramava paralela à ferrovia q dali em diante acompanharíamos por quase 24km. Difícil acreditar q por aquele trilho tão desgastado e jogado ao esquecimento já houve muito movimento. Pois bem, seguindo agora pra oeste, o trilho deixa a feirinha pra trás e o movimento parece diminuir, pois estamos já quase no limite do perímetro urbano da cidade. Casas e alguns sítios despontam aqui, mas o q mais chama a atenção é o descaso c/ a ferrovia, hj tomada boa parte pelo mato e repleta de lixo em alguns trechos, onde o nauseante odor de carniça nalgum canto invade nossas narinas. Claro q neste trechos optamos por ir pela estradinha de chão q corre paralela ao trilho.
Qdo deixamos a cidade efetivamente, após cruzar o Córrego do Pontilhão, a estrada cede lugar ao asfalto da SP-52, ao meio-dia, q acompanha o trilho ao lado, ora coberto de terra, mato ou imerso em brejos enormes. Subindo suavemente, o relevo predominante é o de mares de morros. Porem mais adiante, qdo a SP-52 começa a desviar pra esquerda, descemos cuidadosamente a íngreme encosta de pasto ate ganhar outra vez trilhos, agora passiveis de serem palmilhados, 6kms após iniciada a pernada. Mas não cruzamos nem o primeiro túnel q damos numa pequena estação, a Rufino de Almeida, onde um grupo de homens trabalhava em sua restauração. Pelas infos q coletei, há intenção a médio prazo de reavivar um trem turístico entre Cruzeiro e Passa Quatro, algo q vejo improvável diante das condições q encontramos a ferrovia durante td trajeto.
Ganhando altitude imperceptivelmente a caminhada segue sempre pro norte, onde podemos já apreciar o contraste dos mares de morro q antecedem as imponentes montanhas escarpadas na divisa estadual, mais acima. A SP-52 corre agora na encosta oposta, bem ao longe, seguindo sinuosa ate a Garganta do Embaú. Mas é ai q o mato toma conta novamente os trilhos nos obrigando a prosseguir por uma poeirenta estradinha de chão ao lado, numa região rural de Cruzeiro. O sol sufocante e sem vento das 13hrs nos obriga ao primeiro pit-stop na sombra de uma mirrada arvore, na entrada de uma chácara, onde abastecemos nossos cantis por precaução com o caseiro de plantão.
Mas logo o som alto e estridente de forró tocando nalgum lugar nos coloca em movimento outra vez, onde não demora a perceber a estradinha se afastando dos trilhos nos obrigando a subir a encosta ate ganhar o mesmo novamente, desta vez em definitivo.Mas a principio a ferrovia esta bem tomada pelo mato, o q nos faz literalmente abrir caminho em meio a voçorocas enormes de capim-gordura ressequido. Porém felizmente mais adiante o terreno arrefece de excesso de mato seco e espinhento e torna-se mais agradável de andar, ora pelo trilho ora por uma evidente picada q “costura” a ferrovia de um lado a outro.
A pernada prossegue então nesse compasso inabalável por um bom tempo, ladeando sinuosamente íngremes encostas de morros forrados de pasto sempre pro norte. Estamos no inicio da Garganta do Embaú, pto mais baixo pra travessia da Mantiqueira, já na divisa estadual. Sítios e chácaras foram deixados pra trás, assim como qq vestígio de civilização, e após mais um breve pit-stop à sombra de um gigantesco reflorestamento de eucaliptos – com direito até petiscos de coxinha congelada! – o visual se abre e a caminhada começa a descortinar enormes montanhas e maciços rochosos relativamente “próximos” numa crista única, como o Morro do Perequê, o Pico da Gomeira, o Alto da Figueira, o Jacu, o Pico do Violeiro, tds elevando-se acima dos 2mil metros! Taí uma nova dica de exploração futura! No caminho, vaquinhas pastando despreocupadamente, enormes cupinzeiros, muitas ossadas ressequidas de animais, vestígios de aves devoradas, sujeirinhas de gato-do-mato, uma seriema elétrica cruzando á nossa frente, etc .. atestam q apesar de desativado, a ferrovia tem transito intenso da bicharada, seja ela selvagem ou não!
A pernada alterna-se no aberto por encostas de pasto, com forte sol martelando nossa cachola, ora na sombra de pequenos cortes laterais na serra, q oferecem refrescante sombra, ora adentrando em pequenos focos de mata nas reentrâncias de vales laterais, onde o ziguezague pelos trilhos é necessário por conta do mato abundante forrando o mesmo. Apesar disso, o avanço é constante e sem gde dificuldade, mesmo qdo em vários trechos os trilhos estão literalmente “suspensos” devido a deslizamentos q removem a terra em sua base.
O problema surge mesmo qdo começam a aparecer os pontilhões ao longo do caminho. São diversas pontes de vários tamanhos q passam por sobre pequenos abismos ou córregos no caminho. Aí o jeito é apoiar os pés bem firmes nos trilhos evitando pisar nos dormentes de madeira, capazes de esfarelarem ao nosso peso devido á podridão. Eu e a Báh tiramos de letra estes obstáculos, mas pra Katita esta “travessia de ponte” foi uma verdadeira superação de seu medo de altura. Por sorte, vários córregos de água límpida despencam durante td o trajeto, diluindo nossa preocupação com a disponibilidade do precioso liquido pra molhar nossa goela, e as 16hrs temos uma breve parada numa destas bem-vindas bicas naturebas.
Após uma encosta coberta de um vistoso bambuzal, nos equilibramos nos trilhos de modo a evitar um mega-brejo e q nos leva ate a entrada de mais um breve túnel q cruzamos sem maior dificuldade. Mais adiante e com o dia já findando, vamos ficando de olho já nalgum lugar decente pra pernoite, de preferência plano. É ai q o trilho adentra num vale verdejante de encosta, se afastando bastante da cadeia montanhosa oposta onde perdemos de vista a SP-52, mas onde agora avistamos varias cachus espalhadas pelos morros próximos. E o paredão da Mantiqueira cada vez mais próximo!
Mergulhamos então na densa e refrescante mata pra desembocar em mais uma ponte, q cruzamos cuidadosamente, por onde corre abaixo um belo e encachoeirado rio repleto de poços e lajotas de pedras! Eram exatas 17:20 e avaliei pela carta o q parece se tratar do Ribeirão Água Limpa, perfeito pra pernoite! Descemos a íngreme piramba ate a margem do riacho e de fato nossa escolha revelou-se acertada: água de fartura e bons locais de pernoite, embora inclinados demais pra armar qq barraca.
Com tempo mais q agradável e sem vista alguma de chuva, decidimos em conjunto bivacar ao relento! Cada um busca um local pra acomodar seu isolante e saco-de-dormir, mas antes disso damos seqüência ao sagrado ritual da janta, , beneficiado por um generoso e delicioso sopão coletivo engrossado de cereais, cortesia da nossa “chef” Katita. Eu ainda me dei o luxo de tomar uma breja q levei à tiracolo e deixara gelando no riacho. Mas bastou a noite lançar seu manto negro sobre o vale q a temperatura caiu vertiginosamente e nos obrigou a encasular em definitivo, e assim tds caímos nos braços de Morpheus num piscar de olhos, tendo como som ambiente o relaxante som do riacho a nosso lado. A noite transcorreu sem nenhuma intercedência e a lua iluminou o vale de tal forma q parecia haver um poste sobre a gente! De madrugada, por sua vez, a lua deu lugar a um negrume coalhado de estrelas, perfeitamente visíveis da enorme janela entre o arvoredo sobre a gente.
O domingo amanhece tão promissor qto o dia anterior, mas o friozinho matinal gostoso nos prende a nossos aconchegantes por um tempinho a mais. Levantamos de fato somente la pelas 7:30, onde tomamos o desjejum despreocupadamente e sem pressa. Tds dormiram bem pelo visto, apesar da Katita jurar de pé junto q ouvira um bicho nas proximidades. Será?
Zarpamos uma hora depois, galgando a encosta até ganhar novamente os trilhos e por ele seguir ate o fim. Não tarda a deixar o frescor da sombra Vale do Córrego Água Limpa q logo emergimos no aberto outra vez, palmilhando encostas desnudas de pasto ralo. No caminho, vale destacar dois ptos interessantes: uma rústica igrejinha (q parecia abandonada) coroando um ombro serrano ao lado dos trilhos e com belo visual, onde um bom gramado poderia tb ter servido de pernoite se tivéssemos andado mais uns 10min, e as ruínas do q pareceu ser uma antiga estação, agora totalmente tomada pelo mato, onde um belo limoeiro abasteceu nossas mochilas pra um refresco mais tarde, no almoço.
Após mais alguns pontilhões e trechos onde a mata insistia em tomar conta dos trilhos, a direção tende a virar pra oeste, nos levando outra vez de encontro à Garganta do Embaú, onde podíamos avistar claramente a SP-52 serpenteando a encosta oposta através de imponentes montanhas. E é neste trecho q permanecemos um bom tempo, com o sol martelando nossa cachola sem dó, apesar de gigantescas espadas-de-são-jorge nos beneficiarem com precária sombra no caminho. Mas parar era impensável, pois bastava desacelerar q trocentos carrapatos escalavam nossas pernas, pra desespero da Katita q nunca tinha visto um, e pra alegria da Báh q guardava sérias intenções de cultivar um na perna pra ver ate q tamanho permaneciam parasitando seu sangue ate explodir. Mas eu não sabia o q era pior, se eram os carrapatos nas pernas ou os carrapitchos da mata q se agarravam ao corpo, principalmente no cabelo!
Novamente desviamos da rota sentido outra reentrância serrana á direita da Garganta, q parecia ser um enorme vale onde perdemos de vista a estrada á oeste. O calor estava insuportável ao ir ladeando aquela encosta alta e desnuda, mas por sorte um túnel logo adiante nos providenciou um breve pit-stop pra descanso, onde a Báh encantou-se com uma improvável ossada de anta em meio aos dormentes.
A pernada prosseguiu no mesmo compasso ate q chegamos na mãe de tds as pontes, a q passava sobre o Ribeirao Passa Ponte. Apesar do rio ser menor q o Água Limpa, a altura da ponte era quase o dobro e demandou sangue frio pra ser vencida pelos trilhos. Desta vez a Katita não se fez de rogada e evitou ir por cima, contornando o abismo por meio de uma picada q ia pela encosta, em segurança.
Cada vez mais no interior daquela reentrância da Garganta, podíamos ouvir perfeitamente um furioso rio no fundo do vale, correndo paralelamente porem no sentido contrario. E após passar por uma bela cachu despencando à nossa direita serra abaixo através de lajotas verticais, mais três pontilhões e outros dois túneis, nos vemos no q parece ser o miolo daquele rincão de Mantiqueira, emparedados por altos maciços por tds lados e cercados de sombra e vegetação abundante, à diferença do trecho anterior.
Cansados, as 12:10hrs nos brindamos com um farto almoço na sombra fresca da trilha, apesar de trocentas irritantes moscas não nos darem trégua tal qual praga egípcia. Os limões q carregávamos na mochila agora cumpriam seu devido papel, nos brindando com uma deliciosa limonada natureba q complementou o macarrão com atum q a Katita preparou com esmero e carinho. Como sobremesa, mandamos ver bolachas com doce de leite, pra perdição da Bahzita q andava meio neurótica avaliando o q ingeria conforme a composição calórica.
Fartos e revigorados, demos continuidade à pernada ate q deixamos a densa mata fechada q percorríamos – pra felicidade dos macacos-prego q faziam barulhenta algazarra nalgum canto – pra outra vez cair no aberto, já cada vez mais próximo do vértice da Garganta e com o som de veículos circulando pela SP-52 audível novamente. Estávamos finalmente quase de cara com a muralha da Serra do Túnel à nossa frente, aos pés dos majestuosos Picos do Cristal e Gomeira nos observando tal qual sentinelas rochosos!
E após o ultimo trecho acompanhando o trilho pela encosta no aberto, desta vez em fila índia com inúmeras vaquinhas no caminho, as 13:50 damos de cara com a enorme entrada q caracteriza o famoso Túnel da Mantiqueira, agora na cota dos 1080m de altitude! Um marco da Estrada Real q antecede o túnel tem o didatismo de nos explicar q a ilustre construção já era famosa antes mesmo da Revolução, pois fora uma das ultimas gdes obras do Império q contara inclusive com a presença de D. Pedro II durante sua inauguração! Alem de se tratar de um portenho de engenharia com seus 997m de comprimento sob a Serra da Mantiqueira, através dele a produção agrícola (sobretudo café!) escoava com mais facilidade de Minas a SP e RJ. E foi justamente por servir de atalho em meio à cadeia de montanhas q o local passou a ser cobiçado pelos exércitos de ambos os lados em 1932. Mais de 5mil soldados governistas foram enviados pra tomá-lo das forcas paulistas, q haviam ocupado a região logo q a revolução explodiu, em 9 de julho.
Divagações históricas a parte, era chegada a hora de mergulhar na escuridão de quase 1km do tal túnel. Respiramos fundo, ajeitamos as headlamps e lá fomos nós! Num piscar de olhos um negrume total nos envolveu e lá estávamos nós, tateando o chão irregular de forma a não nos esborrachar entre os dormentes, repletos de brejo. Como bem lembrou a Báh, o interior do túnel emula as famosas “Janelas de Cotia e Conceicão”, no Ibitiraquire (PR): é frio, úmido e o gotejamento do teto e parede é incessante. Apesar disso é uma travessia interessante pois mal se entra já se avista, bem pequenina, a “luz no fim do túnel” q é sua outra extremidade.
Uma vez do outro lado, já em terras mineiras do município de Passa Quatro, o visual muda por completo. As montanhas ficam pra trás e a paisagem recorrente é de inúmeros sítios e chácaras pontilhada de reflorestamentos de pinnus. Enfim, o trecho “selvagem” e cênico foi deixado pra trás. A presença humana aumenta tb consideravelmente, uma vez q mal deixamos o túnel havia vários turistas (daqueles trilheiros de um dia!) começando a entrar nele, já q seu acesso aqui é bem mais fácil q de Cruzeiro. Daqui tb a ferrovia é reativada com uma Maria-Fumaça q vai ate o centro de Passa Quatro, distante 10km dali, e q pelas infos q coletamos deveria passar por volta das 15:30, repleta de mais turistas.
Fim de travessia mas não de trip, após desembocar na charmosa Estação Coronel Fulgencio e passar pela bica d´água, tomamos a estrada q parte na frente da mesma e toca pra cima, sentido o bairro rural de Registro. Duro foi a Báh se desvencilhar de um cavalinho pelo qual se apaixonou. Subindo a estradinha de terra e passando por varias residências, terminamos caindo num posto de gasolina as margens da MG-152 (continuação da SP-52), onde nos informamos de busão pra Cruzeiro as 15:30. Nesse meio termo nos trocamos no banheiro e mandamos ver algumas guloseimas mineiras a venda nos quiosques do posto, pra delírio da Báh.
Tomamos o bus de volta pra Cruzeiro refazendo td o percurso do dia anterior, porem agora descendo a Garganta do Embaú pela estrada q vislumbrávamos e tínhamos como referencia durante a pernada. Curioso era ver a linha férrea percorrida sob outra perspectiva. Chegamos na rodoviária logo depois, pegamos o carro e paramos logicamente pra comemorar a pernada num grill da cidade, onde mandamos ver brejas, sucos, refris e varias porções. A Báh mandou a dieta pro espaço e nos acompanhou abocanhando nacos de lingüiça e picanha aos montes, q fariam qq vegetariano indiciá-la por crime e ocultação de cadáver sem pestanejar. Na seqüência, de bucho mais q estufado, voltamos pra Sampa onde chegamos por volta das 21hrs, prontos pra remover os carrapatos e ralados pelo corpo, porém com o espírito mto mais disposto pra encarar mais uma semana de labuta.
Dessa maneira transcorreu a Travessia Cruzeiro-Passa Quatro, um agradável programa semi-selvagem prum fds de bom tempo. É verdade q é uma caminhada bem tranqüila, cujo desnível total não vai além de 600m q por sua vez passam totalmente desapercebidos, sem maiores percalços, ideal pra iniciantes pois esta é uma trip bastante tradicional entre a moçada do Vale do Paraíba. Mas seu charme reside justamente em td a Historia q envolve tanto a ferrovia qto o Túnel. No final das contas, os paulistas acabaram derrotados na batalha da Mantiqueira nas outras frentes de combate de 1932. Mas ganharam a Constituição pela qual lutavam. Contudo, quem perdeu foi a ferrovia e o túnel, já q a derrocada do café os relegou ao abandono. Se o projeto de restauração do trem turístico entre ambas cidades vai de fato sair do papel francamente não se sabe. Até lá, a beleza deste trajeto e a imponência desta construção q interligou Minas e São Paulo continuará sendo privilegio apenas dos poucos aventureiros q visitarem a região.
Jorge Soto
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