Diários do Everest – Rumo ao cume!

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Queridos amigos. Peço desculpas pela falta de noticias, agora poderão saber o que estive fazendo nos ultimos dias. Estou perto de realizar o ataque ao cume….


27/04/10 – No Campo Base

Decidimos ficar mais um dia no campo base para o Victor fazer a ronda dos outros acampamentos e descobrir se havia mais alguma infomação sobre quando as cordas fixas seriam colocadas até o cume e se havia mais alguma previsão de tempo que confirmasse ou discordasse do que nós tínhamos. Muita coisa está em jogo em nossa decisão em descer ou não para Pamboche e toda a precaução é bem vinda. No ano passado teve um dia de bom tempo no começo de maio, dia 5, e depois disso passaram-se 19 dias sem possibilidade de cume. Não queremos que isso aconteça conosco. Que por causa da descida para recuperação percamos uma chance preciosa e tenhamos que esperar um longo tempo para uma nova chance.

O dia se passou sem grandes novidades e no final decidimos que iríamos mesmo descer.

28/04/10 – As delícias do oxigênio

Planejamos sair as 8 da manhã, mas as 10 continuávamos sentados na barraca refeitório. O dia estava lindo, o sol brilhando e nada de vento. Um tempo agradabilíssimo para sentar-se em alguma rocha, ler um livro e de vez em quando olhar a grande parede de gelo da cascata e dar graças a Deus por não estar lá. Eventualmente conseguimos reunir energia e começamos a descer. Uma vez esse grande passo foi tomado o desejo de chegar em Pamboche, 1400 metros mais abaixo nos dominou e voamos montanha abaixo sentindo-nos cada vez mais fortes e descansados. Gorak Shep, Lobuche, Dugla, Periche e Samara passaram rapidamente por nós e sete horas depois estávamos nos instalando no Sonam Lodge, um de meus favoritos da trilha toda. Arrumei meu pequeno quarto com carinho de quem vai ficar um longo tempo. Quatro noites pode parecer uma eternidade dependendo do que vem depois. Jantei com apetite redobrado, tomei 3 copos de vinho tinto australiano e assistimos um dvd. As 9 da noite fui deitar e a última coisa que me lembro é de ter sentido o conforto de uma cama plana ao invés das irregularidades das minhas várias barracas das últimas semanas.

29/04/10 – A cada dia uma mudança

Acordei 13 horas depois sem saber muito bem o que tinha acontecido. Com certeza, este foi o melhor sono em mais de um mês. Enquanto acordava pensava que estava na montanha já há 34 dias e que tinha ficado 25 dias acima de 5.000 metros, ou seja, a uma altitude incompatível com vida permanente. Os efeitos se faziam sentir. Quando fui tomar banho notei que minhas pernas tinham afinado e que com certeza tinha perdido peso.

Tomei café da manhã com calma e depois saimos para mais uma visita ao Lama Geshe Rimpoche para renovar suas bençãos. Ele recebeu-nos com seu sorriso habitual, me fez algumas perguntas em seu nepalês quebrado (ele é tibetano e fala pouco nepalês) que tentei responder em meu nepalês também quebrado. Ele então iniciou suas preçes e uma coisa estranha aconteceu. Fechei os olhos e me concentrei no suave e monótono entoar dos mantras. Subitamente visualizei várias figuras extremamente sinistras, horrorosas, irreais aparecendo em frente a mim e em seguida desaparecendo uma após a outra e ao final desta sequência apareceu Manjushiri, o bhodisatwa da sabedoria. O que me surpreendeu nisso tudo foi o fato de que eu tenho uma dificuldade enorme em visualizar coisas e desta vez as imagens eram muito claras. Sai de lá pensativo, mas de uma certa maneira feliz com o que tinha acontecido. Interpretei como uma mensagem de meu inconsciente para que me dedicasse com mais energia em adquirir sabedoria para poder tomar decisões acertadas e só assim meus fantasmas interiores desapareceriam.  

O restante do dia foi gasto em agradáveis tarefas como lavar todas minhas roupas, arrumar meu sistema de comunicação via satélite, rever minha correspondência e simplesmente deixar-me ficar na agradável sala de refeições do lodge conversando com meus amigos. Tudo o que fiz teve uma qualidade diferente, mais relaxada, mais tranquila por causa do oxigênio. Para quem nunca passou períodos prolongados deprivado deste elemento vital não sabe o quanto cada movimento sem ele custa. Já disseram que no Everest apenas viver custa e concordo 100% com isso. E isto fica ainda mais claro quando se baixa 1000 metros. De repente tudo funciona melhor. Temos mais apetite, dormimos melhor, aquela coriza persistente e aquela tosse irritativa da noite para o dia desaparecem sem até que a gente perceba. Quando notamos elas ja não estão. Pura mágica!

A noite porém, recebemos uma comunicação pelo satélite dizendo que as últimas previsões de tempo indicam que dia 6 de maio será um dia de pouco vento e com grande possibilidade de cume. Fizemos uma nova reunião, recontamos os dias e decidimos abreviar nossa estadia aqui em Pamboche. Dia 1 de maio estaremos de volta ao campo base para descansar um dia e dia 3 iniciamos o que esperamos ser nossa escalada final rumo ao topo do mundo. Sentimentos extremamente contraditórios se debateram dentro de mim ao ouvir as notícias. Por um lado me ressenti de ter de cortar este descanso que tanto está me fazendo bem. Contava com 4 noites aqui e senti uma pena enorme de não poder tê-las. Por outro lado, como não ficar feliz? Nunca pensei que pudessemos ter uma chance de cume antes da segunda quinzena de maio, provavelmente no final do mês e agora estamos contemplando subir na primeira semana! E mais ainda, se por alguma razão não conseguir o cume no dia 6 ainda posso confortavelmente ter a chance de uma segunda tentativa apos um bom período de descanso.

O grupo ficou assistindo mais um dvd mas eu preferi ir dormir muito cedo para aproveitar cada minuto de repouso de qualidade que tenha aqui em baixo.

30/04/10 – Ócio absoluto

Mais uma vez dormi mais de 12 horas e com um sono extremamente profundo. Acordei as 8 da manhã, lavei mais algumas roupas, arrumei meu quarto e decidi fazer uma siesta matutina. Acordei novamente as 10:30 mais descansado do que nunca. Passamos o dia na expectativa de que mais uma mudança ocorresse, mas ela nunca veio e nos prepramos psicologicamente para voltar ao campo base. Como eu tinha comigo uma máquina de cortar cabelo decidimos todos cortar o cabelo bem rente e fazer um time de semi carecas já que nossa expedição nem nome tem. Quando nos perguntam a que expedição pertencemos sempre ficamos um pouco perdidos em como responder.

Mais uma vez fui deitar cedo para aproveitar os últimos momentos de oxigênio abundante. A partir de amanhã terei pela frente uma subida de 5000 metros em basicamente 5 dias, 1000 metros por dia! Dá medo até de pensar…

01/05/10 – De volta ao campo base, mas recuperado

Acordamos as 5 da manhã, pois prevíamos uma longa viagem de volta ao campo base. Se demoramos 7 horas para descer provavelmente demararíamos 9 ou 10 para subir afinal são 1400 metros de desnível. O nascer do sol foi glorioso e embora estivesse surpreendentemente frio quando iniciamos a caminhar podia prever que seria um dia quente. De início combinamos que cada um faria seu ritmo e eu coloquei o ipod e ao som de The Who, primiero o Tommy de minha adolescência e depois Quadrofenia, comecei a caminhar forte e em uma hora já estava em Periche tendo ganho 300 metros. O restante do grupo ficou para trás e não vi razão de esperar por eles. As músicas se sucederam e os vilarejos também e logo percebi que chegaria de volta ao campo base em metade do empo que tinha previsto. Essas 3 noites em Pamboche foram ainda mais mágicas do que imaginava. Estava me sentindo tão forte que mesmo nas subidas íngrimes eu tinha que diminuir muito pouco meu ritmo. Só parei duas vezes para tomar refrigerantes e após 5 horas e meia estava no acampamento da Andrea para saber noticias dela. Não podia acreditar, tinha feito a subida mais rápido do que a descida e não me sentia cansado!

Fiquei uma hora no acampamento da Andrea conversando com a Mara, a base camp manager e me inteirando das últimas notícias. A Andrea continuava no campo 2 e no dia seguinte planejava ir até o campo 3. Consegui conversar um pouco com ela por rádio e ela me disse que estava super bem apesar de que sua tosse continua. Ela precisa descer por alguns dias para se livrar dela. A Mara também me contou que uma avalanche fez a primeira vítima da temporada, um húngaro morreu do lado tibetano. Na cascata de gelo não houve mudanças radicais. Teve uma grande avalanche na parede do Nuptse, mas não chegou a modificar a rota de subida. Fui então de volta ao meu acampamento e fiquei na barraca que estava quentinha com o sol da terde esperando meus companheiros chegarem. Eles tinham decidido caminhar lentamente para pouparem suas energias e só chegaram 3 horas mais tarde.

Fizemos então mais uma reunião para analizar as novidades, mas tudo leva a crer que os planos continuam os mesmos, descansar amanhã dia 2 e subir rumo ao cume dia 3. Fui para a barraca logo a pós o jantar. Agora todos os pensamentos e energias estão dedicados ao cume.

02/05/10 – Dia de incertezas e desapontamento

Não há maneira de o sono a 5300 metros ser da mesma forma que a 3900. Mesmo aclimatado como estou a esta altitude o sono aqui é supercificial e acordo várias vezes durante a noite. Também o apetite mais uma vez desapareceu e as refeições são exercícios da mente sobre o corpo. Sei que tenho que comer então como, mas sem vontade.

Durante toda a noite pude ouvir o barulho da neve caindo incessantemente e pela manhã a barraca estava soterrada por mais de 30 cm de neve fresca. Ao me dar conta da situação, claro, o primeiro pensamento foi como ficariam nossos planos com este novo fator. No café da manhã o Victor não sabia dar uma posição definitiva, preferia esperar até o meio dia quando teria mais uma previsão de tempo. O tempo estava completamente encoberto e durante a manhã continuou nevando, embora com menos intensidade. Há mil maneiras de ver isso. Por um lado a parede do Lhotse pode ficar muito mais fácil com neve, se esta neve se consolidar. Por otro, o perigo de avalanche é maior e a trilha mais pesada se tivermos neve fresca lá para cima. De qualquer forma prosseguimos com nossos planos e pela manhã fizemos o treinamento com as máscaras de oxigênio que neste ano tem novidades. Temos agora reguladores inglêses e não mais os russos que tínhamos no Cho Oyu. Eles parecem mais confiaveis e de leitura mais fácil embora pesem 200 gramas a mais. Aproveitamos para fazer o ajuste fino no restante do equipamento e deixar tudo pronto para amanhã, mesmo sem saber se subiremos ou não. Agora existem tantos “ses”. Vamos amanhã se pela madrugada o tempo estiver bom, se a previsão não for de mais nevascas, se os sherpas do Russel Brice cumprirem o que prometeram de fixar as cordas até o cume no dia 4, se nossos acampamentos 3 e 4 forem montados (ainda não estão). Como é duro lidar com todas estas incertezas! Agora que psicologicamente já me preparei para subir será muito duro ter de voltar atrás. Esta semana que tenho pela frente será uma das mais duras física e psicologica da minha vida e é muito difícil ficar nesta incerteza.

As 5 da tarde veio a confirmação de que realmente não há certeza de que as cordas estarão fixas a tempo para que possamos usar a janela de bom tempo. está tudo muito incerto e o Victor preferiu postergar nossa tentativa de cume. Ah, desapontamento! O clima em nosso grupo ficou decididamente sombrio e acabamos indo para nossas barracas. Agora só resta esperar pela nova janela e não temos idéia de quando ela chegará.      

03/05/10 – Jogando cartas e pensando

Após 4 dias de nevascas hoje amanheceu com tempo limpo e quase sem vento. Logo que sai da barraca olhei em direção a parede do Lhotse e percebi que era o dia ideal para a Andrea subir até o campo 3. Ontem teria sido o dia desta subida, mas com a quantidade de neve que caiu sabia que tinham postergado a subida. Depois, pelo rádio, fiquei sabendo que era isso exatamente o que tinha acontecido.

Passei quase todo o dia na barraca refeitório jogando cartas com o Marcos e o Rob, mas enquanto jogava parte de minha mente estava ocupada com algo muito mais sério. De todos de nossa equipe sinto que eu sou o que tenho mais problemas em me aclimatar. Abaixo de 5000 metros sou sem dúvidas o mais forte de todos, mas acima do campo base meu desempenho cai sensivelmente. E o fato de já estarmos fora da montanha por mais de uma semana começa a me preocupar. Algo dentro de mim me diz que não haverá cume antes do dia 20 de maio e posso ver que a decisão de fazer mais um ciclo de aclimatação será adiada e adiada. Provavelmente para a amioria das pessoas isso não é um grande problema, mas para mim com meu histórico de aclimatação lenta, não me sinto confortável em passar mais do que 15 dias fora da montanha. Passei o dia pensando nisso e no final da tarde já tinha decidido que gostaria de subir para mais um ciclo. Após o jantar comentei isso com o Victor e com o grupo e todos se opuseram radicalmente. Eles sentem que isso não é necessario e que é um grande gasto de energia. preferem ficar por aqui e fazer alguma atividade todos os dias, pequenas caminahdas, um pouco de escalada em gelo ou em rocha.
Fui dormir pensando nisso. De um lado tem o que sinto que seria o mais correto para mim. Meus anos na montanha me dizem que mais uma subida compensará em termos de aclimatação o que eu perderei em termos de energia gasta. Por outro, é muito ruim dividir o grupo e a pressão para que eu não faca isso é enorme.

04/05/10 – Tensão no grupo

Acordei cedo e fiquei por duas horas tentando decidir o que fazer. Quando fui tomar café da manhã tinha realmente decidido que quero subir e passar duas noites no campo 2 e tentar mais uma vez tocar o campo 3. No café da manhã coloquei minha decisão e mais uma vez choveram argumentos de porque não deveria fazer isso, mas ao final o Victor concordou que se sinto assim tão fortemente a necessidade de fazer mais um ciclo ele tentaria me ajudar, pois é claro, não daria para eu subir sozinho. Cruzar a cascata sozinho é um risco inaceitável. Me prometeu falar com mais gente e ver se tem alguem mais interessado em seguir comigo. Ele e o grupo decidiram que ficarão aqui no base mesmo. Eles sairam para uma caminhada de 4 horas e eu fiquei no campo para tomar um banho, fazer a barba e encontrar a Andrea que está descendo do campo 2 após 5 noites lá em cima.

No final do dia vieram duas informações que me fizerem ter de desistir dos meus planos. A primeira é que realmente não havia ninguem para subir comigo e a segunda é que o campo 2 está vazio. Todos os sherpas e o pessoal da cozinha desceu para Pamboche para descansar. Com isso tive de me conformr com a idéia de que provavelmente não terei outro ciclo antes do ciclo do cume. Agora é orcer para que tenha uma janela logo para que eu não perca a aclimatação que consegui nos nossos dois ciclos.

05/05/10 – Brincando no gelo

Com a longa espera que temos pela frente decidimos fazer algo todos os dias para manter o fisico ativo mas mais do que isso manter a moral alta. Passar dias e dias dentro da barraca refeitório não nos faria bem. Saimos depois do café da manhã para o glaciar aqui próximo e escolhemos o mais alto dos penitentes, uma torre de 25 metros quase vertical e fixamos uma corda se segurança (top rope) e ficamos algumas horas praticando escalada técnica em gelo. A parte mais divertida foi escalar a parede apenas com os crampons, sem os ice axes. Isso exige uma precisão muito grande na colocação das pontas frontais dos crampons e muito equilíbrio.

Ao meio dia ouvimos pelo rádio que nove sherpas e um guia do Ruissel Brice haviam chegado ao cume e fixado as cordas até lá. As portas do cume estão abertas. Perdemos esta oportunidade pois realmente não acreditávamos que as cordas estariam prontas a tempo e agora só nos resta esperar pela próxima.
Depois disso voltamos ao campo e passamos a tarde conversando.

06/05/10 – Passando um dia com a Andrea

Miraculosamente o meu programa coincidiu com o da Andrea por um dia. estamos ambos no campo base sem muito o que fazer e aproveitamos esta rara oportunidade para ficar juntos o dia todo. Por isso decretei dia livre. Meus companheiros de grupo foram escalar em rocha, mas eu e a Andrea nos deixamos ficar no calor da barraca namorando, conversando e curtindo a companhia um do outro.

 

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Sobre o autor

Manoel Morgado é médico de formação, mas trabalha como guia de montanha há 20 anos, atuando em vários países ao redor do mundo. Há 15 anos é montanhista, tendo como ápice de sua carreira a conquista do Everest e também a realização do projeto 7 cumes. Ele nasceu no Rio Grande do Sul, se criou em São Paulo e dede 1989 não tem casa.

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