Enfarinhados e encharcados – Travessia da Farinha Seca

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O convite veio pelo Douglas e, dado o histórico pregresso de roubadas em que me meti a partir de convites similares, não hesitei muito em embarcar na trip. A proposta era fazer a desafiadora Travessia da Farinha Seca em um FDS normal, ou seja, em dois dias. Para facilitar a logística, buscamos fretar uma van para o transporte entre SP e a entrada/saída da trilha. A quase impossibilidade de encontrar 15 insanos para um rolê desse acabou por se impor, e a caterva acabou por se resumir a 6 insensatos, que iriam, fosse de ônibus, de van ou a pé, dada a gana por trilhar naquelas searas semivirgens.

Data marcada, acabamos por postergar uma vez a trip em função do clima ruim. Previsão de volume de chuva expressivo tornava por demais imprudente insistir na primeira data. Deveríamos ter insistido a cautela, mas a sede de trilhar superou o receio com o tempo. Eu disse “sede de trilhar” … O grande São Pedro deve ter escutado apenas a primeira parte da expressão… tivemos fartura de águas, por cima e por baixo, rsrs… um trilheiro que andasse de nariz muito em pé, poderia se afogar nas nuvens que nos escoltaram os passos.

Uma das coisas que curto bastante no montanhismo é trilhar acima das nuvens… dessa vez, trilhamos através delas. Brincadeiras à parte, o alto nível técnico do grupo nos fez relaxar quanto ao clima. Acreditávamos, pelas previsões e estudos feitos que não teríamos problemas no cruzo dos rios, dessa vez. Era a nossa preocupação principal, dado o risco potencial, ou melhor, perigo mesmo, de cruzar o Rio Ipiranga em cheia. Estava pactuado que, caso o nível se apresentasse alterado, acamparíamos nas margens, em local seguro e aguardaríamos o que fosse para cruzá-lo em segurança. Apesar dessa cautela, nossa avaliação do tempo apontava que não teríamos muita chuva. Talvez um tempo nublado, chuviscos ocasionais e até possíveis aberturas de sol. Nesse aspecto fomos por demais otimistas, tivemos sol apenas no começo da manhãzinha de sábado. No domingo, como previsto, o nível da água nos dois rios estava bem aceitável para atravessar, porém como castigo pela soberba, trilhamos quase que sem visual nenhum.

Como combinado, nos encontramos na rodoviária do Tiete pouco após as 20:h30. Saindo da capital paulista, pegando o ônibus das 21h com destino à Curitiba, éramos em três: eu, o Douglas e o Juninho. O motorista topou quebrar nosso galho e desembarcaríamos no portal da Graciosa, ganhando quase duas horas de luz, críticas para a pernada proposta. Na primeira parada da viagem, enquanto os outros jantavam, fizemos as contas, colocamos alarmes nos relógios para que nos despertassem 02h10, cerca de 15 minutos antes do ponto de desembarque previsto.

As 2h30 do sábado, desembarcamos e atravessamos por sob a BR até o portal da Graciosa onde os nossos 3 companheiros de pernada, aguardavam: Thais (Pérola), Guilherme e Cleicimara. Passamos as sacolas com as roupas da volta para o carro do Guilherme, nos dividimos nos dois carros com as cargueiras e tocamos para a entrada da trilha. Ali, descarregamos as cargueiras e ficamos aguardando enquanto Cleicimara e o Guilherme foram deixar o carro deste no Camping do Macuco, onde terminaria nosso périplo pela Serra da Farinha Seca. A Pérola optou por fazer companhia para a Cleicimara na ida, decisão que se mostraria delicada, pois o zigue-zague da estrada de serra, mais o início das suas regras mensais a deixariam debilitada, sofrendo enjoos e se arrastando logo na primeira subida do dia.

Assim que voltaram, vestimos as cargueiras, fizemos os últimos afagos nos cachorros e iniciamos a subida para o Mãe Catira, às 3h45. A Cleicimara disparou encosta acima, nos delegando a tarefa de acompanhar a Pérola que cada pouco, fazia sucessivas paradas para nossa angústia. Tentava combater o enjoo, a noite mal dormida, a indisposição da menstruação comendo, bebendo e descansando longamente. A perspectiva de ver o sol nascer nas encostas do Morro dos Sete foi esmaecendo pouco a pouco. Procurávamos incitá-la a tocar montanha acima ou ao menos fazer paradas mais curtas, mas constrangidos pelo desconforto dela, o fizemos de forma pouco assertiva. Esse excesso de dedos seria cobrado ao final do dia, quando precisaríamos avançar até o ponto de acampamento em condições pouco dignas. Como toda subida tem seu ápice, 7h37 alcançamos o primeiro mirante, onde a Cleicimara nos aguardava. Após algumas fotos, seguimos juntos até alcançar o cruzo para o Pequeno Polegar (direita) ou cume do Mãe Catira e Morro do Sete (esquerda). Ali decidimos que as meninas seguiriam até o Pequeno Polegar, enquanto faríamos uma subida ao cume do Mãe Catira e depois um ataque ao Morro do Sete para depois alcançá-las no cume do Pequeno Polegar. O Guilherme estimou em 30 minutos para ir até Morro Sete e uns 40 minutos para voltarmos.

Chegamos no cume do Mãe Catira 8h25 de cargueira, pois pretendíamos utilizar uma ligação em crista entre esse e o Pequeno Polegar. Como toda a parte de primeiros socorros estava na minha cargueira, optei por fazer mantê-la comigo o tempo todo. Douglas, Juninho e Guilherme colocaram as cargueiras após o cume do Mãe Catira e tocamos pela intensa descida até o colo entre esses dois gigantes, visíveis da estrada da Graciosa. Na descida cruzamos por duas pequenas corridas d’agua, antes de começar a subida breve, mas intensa do Morro do Sete, onde chegamos às 9h09. Fizemos algumas fotos, registramos nomes, horário de passagem e destino no livro de cume e, ao notarmos que o tempo começava a virar para chuva, sem perder mais tempo, tomamos o caminho de volta. A subida até o Mãe Catira correspondeu ao esperado. Pagamos nossos pecados. Que não devem ser muitos, pois a subida, ainda que forte, foi vencida sem maiores percalços, entre piadas e brincadeiras. Encontramos dois grupos que iam em direção ao morro do Sete, evidenciando que aquele trecho era bem frequentado. Trocamos algumas palavras sobre a beleza do local e os planos para o FDS e tocamos em frente.

Pouco antes das 9h40 estávamos, todos, com as mochilas vestidas e decidimos não desperdiçar tempo na busca do atalho para o Pequeno Polegar, pois seria uma aposta que poderia nos complicar ainda mais, caso perdêssemos tempo adicional em encontrar a vereda certa. De forma que descemos até o cruzo, viramos à esquerda e tocamos pra baixo, em busca do colo entre o Mãe Catira e o Pequeno Polegar. Apertamos o passo, fazendo apenas curtas paradas para recuperar o fôlego, e, antes do meio-dia (11h40), sob uma garoa gelada, que encharcava até os mais secos dos pensamentos, nos reunimos à banda feminina do grupo, que inclusive aproveitara os poucos momentos de espera para travar relações com uma simpática e indolente jararaca que as aguardava a meia altura na trilha. A Pérola reportou que haviam levado quase duas horas para chegar ali, comentou que pensara (algumas vezes) desistir, mas que se sentia muito melhor, ponderou se não seria oportuno desistirmos, face a chuva que parecia que iria nos acompanhar durante o resto da caminhada. Sopesamos os prós e contras e, juntos, decidimos por continuar a caminhada, procurando recuperar o tempo despendido de forma imprevista.

Com isso em mente, recolocamos as cargueiras nos ombros, e, tentando descer céleres, mas sem despencar encosta abaixo até o vale, alcançado as 12h37. Ali, o crescimento da vegetação tornava a trilha vez por outra pouco clara, de forma que iniciamos o processo de varredura que repetiríamos algumas vezes, com o Guilherme, o Douglas ou o Juninho farejando os rastros até reencontrarmos as alvissareiras fitas amarelas 🎗e prosseguirmos na certeza de que aquele era o melhor caminho, por mais espinhos, subidas, taquaras de fogo, arranha-gatos, urtigas ou quiçaça nos reservasse. Descobriria depois, que os trechos de vegetação particularmente agressiva e espinhenta eram indicados na carta topográfica sob o abreviado “chav”. Pesquisando, conclui ser a abreviatura de “chavascal”, uma mata com abundante presença de espinhos e taquaras-de-fogo.

Cruzado o vale, retomamos a subida, agora pela encosta do CASFREI, que curta, foi vencida às 13h40. Nessa subida, o Guilherme atento percebeu que a Cleicimara claudicava pelas raízes, provavelmente por hipoglicemia, hipotermia ou uma combinação de ambos. De forma preventiva, passei a servir balas e doces de meia em meia hora. O tempo, na parte do cume estava ainda menos convidativo que dentro dos bosques de colos ou nas encostas de forma que passamos rápido por ele e buscamos o próximo desafio: a longa e árdua subida até o cume do Esporão do Vita. A descida até o colo entre os dois foi curta, vencida em pouco menos de meia hora (27 min) e dali seguimos subindo pelo leito do Rio Taquari até próximo ao cume. Numa passagem mais vertical, onde era necessário galgar uma pequena cachoeira pela mata, agarrando-se no que houvesse, o Douglas propôs um rearranjo da cargueira dela, de forma a aliviar parte do peso entre ele, o Juninho e o Guilherme. Minha mochila, otimizada ao extremo não permitia semelhante gentileza. Com a redução da carga, a Cleicimara nos acompanhou melhor no final da curta subida, conquistando o cume do Esporão do Vita às 15h10. Dali tocamos em frente, com direção ao Tapapuí, alcançado às 16h30. Passamos em seguida pelo 00B e começamos a descer a encosta do Tapapuí em direção ao colo entre ele e o Farinha Seca.
A tarde se encerrava rapidamente, de forma que todos deixamos as lanternas preparadas para pronto emprego. O Juninho e o Guilherme seguiam à frente, enquanto eu e o Douglas escoltávamos as meninas, que não demonstravam o maior dos traquejos em andar dentro do curso do rio, pelas pedras escorregadias. Talvez fosse consequência do princípio de hipotermia que nos rondava, talvez decorresse “apenas” da exaustão física… Difícil saber. Numa das lajes, a Pérola escorregou e na queda, arrastou a Cleicimara. Passado o susto e constatado que não havia ocorrido ferimentos, a brincadeira passou a ser o registro do ousado strike feminino ocorrido pouco antes, quando fosse feito o reporte da pernada. Como adiantado no campo, o registro foi preciso e digno… já as condições da queda…

Aquela brincadeira procurava aliviar a tensão causada pelo avançar da hipotermia que todos sentíamos e que nos fazia tremer incontrolavelmente a cada parada, bem como disfarçar (mal) a ansiedade de encontrarmos algum lugar minimamente razoável para o acampamento daquela noite. O pôr do sol estava previsto para 17h40, e 17h45 parecia noite avançada, tal a escuridão que nos abraçara. Finalmente, às 18h deixamos o leito do rio da fuga e começamos a subir a encosta do Farinha Seca, onde faríamos o acampamento. Eu seguia fechando a trupe e gritando aos que iam a dianteira: “15 minutos pro acampamento” … “estamos aproximando, atenção” … 200 m de distância… 100 m… 50 m… o meu GPS indicou a posição do nosso pernoite, uma área plana, pequena, entre raízes e cipós arranha-gato… mesmo assim, foi com evidente alívio que alcançamos a área de acampamento as 18h30, praticamente batendo os dentes e tiritando de frio. Rapidamente, limpamos a área da vegetação espinhenta e montamos as barracas. Dado o exíguo espaço disponível, o Juninho e o Guilherme dividiram uma barraca e as meninas, outra. Eu encaixei minha tenda numa pequena área entre as raízes das árvores, primeiro saindo da chuva, para depois ajustar ela e colocar o piso sob a área coberta. O Douglas montou a barraca dele e, em poucos minutos, todos estávamos cozinhando a janta quente e vestidos de roupas secas. Deixei os adesivos de aquecimento separados, porque após a caminhada sofrida daquela tarde, o uso deles parecia inevitável. Felizmente, acampamos a tempo de evitar o pior, mas todos percebíamos que havia sido por pouco.

Fiz um litro de chá de hortelã bem quente, sopa instantânea com queijo e proteína de soja. Depois um portentoso purê de batatas com legumes, queijos, shitake e proteína de soja. Aos poucos, pude sentir a energia voltando e consegui relaxar um pouco da sensação de urgência que me acompanhara havia várias horas. Acredito que algo semelhante acontecia com cada um dos meus companheiros de pernada. Cedi meio litro de água para as meninas e outro meio litro para o Julinho e o Guilherme, para que ninguém tivesse que voltar ao rio para coletar mais água. Por precaução, montei um aparato para captar parte do filete de água que corria pela lona da barraca, e antes de dormir, tinha pouco mais de ½ do precioso líquido para o café da manhã do dia seguinte.

Segundo dia

O alarme do relógio me acordou as 2h10 e depois de apanhar para achá-lo e desligar, virei para o outro lado e dormi novamente. Certamente, acordei outros com o descuido, peço sinceras desculpas. Felizmente, graças ao cansaço da véspera, logo o ressoar pesado voltou a fazer coro aos pingos incessantes da chuva. Acordei novamente pouco após as 5h para constatar, frustrado, que a chuva não cessara. Ante a perspectiva de retomar a caminhada ainda antes do dia clarear, a preguiça me venceu e procurei dormir mais um pouco.
Despertamos, finalmente, pouco após as 7h e nos rendemos ao inevitável, preparando os quitutes matinais, desmontando o acampamento e procurando adiar ao máximo o enfardar-se de trilheiros, com as roupas molhadas e, em parte, enlameadas. Meus equipamentos de navegação e registro, celular, GPS principal, comunicador via satélite, assim como as lanternas não foram recarregados durante a noite, por falha no banco de baterias. Surpreso por não haver outro banco de bateria disponível com os companheiros de trilha, procurei otimizar o consumo de energia deles e anotei para passar a dispor, sempre, de dois bancos de bateria. Cônscios da fria e molhada pernada que nos aguardava, tomamos cuidados adicionais, vestindo-nos com apuro para enfrentá-la, cada qual ao seu modo. Houve quem optasse por manter-se com as roupas secas, de dormir. Outros vestiram anoraques e capas de chuva, de forma a reduzir a fuga de calor para o ambiente.


Fiz a linha salomônica: meias e cuecas molhadas, calça enlameada, segunda pele de frio maior seca, capa de chuva e por cima a camiseta de trilha, molhada. Antes de vestir, as peças molhadas foram torcidas, e posso assegurar que pelo menos dois litros de uma calda marrom saíram das minhas vestes. Coloquei gorro, vesti e ajustei o capuz da capa de chuva, prendi o conjunto com o capuz da camiseta, antes de coroar o conjunto todo com o chapéu. Na arrumação da cargueira fui super zeloso para garantir que saco de dormir e roupas secas estivessem em perfeitas condições, para caso se fizesse necessário uma segunda noite naquela serra. Coloquei um adesivo de aquecimento para mãos no bolso da calca e o kit (tronco e pés) acondicionei no bolso externo da mochila. Os muitos doces do dia foram distribuídos entre os bolsos da barrigueira, assim como os remédios de uso mais provável. Divididos entre os 3 bolsos, havia diversos tabletes de doce de leite, biscoitos de palha italiana, balas, gomas de carboidrato e um tablete de doce de arroz. Arranjei os palitos de queijo em conserva para que ficassem acessíveis. Terminamos de desmontar acampamento, e pouco após as 8h30 retomamos a subida pela encosta do Farinha Seca, alcançando seu cume as 9h35. A fina garoa dera uma trégua, mas o vento constante não incentivava a permanência ali, de forma que continuamos a marcha, descendo sua encosta sudeste em busca do colo para acesso ao Morro dos Macacos, após 2h18 de caminhada, ao meio-dia, tendo passado por um pequeno promontório que nos levou a supor que estivéssemos a frente do que realmente estávamos. Em relação ao planejado para a pernada, apenas naquele momento alcançáramos o ponto de acampamento previsto para a primeira noite. Tendo começado a caminhar as 8h30, chegar ali àquela hora apontava um atraso de quase 5 horas, no que teria sido nosso “primeiro dia”.

Constatado o engano e tomada ciência de que ainda havia muito a caminhar, apertamos o passo e passamos a fazer paradas apenas para recuperar o fôlego. O ritmo mais forte, aliado a ausência de alimentação começou a cobrar seu preço, principalmente das meninas. O Guilherme percebeu que a Cleicimara tropeçava mais que o normal, o que novamente nos acendeu o alerta de hipoglicemia, de forma que passei a dividir os doces em 3 partes, instando a que comessem, mesmo contrariadas. Constatamos que, após o café da manhã, a ela não ingerira nada, pois não sentira fome… erro de principiante, a destoar numa paranaense versada como ela. Felizmente, a Pérola, mais cautelosa, havia comido algo durante a manhã. De qualquer modo, continuei a ofertar doces, primeiro de 15 em 15 minutos, depois de meia em meia hora para as duas. Caminhando devagar, farejando a passagem, principalmente nos vales/colos onde o crescimento da vegetação ou a queda de arvores turvara um pouco a trilha, alcançamos o cume do MOJUEL as 14h50. Seguimos em frente perdendo altitude entre subidas curtas e descidas íngremes e pouco antes das 16:00 alcançamos o cume do Jurupê-Açu, com 1.112 m de altitude. Contornamos o cume e partimos para o Jurupê-Mirim, com 1078 m de altitude, alcançado as 16h44. O entardecer lúgubre nos alertava para que adiantássemos a caminhada, no possível. Não havia mais margem para que fizéssemos a descida do Morro da Balança com a luz diurna, mas o receio que as lanternas não suprissem a luz necessária nos fazia buscar protelar o seu emprego. Todos deixamos as lanternas de fácil acesso e apertamos, dentro do possível pro grupo, o passo em direção ao Morro da Balança, último cume antes de começarmos a descer, quase que na vertical em direção ao vale do rio Ipiranga.

Passamos ao largo do cume do Morro da Balança, já empregando as lanternas e, diante da sequência de delicadas e perigosas desescaladas, me ofereci para transportar os bastões da Pérola e o da Cleicimara, de forma a lhes permitir o uso de ambas as mãos e evitar que os bastões, mal-arranjados nas cargueiras, acabassem por enroscar em alguma raiz, causando um acidente, talvez até grave. De modo que os arranjei no punho esquerdo, reduzidos a sua menor extensão, deixando a direita livre para agarrar no que pudesse ajudar a não despencar e voltei a descer, fazendo o fecha do grupo. A descida do Morro da Balança, para usar um eufemismo, constitui-se de um desescalar-sem-fim de pirambeiras. Seguimos descendo pelo ombro da montanha, cruzando nascentes e evitando as agudas grotas que surgem ora à direita e ora à esquerda. Observando que o cansaço ameaça vencer a Cleicimara, e lembrando da informação lida há um tempo que a carga transportada nos pés era equivalente ao quádruplo da mesma carga transportada na cargueira, pedi a ela que me deixasse levar também suas perneiras, que insistiam em enganchar na infinidade de galhos e raízes pelas quais íamos descendo, por vezes nos equilibrando sobre elas, outras tentando desviar delas.

Numa passagem de desescalagem vertical mais extensa, onde as lanternas não permitiam ver o fundo do abismo, a Pérola chorou… o Juninho, em meio ao lance de desescalada, interpelou de que aquilo não resolvia a descida, ele mesmo agarrando-se às raízes, lhe ajudava a escolher onde posicionar as mãos e pés… ao que parecia, a lanterna dela, de pilhas, começava a fraquejar… de forma que, de cima, somei minha luz à do Juninho… desse momento de angústia e transbordar de incertezas, o diálogo, com certa licença poética, pode ser visto quase como uma síntese da pernada:

“Não adianta chorar. Calma e anda”

“Choro também é terapêutico, sabia? “

“Então engole a terapia e anda”

Seguimos desescalando patamar por patamar, e com ambas as mãos ocupadas, me distrai numa passagem escorregadia de pedra mais vertical e despenquei um metro e pouco, por sobre a Cleicimara. Felizmente não houve nada mais grave, mas o descuido me assustara, não nego. Fosse em uma passagem de maior exposição, o acidente poderia ter sido bastante grave. Pedi ao Juninho que colocasse as perneiras da Cleicimara em sua mochila.

Nessa hora, a exaustão física da Cleicimara era algo por demais evidente, pequenos degraus, de 40, 50 cm eram transpostos pela técnica de sentar-se (cair no chão mesmo) e escorregar até o nível seguinte. Quando ela “brincou” que a deixássemos ali, que seguiria no dia seguinte, não havia como não reconhecer que ela havia alcançado seu ponto de ruptura físico-emocional, quando o cansaço e a exaustão fazem com que se entregue os pontos e aceite-se qualquer consequência por um descanso. Até ali ela andara protelando aquele momento, cacifando cada passo, vencendo cada metro na vertical com mais garra que condições, se mantendo em pé e nos seguindo apenas pela inércia da determinação. Mas ali, o limite havia sido alcançado. Sem uma mudança grande de condições, ela entregaria os pontos. Abandoná-la não era opção. Se ficasse um, ficaríamos todos. Lembrei que alguns haviam optado por permanecer com as roupas secas, de dormir, naquela manhã. Uma noite a mais, a menos que categoricamente inevitável, seria aceitar um perrengue evitável. Sem titubear, disse-lhe que me passasse a sua cargueira e continuasse, agora sem carga. Tentei vestir essa segunda cargueira por sobre a minha, mas as correias eram curtas para que ficasse bem arranjada, de forma que não davam firmeza para que a transportasse assim. Ela ficava caindo para o lado, com as correias me apertando o pescoço e atrapalhando muito o avanço. Nos trechos verticais poderiam me desequilibrar e causar um acidente, então pedi que fizessem uma breve parada para arranjar as mochilas. Com a ajuda do Juninho que pegou boa parte do que era volumoso na cargueira dela e transferiu para a sua, consegui liberar espaço para colocar a minha cargueira dentro. Agora em 6 trilheiros e cinco cargueiras, vesti minha nova consciência e retomamos a descida, sob uma declividade menos intensa, enquanto nos aproximávamos do rio Ipiranga.

Pouco após a 1h de segunda, alcançamos o Ipiranga, que felizmente apresentava condições de transposição. A condição da Cleicimara se degradara um pouco mais, com evidentes sinais de hipotermia somando-se aos de exaustão física. Os tropeços eram mais frequentes e, notava-se alguma confusão nas respostas. Sabedores da criticidade da situação, atravessamos, eu e o Douglas, para verificar se a trilha seguia na outra margem, sinalizada na margem do outro lado e constatada a sequência, tratamos de preparar as coisas para cuidar da Cleicimara. Abri minha nova consciência, e em suas entranhas alcancei os bolsos da minha velha companheira, retirando os doces remanescentes, bem como o kit de adesivos de aquecimento de emergência. Quando ela nos alcançou, a sentamos sobre uma rocha à beira do rio, retiramos sua blusa encharcada, fizemos com que aceitasse os adesivos de aquecimento, colocando próximo ao peito os menores, para os pés e na região do estômago o maior, para tronco. O Douglas vestiu nela o agasalho dele, que estava seco e aquecido, distribuímos uns biscoitos wafer de baunilha quase como ração e retomamos a caminhada, com a intenção, de caso fosse necessário, preparar alguma refeição quente ao chegar na estrada, quando as lanternas seriam menos necessárias. Nesse momento, meu GPS principal, estava com 4% de bateria.

O fato de termos cruzado o Ipiranga, trazia algum alento, tanto pelo potencial de risco de termos problemas no rio São João que já se apresentava bastante menor, como pela proximidade do final da caminhada, foi uma injeção de ânimo no grupo. A partir do Rio Ipiranga, as fitas passaram a ser brancas. Até o rio Ipiranga se alternaram entre amarelas e verdes luminescentes.

O andar vacilante da Pérola me alertou que a sua lanterna finalmente entregara os pontos, mal iluminando alguns poucos metros a sua frente, de forma que lhe cedi uma das minhas reservas, que sabia estar com carga plena. Mesmo assim, por precaução lhe orientei que utilizasse na potência intermediária. Com a condição de iluminação retomada, continuamos a subir e descer pequenas inclinações, alcançar a margem esquerda do Rio São João, pouco após as 2h30. Novamente, cruzamos o rio a frente dos demais e buscando, encontramos apenas uma marca, antiga, de trilha ao lado esquerdo do alambrado da Usina do Marumbi. Seguimos em frente, subindo suavemente até alcançarmos a estrada, pouco após as 3h.

Nesse momento, nos dividimos em duplas, com os mais céleres a frente (Douglas e Guilherme) para adiantar o banho e as arrumações no Macuco. A dupla Pérola – Juninho seguiu por um tempo junto comigo e com a Cleicimara, que tomada de dores, escolhia como dar o próximo passo. Certamente, aqueles lajeados da estrada foram os metros finais da sua via crucis particular. Passamos em total silêncio pelo IAT e, pouco antes das 4h chegamos ao estacionamento.

Em função do adiantado da hora, pagamos dobrado pelos banhos. Seria mentira dizer que foi um dispêndio malgasto. A água morna me fez reviver e poder vestir roupas limpas e secas…. ah, quase um paraíso. Banho tomado, mochilas arrumadas, pouco após as 5h partimos em 6 esfarinhados, sovados e puídos trilheiros (porém secos!) e 6 cargueiras para buscar o carro da Cleicimara, no estacionamento do alto da Graciosa, por onde entramos na trilha.

 

Recuperado o carro da Cleicimara, agora em condição de maior conforto, seguimos até um posto para o café da manhã, preterido pela Pérola, que estava em Nárnia, vendo de recuperar o sono do domingo. O pessoal brincou de pedir uma chuleta com fritas, para o café da manhã… eles brincavam, eu falava bemmm sério, rsrs. Em seguida, deixamos a Cleicimara próximo da casa dela e, seguimos em 5 no carro do Guilherme até a rodoviária. Conseguimos pegar o ônibus das 9h40 para SP. Felizmente, o ônibus estava vazio, de sorte que nos espalhamos pelas poltronas e adormecemos com a sensação de completitude pela superação das dificuldades. Na parada do almoço, a chuleta com polenta não escapou… por pouco, não roemos os ossos ainda. Antes de terminar o dia, eu faria mais duas lautas refeições. O corpo gritava pela reposição das energias consumidas…

Trilhar por onde passamos, mas condições em que o fizemos e sem intercorrência mais grave, só foi possível pelo profundo comprometimento de todos, cada um cuidando de si e dos demais. Agradeço sobremaneira à Deus e a vocês, pela superação desses “poucos” quilômetros.

Houve um tempo tenebroso em que “tirar farinha” era eufemismo para violência contra a mulher. O título resgata esse sentido, a travessia sovou a todos nós e de forma mais intensa, às mulheres do grupo. Façamos, cada um, o melhor para que esse seja o único tipo de violência que nossa sociedade aceite contra elas. Mesmo sovadas pela trilha, elas demonstraram que lugar de mulher é onde ela quiser estar.

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