Quando estive no Sajama, passei três noites no acampamento alto, à 5700 metros, na espera da melhora do tempo. Enquanto isso, 14 pessoas, entre guias e clientes, estiveram lá em cima conosco e desistiram e assim pude perceber como funciona o esquema deles.
Uma montanha como o Sajama pode ser escalada em 3 dias se a pessoa estiver bem aclimatada e se o tempo colaborar. Geralmente quem vem da Europa não está muito a fim de passar desconfortos e como a moeda deles vale muito por aqui, eles não pensam em economizar e como o boliviano é demasiadamente atencioso, então começam haver abusos.
Na aproximação do acampamento base, ninguém carrega mochila, pois elas vão para lá no lombo de mulas. Isso é uma pratica normal, até aí nada demais. Depois, no trekking de aproximação até o acampamento alto, aonde as mulas não chegam, seria a vez de pôr as mochilas nas costas e subir, mas isso não acontece, pois com apenas 30 dólares paga-se um carregador, de sandálias, para levar suas coisas até o acampamento alto.
O cliente não tem o que se preocupar, ele vai com uma mochilinha pequena nas costas, levando seu suco e sua máquina fotográfica para registrar sua “escalada”. Quando chegam no acampamento alto, lá está sua barraca montada, junto com a barraca refeitório onde o cozinheiro já os espera com o prato do dia, comida de verdade levada nas costas de pessoas vestidas em farrapos.
No dia seguinte, se o tempo está bom, eles vão para o cume, isso sem antes ir à barraca refeitório para ganhar a energia necessária para a empreitada. Acontece que o tempo estava ruim, e o vento levou a barraca refeitório junto com a barraca onde dormia o cozinheiro e o guia, que sem jeito quase bivacou em meio à tormenta, se não fosse por nossos colegas catarinenses Gabriel e Diogo que insistiu que se fossem fazer isso iam congelar antes do amanhecer. Eles dormiram na barraca dos clientes que ficaram chateados com o abuso. No dia seguinte todos desceram…
A história se repetiu nos dois próximos dias. Clientes sobem e descem. Guias, sem querer dar o sangue pela empreitada, tratam de desanimar os clientes, pois o vento iria matá-los. Outros mais resistentes até tentaram o cume, mas não adianta, como uma pessoa que é incapaz de carregar uma mochila vai ter condicionamento físico para fazer uma montanha de seis mil metros, ainda fora das melhores condições de tempo?
No Illimani a mesma coisa. Desde 2002 eu vejo europeus fortes, com 1,90 de altura e muita experiência em rotas técnicas nos Alpes, largarem suas mochilas de 30 quilos nas costas de uma cholita de 1,40 de altura, vestida de saia e sandália para que ela leve as tralhas dele desde os 3800 metros de Pinaya até os 5400 de Nido de Condores. Por incrível que pareça a índia com todo aquele peso faz o percurso mais rápido do que o super alpinista gringo que paga a mulher com aquele ar de “ah, que barato”!
Estes abusos ocorrem pela desvalorização cambial das moedas dos países pobres e também pela desvalorização da mão de obra de quem informalmente trabalha no montanhismo. Aqui na América do Sul temos uma infra-estrutura de montanhismo muito mais precária que a da Europa, com seus refúgios, suas previsões de tempo precisas e seus resgates certos. Aqui, fazer montanhismo é muito mais comprometedor e por isso não é tão comum a repetição de rotas técnicas.
Na Europa o alpinista está acostumado a fazer rotas técnicas, levando suas pequenas mochilas com equipamento e nada mais. Ao término do dia, eles chegam à um refúgio, tomam uma Coca Cola e comem uma refeição de verdade sentados numa mesa. Depois ligam pra mulher em casa e vêem pelo celular a previsão para o dia seguinte, para ver se vai dar pra sair aquele TD+ na montanha.
Nos Andes, com exceções, as montanhas precisam de longas aproximações, há poucas informações sobre as rotas, não há resgate e não há luxo, mas quando estamos em um país onde a região montanhosa é super populosa como na Bolívia e no Peru, o conforto vem do trabalho do índio, que o faz sem o mínimo de equipamentos necessários, como botas ou abrigos para o frio e até mesmo sem luvas ou mochilas adequadas.
No Nepal aconteciam os mesmos abusos, pois gente disposta a trabalhar sempre há, as vezes demais e a concorrência faz com que eles se arrisquem muito e cobrem pouco. Com a criação do SPCC, a expedição que contratassem um sherpa sem que ele tivesse os equipamentos mínimos, eles levavam multa. Aqui ainda não tem um orgão que regulamente as escaladas, os abusos continuam acontecendo e cedo ou tarde alguém vai ter problemas com isso e será certamente o povo pobre que trabalha carregando os equipamentos dos escaladores.
Montanhas acessíveis como o Huayna Potosi, Illimani, Sajama, Condoriri, entre outras, acabam sendo super saturadas de gente que não hesita em pagar seus mordomos, enquanto outras montanhas mais distantes, que necessitam aproximação longa e são mais remotas, como as da Cordilheira do Apolobamba, ou outras menos conhecidas da Cordilheira Real, como o Chachacomani, Illampu ou Ancohuma ficam vazias, à espera de aventureiros e montanhistas de verdade.
Por fim o que menos se vê são alpinistas fazendo estilo alpino. Andinistas mesmo são estas pessoas que trabalham por tão pouco nas montanhas que são seu quintal. Imaginem se eles quisessem fazer cume. Seriam os novos Sherpas do mundo, mas nunca são reconhecidos, mesmo que tenham ajudado tanto gente a chegar no cume de suas montanhas.