Expedição Condoriri e Illimani – Bolívia 2018

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No início do ano, enquanto planejávamos o roteiro das próximas expedições em alta montanha, decidimos que era preciso melhorar nossa técnica de escalada em gelo. O ano de 2018 seria então dedicado a montanhas que tivessem uma dificuldade técnica superior a outras que havíamos escalado antes, pois a única maneira para conseguir escalar melhor é escalando mais!

Em maio viajamos para a Bolívia com o objetivo de escalar o Condoriri (5648m) e o Illimani (6438m).  Ambas as montanhas fazem parte da Cordilheira Real e se destacam na paisagem por sua beleza. Para nós seriam dois grandes desafios.

Nessa expedição, pela primeira vez tivemos a ideia de registrar nossas experiências em um diário.

20/05 – Aclimatação em La Paz (3800m)

Assim que desembarcarmos em La Paz já começava o processo de aclimatação: pouco oxigênio, ar seco e frio e um visual incrível da cordilheira dos Andes. Teríamos apenas um dia na cidade, mas seria o suficiente para passear um pouco, fazer algumas compras de última hora e organizar mochilas e equipamentos para a expedição.

Para nossa surpresa, presenciamos a comemoração da Fiesta Del Gran Poder em pleno centro da cidade. Pelo que pudemos entender, a festa seria equivalente à celebração do feriado de Corpus Christi, mas ali traduzia-se num grande desfile de bandas e agremiações folclóricas locais.

21/05 – Subida ao Campo Base do Condoriri (4600m)

Logo após o café da manhã, o guia chegou ao hotel para nos buscar. Alex havia sido nosso guia também na expedição do ano anterior, o que nos deixava muito confiantes. Sabíamos que era um ótimo profissional e já podíamos considerar como um amigo.

Por volta das 13 horas, o carro nos deixou na entrada do Parque Nacional Tuni Condoriri, onde tivemos um ótimo almoço, previamente preparado pela cozinheira da equipe. Ali seria o ponto de partida para o trekking de aproximação ao campo base.

Marcio e Michele na aproximação do Condoriri

A caminhada era muito agradável, através de um de um vale com vegetação rasteira, cruzando duas pequenas quedas d’água. Vários rebanhos de llamas, alpacas e ovelhas completavam a paisagem pitoresca dos Andes.

Seguimos por uma trilha bem demarcada. Nosso guia à frente, mantinha o ritmo bem tranquilo para evitar um desgaste físico que pudesse comprometer o início da nossa aclimatação. Nas mochilas, somente água e casacos. Todos os equipamentos e comida seriam transportados por cavalos.

Após uma hora e meia de caminhada, chegamos ao campo base. Um pouco cansados, mas muito bem dispostos. Encontramos nossas barracas já montadas quando chegamos. No refeitório, dentro do refúgio, fomos recebidos com um delicioso lanche: bolo, chá, café e biscoitos. Comer um pouco e hidratar muito, era tudo que precisávamos naquela noite.

O dia seguinte seria apenas para descanso. Um dia livre para fazer curtas caminhadas e tirar muitas fotos, antes de subir o Cerro Áustria.

Laguna Chiar Khota

23/05 – Subida ao Cerro Áustria (5350m)

Acordamos por volta das 7 horas da manhã e, ao abrir a barraca, percebemos que um rebanho de llamas nos rodeava. Não imagino o motivo dessa visita assim tão cedo, mas com certeza elas tornaram a paisagem ainda mais espetacular.

Após um café da manhã reforçado, partimos em direção ao Cerro Áustria, com o objetivo de completar mais uma etapa no processo de aclimatação, superando a cota dos 5000m de altitude.

A primeira parte da trilha é uma caminhada leve, em curvas de nível, À medida em que íamos subindo, já era possível ver lá embaixo nosso acampamento e a Laguna Chiarkota. O dia estava ensolarado, sem vento. Nos sentíamos muito bem e pudemos seguir num ritmo bom. Apesar de se tornar mais íngreme na segunda metade do caminho, a subida não era muito acentuada em nenhum momento e a trilha não oferecia dificuldade técnica.

Após pouco mais de duas horas e meia de subida, chegamos ao cume do Cerro Áustria. De lá, uma vista incrível da Cordilheira Real.  Distante no horizonte, também era possível ver o Lago Titicaca. Passamos cerca de quarenta minutos sentados, admirando as lindas montanhas à nossa frente. Animados com a paisagem, comemos um sanduíche olhando fixamente para o Condoriri.  Em nossas mentes, tentávamos fazer um desenho imaginário  da rota que nos levaria até o cume daquela montanha…

Cume do Cerro Austria

24/05 – Treinamento no Glaciar

Continuando nosso plano de aclimatação, havíamos planejado uma caminhada até o glaciar para revisar as técnicas básicas de escalada em gelo. Alex nos explicou que a escalada do Condoriri apresentava trechos mais técnicos que poderiam chegar a 80 graus de inclinação. Apesar de já termos alguma experiência em travessia de glaciares, esta seria uma escalada mais difícil, portanto, revisar nossos conhecimentos era fundamental.

Treinamento no glaciar

O treinamento no glaciar foi uma excelente oportunidade de aprender um pouco mais sobre os nós utilizados, técnicas de rapel e procedimentos de segurança. Também foi o momento de relembrar como é cansativo caminhar com as botas duplas. Principalmente quando só fazemos isso uma ou duas vezes ao ano!

De tarde, ao chegarmos de volta ao acampamento, Alex nos disse que havia decidido atacar o cume diretamente a partir do campo base, no dia 26. Essa era uma dúvida que tínhamos desde o início: montar um acampamento alto a 5000m e atacar o cume no dia seguinte, ou subir diretamente do campo base.

A vantagem de montar um acampamento alto seria economizar cerca de três horas de subida no dia do ataque. Mas o contraponto ruim seria o grande desconforto de passar uma noite num acampamento precário, com pouca água e pouca comida.

Após a subida ao Cerro Áustria e o treinamento no glaciar, Alex considerou que estávamos com um bom ritmo de caminhada e nossa melhor opção seria atacar o cume de uma só vez. Com isso, ganhamos um dia de descanso para aproveitar a tranquilidade da montanha.

25/05 – Dia de Descanso

O que parecia ser um dia entediante de descanso, acabou se tornando divertido. Logo pela manhã, Alex decidiu ir pescar trutas no riacho perto da Laguna Chiarkota e nos convidou a fazer companhia.

Apesar de parecer contraditório, boa parte do tempo que passamos na montanha era dedicado a descansar. Fazia parte do período de aclimatação, mas às vezes nos dava a sensação de perda de tempo. Não havia como não ficar ansiosos com a escalada que estava por vir. Inevitável pensar “podíamos ter subido hoje mesmo ao invés de ficar dentro dessa barraca!” Mesmo assim, confesso que tivemos uma ótima manhã na beira do rio tentando pescar. Sem falar que Alex garantiu seis trutas para o nosso jantar!

Acampamento base do Condoriri

À tarde aproveitamos para arrumar as mochilas, roupas e equipamentos que usaríamos na escalada. Como de costume, na véspera do ataque ao cume, jantamos bem cedo. Às 18h já estávamos recolhidos na barraca tentando descansar. Afinal, à meia-noite nosso despertador iria tocar.

26/05 – Ataque ao Cume do Condoriri (5648m)

Alguns minutos antes de ouvir o som do despertador, já estávamos acordados. As horas de sono foram poucas, mas suficientes para renovar nossas energias. Ao sair da barraca, encontramos uma linda noite estrelada, bem iluminada pela lua e sem nenhum vento sequer. Traduzindo em termos técnicos: o clima perfeito para escalar!

Dentro do refúgio, a cozinheira já havia preparado nosso dejejum com chá, pães, geléia e mel. Claro que não conseguimos comer muito, pois estávamos ansiosos para partir.

Por volta de uma hora da manhã iniciamos a subida. Imagino que a temperatura estava cerca de -5 graus e, portanto, não precisamos usar nossos casacos de pluma. Na mochila, levávamos três litros de água, um sanduíche e vários pacotes de gel energético nos bolsos. Quando se está no meio de uma montanha, sentido frio, cansaço e caminhando por horas seguidas, a única solução para tentar repor as energias pode ser um pacotinho desses.

Alex havia nos dito que o horário máximo para chegar até o cume era meio-dia. Depois disso, a descida de volta se tornaria muito perigosa devido ao derretimento do gelo nos trechos mais técnicos. Mesmo tendo optado por subir direto do campo base, esse tempo nos parecia suficiente.

A trilha começava com uma subida longa e pouco íngrime, por uma morena de terra e pedras soltas. Após cerca de duas horas caminhando por esse terreno, começamos a margear um paredão. A subida então se tornava muito acentuada, com pequenos trechos de escalada bastante expostos. Quase chegando ao campo alto, nos encordamos e seguimos por mais dois lances escalando as rochas. Esse talvez nem  seria considerado um trecho muito difícil, não fosse pelo fato de estarmos no meio da madrugada, a quase 5000m de altitude, pisando com as enormes botas duplas em rochas quebradiças.

Ultrapassados aqueles obstáculos, fizemos uma curta parada para beber água, comer algo e colocar os crampons. Eram cerca de 4 horas da manhã e iríamos encarar a longa travessia pelo glaciar. A subida era contínua e acentuada, porém as condições da neve estavam boas. Cerca de duas horas depois, já bastante cansados, chegamos ao início da canaleta, junto com os primeiros raios de sol.

Este talvez seja o trecho mais famoso e temido por muitas pessoas que descrevem a escalada do Condoriri. O primeiro impacto realmente não era muito encorajador. Tratava-se de uma estreita parede de gelo, cercada por rochas quebradiças, de aproximadamente 80m. Iniciamos a subida utilizando técnicas de escalada vertical e Alex seguiu guiando nossa cordada. A parede estava com uma inclinação de aproximadamente 80 a 90 graus nos 2/3 iniciais. A partir daí, tornava-se uma escalada mista com gelo duro e rochas até o final.

Durante a subida da canaleta, chegamos a nos questionar se teríamos condições físicas e técnicas de continuar até o fim. Mesmo assim, conseguimos manter a concentração e a motivação para seguir em frente. Após cerca de uma hora, superamos esse trecho e chegamos à crista que levaria ao cume.

A crista não apresentava grande dificuldade técnica, mas, por se muito exposta, seria um desafio mental. Iniciava-se com uma grande inclinação e depois seguia por um trecho menos acentuado, porém ainda mais afiado.

Pouco antes das 9 horas da manhã conseguimos chegar ao cume! Uma mistura de exaustão e felicidade nos fez demorar ainda alguns minutos para perceber o que realmente havíamos alcançado e só então pudemos apreciar a vista deslumbrante de todas as montanhas que nos cercavam.  Logo em seguida, já começaríamos a longa descida de volta ao campo base.

Michele e Marcio no cume do Condoriri, Bolívia.

 29/05 – Subida ao Campo Base do Illimani (4400m)

Após os dias de aclimatação e a escalada do Condoriri, voltamos a La Paz, onde passamos duas noites. Nesse intervalo, aproveitamos para descansar, dar notícias à família e fazer fartas refeições.

Pela manhã Alex nos buscou no hotel e partimos para a etapa final da expedição: escalar o Illimani. Saímos de carro numa viagem de cerca de quatro horas desde La Paz até o povoado de Pinaya. A estrada é longa e sinuosa, cruzando vales e recortando as montanhas. Pelo caminho, pequenas vilas de casas muito simples e nenhum outro veículo além do nosso.

Aproximando do campo base do Ilimani.

Chegamos em Pinaya por volta do meio-dia, descemos do carro e tivemos um almoço improvisado bem no meio da pracinha da cidade. Logo em seguida, Alex foi contratar o serviço de carga de mulas para transportar todos os equipamentos até o campo base. Quase sempre esses transportes são contratados com antecedência, mas não significa que seja uma tarefa muito simples… Na hora de carregar as mulas é comum haver uma demorada negociação de valores. Desta vez não foi diferente. Aguardamos mais de uma hora até que conseguissem combinar um preço pelo serviço.

Terminadas as negociações, tudo pronto, começamos nossa caminhada rumo ao campo base. O trajeto era um pouco acentuado no início, mas a trilha não era muito longa. Então, após cerca de uma hora e meia, já estávamos no acampamento.

Ajudamos a montar as barracas, tivemos um belo jantar e assistimos o sol se por enquanto as luzes de La Paz começavam a se acender no horizonte. Nos recolhemos cedo para dormir, com a certeza de que os próximos dias seriam exaustivos.

30/05 – Subida ao Campo Alto do Illimani (5500m)

Cerca de dois anos antes havíamos tentado escalar o Illimani e o caminho que nos esperava até o campo alto já era conhecido. Nem por isso estávamos menos animados. Ao contrário, lembrávamos que a subida era privilegiada com belas vistas em todas as direções.

Iniciamos a caminhada às 10 horas da manhã, prevendo chegar ao campo alto por volta das 16 horas. Alex nos avisou que, dependendo das condições da neve lá em cima, escolheria o melhor ponto para montar as barracas. Talvez um pouco abaixo do acampamento tradicional de Nido de Condores.

Subida ao acampamento alto do Illimani

A subida era bastante suave na parte inicial. Caminhamos durante uma hora pelo vale aos pés da montanha, cruzando pequenas quedas d’água e riachos congelados. Em seguida, subimos uma morena bastante íngrime, fazendo um zigzag por mais uma hora, até alcançar o trecho mais técnico da trilha. Daquele ponto até o acampamento, seria necessário estar bastante atentos a cada passo, pois o terreno consistia numa sequência de cristas formadas por grandes blocos de pedras lisas. Alguns trechos muito expostos não permitiriam erros ou distrações.

Pouco antes das 14 horas chegamos ao local que Alex elegeu para o nosso acampamento. Era uma pequena área plana entre os blocos de pedra,  com espaço para apenas duas barracas. Ali passaríamos a noite antes de atacar o cume. Estávamos cerca de 50 metros abaixo de Nido de Condores, mas teríamos a grande vantagem de não precisar montar as barracas sobre a neve, ficaríamos mais aquecidos e descansaríamos melhor.

31/05 – Ataque ao Cume do Illimani (6438m)

Aquela seria nossa primeira noite na cota dos 5000m de altitude desde que iniciamos a expedição. A barraca era muito confortável, tivemos seis horas para descansar e realmente não sofremos muito com o frio. Parecia que a estratégia de acampar naquele local alternativo havia nos favorecido. Mas, apesar de tudo, não conseguimos dormir bem. Talvez por um pouco de ansiedade, ou pelo fato de ser a primeira noite naquela altitude.

Quando o despertador tocou à meia-noite, nos sentíamos ainda cansados do dia anterior. Mas o cansaço não era maior que o entusiasmo com o desafio que nos aguardava. Começamos o processo de vestir todas aquelas camadas de roupas e equipamentos de escalada. Por mais experiência que se tenha, essa parte é sempre complicada quando estamos dentro de uma barraca, iluminados apenas por lanternas e com pouco oxigênio. O simples ato de vestir uma cadeirinha ou calçar as botas duplas se torna um desgastante exercício de isometria!

Pouco antes de 1 hora da manhã, já prontos e com as mochilas organizadas, tomamos um chá com alguns biscoitos e iniciamos nossa subida rumo ao cume. A noite estava estrelada, a lua cheia ajudava a iluminar o caminho e quase não ventava. A previsão de temperaturas ao redor de -10 graus havia se confirmado e talvez só enfrentássemos ventos de no máximo 40km/h acima da cota dos 6000m de altitude.

O primeiro trecho da escalada seria no mesmo terreno de grandes blocos de pedra que havíamos enfrentado no dia anterior. Mas agora estávamos usando as botas duplas e precisaríamos redobrar a atenção para não perder o equilíbrio. Vencemos essa etapa rapidamente e já encontramos o início do glaciar. Colocamos aí nossos crampons, nos encordamos ao guia e continuamos a subida por uma crista bastante íngrime. Alternavam-se trechos de terreno misto de rocha e gelo, com longos aclives acentuados na neve.

Logo que começamos a subida pelo glaciar, já sentíamos os efeitos da altitude. O cansaço nos impedia de manter um ritmo adequado e nossa progressão era lenta. Tivemos que parar por diversas vezes para descansar, tomar um pouco de água e depois recomeçar. Mas a cada parada, tornava-se mais difícil retomar os passos e fomos subindo cada vez mais lentos.

Somente após três horas escalando conseguimos atingir o platô de onde se avista o cume. Atravessamos o platô, ainda muito lentos, e então percebemos que naquele ritmo não haveria tempo suficiente para alcançar o cume dentro do horário previsto. Estávamos ainda 5900m de altitude e os próximos 500m de desnível seriam muito mais difíceis.

Naquele momento, Alex nos alertou para o fato de que havíamos gasto o dobro do tempo habitual para subir até ali. Se quiséssemos ter alguma chance de chegar ao cume, deveríamos aumentar muito o ritmo nas próximas duas horas, até alcançar o trecho mais técnico onde encontraríamos uma parede de gelo. Em seguida, seriam pelo menos mais três ou quatro horas até o cume, mantendo sempre um bom ritmo.

Diferente de várias outras montanhas que havíamos escalado antes, o Illimani agora se tornava alem de um desafio técnico, uma corrida contra o relógio. O ataque ao cume deveria ser feito durante a madrugada até as primeiras horas da manhã, enquanto a rota encontrava-se na sombra. Chegar tarde ao cume poderia tornar a descida muito perigosa quando a neve começasse a derreter nos trechos mais verticais.

Parados naquele ponto, exaustos e sem fôlego para aumentar nosso ritmo de subida, percebemos que já não era possível recuperar o tempo que gastamos caminhando tão lentos até ali. Não teríamos mais energia para chegar até o cume em segurança e dentro do horário limite. Ainda assim, poderíamos arriscar. Continuar subindo a qualquer custo e talvez até atingir o cume. Ou subir um pouco mais até que estivéssemos completamente esgotados. Talvez nesse ponto nem lembrássemos que ainda faltaria a descida.

Tomamos a decisão mais difícil: voltar. Era evidente que não estávamos em condições de chegar ao cume do Illimani. Não ainda. Ou pelo menos não naquele dia. Forçar esse limite seria uma decisão pouco prudente em favor da nossa vaidade. Optamos por voltar em segurança e adiar mais uma vez o sonho de escalar aquela linda montanha.

 

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Sobre o autor

Michele Pina Bastos e seu marido Márcio Lage são naturais do Rio de Janeiro, mas vivem pelo mundo escalando.

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