Ferradura do Rio Vermelho: O retorno

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Revisitando rolês refrescantes incrustados em rios da Serra do Meio, limite municipal de Sto André e Paranapiacaba (SP), decidi fazer um circuito que devia visita faz tempo: a “Ferradura do Rio Vermelho”. Este curso d’água menor deve seu nome à coloração rubra de suas águas – resultante do acúmulo de matéria orgânica – e despenca serra abaixo numa sucessão de quedas fabulosas. Variante da “Ferradura da Fumaça”, este roteiro consiste em descer o “Vale dos Cristais” até a confluência dos demais rios, na Cachu do Portal, e dali retornar por este afluente menos conhecido do ilustríssimo “Rio da Fumaça”. Na base do rasga-mato e escalaminhada, eis mais uma aventurina adrenada e pouco divulgada q além de belos visuais, desconhece totalmente a muvuca habitual dos seus notórios vales vizinhos.

A manhã revelava-se relativamente quente e o céu disperso qq nebulosidade  qdo saltamos do busão, as 8:45hrs, as margens do asfalto da SP-122. Após desistências de última hora, a única q topou encarar a roubada daquele domingo foi a Ju, aluna de escalada do Pedro Hauck. Mas como este mundo trilheiro é pequeno, no busão tropeçamos com o Ricardo e a Simone, coincidentemente indo pro mesmo vale. Q assim fosse, o programa em questão era incerto: a despeito de  já tê-lo realizado umas 2 ocasiões anteriores, minha última subida de Rio Vermelho se dera um par de anos atrás; e era bem provável q deslizamentos (em decorrência das chuvas de verão) tivessem transformado a habitual rota q, resumidamente, consiste em acompanhar as margens do referido curso d’água, alternando suas margens na base do vara-mato/escala-pedra. Nada de GPS ou bússola. Apenas um estudo prévio da carta indo de encontro com algumas infos e um pouco de bom senso, além de raspadas imprecisas nos cafundós da minha memória.

Retrocedemos algumas dezenas de metros do pto de desembarque e adentramos numa vereda pela qual já andei mais duma vez, palco de trocentas aventuras já um pouco datadas. Chapinhando em meio a muito brejo e lama, sinais de pegadas recentes de algum pequeno mamífero no chão arenoso resultam nas primeiras fotos da trip. O zunido eletrostático das torres de alta tensão rompe o silêncio de nossa marcha qdo ignoramos a direita numa bifurcação, mergulhando de vez na mata até desembocar nas nascentes do Rio Vermelho, q aqui marulha mansamente seus tons ora escarlate ora dourados.

Uma "ponte" improvisada na forma duma tora de madeira de aderência duvidosa sobre um enorme manilha concretada, permite passagem à outra margem como tb assinala o destino final da trip. Felizmente a Ju anda bem e me dou luxo de forçar um pouco mais o passo, colocando as vezes a guria pra correr no meu encalço. A trilha prossegue em trechos bem erodidos e outros nem tanto, acompanhando as torres de alta tensão em suaves sobe-e-desce no mato até dar, enfim, nas nascentes do Rio da Solvay. O arvoredo em volta filtra belamente a luz matinal, resultando nos primeiros cliques do rolê.

A partir daqui bastou acompanhar o riacho em nível, "costurando" sua margem ora dum lado ora doutro, e não tardou a cair nas pequenas clareiras de acampamento ao lado do Lago Cristal, onde havia uma galera. A partir daqui o terreno se debruça serra abaixo e a rota segue o mesmo compasso, onde se perde altitude rapidamente na base de pura desescalaminhada através de rochas, troncos e raízes. Sempre acompanhando o agora encachoeirado rio pela direita, damos no alto da Cachu do Vale (ou dos Cristais), isto é, no alto duma queda d’água de onde um véu alvo despenca de quase 40m e de onde já se vislumbram os contrafortes serranos opostos cobertos de farta vegetação. São as nossas boas-vindas ao Vale dos Cristais.

Sempre desescalaminhando a trilha em meio à mata pela direita no mesmo compasso, as 10hrs alcançamos um pequeno patamar onde outra gde queda reluz seu véu à nossa direita. Olhando atentamente pra grandiosa cachu despencando de uma enorme muralha, bem mais acima. É a “Cachu Escondida” e recebe este nome pq anteriormente havia farta vegetação na sua base que impedia um vislumbre completo da cascata. Mas como sucessivos deslizamentos em decorrência de chuvas arrastaram td essa vegetação e hj a queda pode ser apreciada de longe. Em tempo, por ser dia domingo a região costuma normalmente estar apinhada de visitantes, mas a chuva do dia anterior deve ter desmotivado a presença da muvuca deixando a rota agradável de ser palmilhada, sem lixo ou qq barulheira.

A partir daqui a trilha some mas o sentido é óbvio: rio abaixo, e a descida se dá ora pela íngreme encosta ora pelas pedras, sempre na base da desescalaminhada. A pernada aparenta nivelar um pouco mas logo embica novamente e de vez, rio abaixo. E assim sucessivamente. No caminho, muitas cachus, poços cristalinos e um enorme cânion q afunila num "V" pedregoso o rio durante um trecho. Abandonando de vez a espessa e densa floresta, começa um trecho aberto, dominado exclusivamente pelo leito do rio onde enormes rochedos dominam ambas margens. A vista se amplia e permite um vislumbre dos patamares consecutivos q dominam o vale, assim como o risco alvo do Rio das Areias despencando em várias quedas, no contraforte oposto.

A desescalaminhada íngreme prossegue ininterrupta, sem gde dificuldade aparente e costurando o rio ora num lado ora doutro, sempre por onde desse pra descer ao patamar seguinte. E assim sucessivamente. O rio faz então uma pequena curva pra direita e imediatamente descortina-se um escarpado paredão avermelhado vertical q assinala a convergência do Rio das Areias com o rio palmilhado, o chamado “Portal”, pra depois correr sinuoso sentido “Vale da Morte” sob o nome de Rio da Onça. Chegar até lá é pura questão de tempo, onde após mais alguns lances de escalada, outros de trepa-pedra e adentrar literalmente por um “buraco”, alcançamos o enorme poção ao sopé da bela “Cachu do Portal”, as 11hrs.

Normalmente o lugar está apinhado de gente, mas felizmente a “Cachu do Portal” era de domínio absoluto nosso. Como foi dito anteriormente, o mau tempo do dia anterior desmotivara a muvuca a visitar a região, sem contar q os rios estavam um pouco mais cheios q o habitual, dificultando a desescalaminhada de gente menos habituada/condicionada. Aqui então nos despedimos do Ricardo e da Simone, q prosseguem seu rumo Rio da Onça abaixo, enqto eu e a Ju ficamos ali de boa, aproveitando aquela cachu e poção unicamente pra nossa curtição. Com direito a tchibum, lanche e descanso, claro.

Por volta das 12:30hr retomamos jornada, agora dando início propriamente dito a subida do outro curso d’água. Retrocedemos então até o lugar onde o Rio Vermelho deságua no Rio das Areias, apenas alguns metros acima da "convergência" oficial. Inicialmente escalaminhamos as pedras do caminho até tropeçar com uma sucessão de cachus íngremes despencando, impossíveis de vencer frontalmente. Mas vasculhando na mata há uma picada q embica forte encosta acima, e por ela ganhamos altura num piscar de olhos, onde a íngreme piramba exige fôlego redobrado da Ju. A vereda enton desemboca no q parece ser uma vala seca q cai encosta abaixo. E é por ela q desescalaminhamos um breve trecho até cair novamente no leito pedregoso do rio, num belo patamar rochoso situado no meio duma sucessão de belas quedas e com vista maravilhosa do vale.

Como aqui outra cachu vertical se interpõe no caminho, a intuição nos leva à outra margem do rio onde a mata é menos espessa. Contornando um enorme rochedo, tem início uma escalaminhada pela íngreme encosta de terra, onde os apoios são poucos e o chão parece se esfarelar a cada paso dado. Qq matinho aqui serve como agarra e é preciso chutar o chão pra garantir um apoio seguro. E devagar e quase parando, dando um passo e retrocedendo dois, caímos numa crista suave, onde a declividade amansou. Mas outra piramba maior logo surge exigindo esforço redobrado e procura constante de raízes, troncos ou qq mato q servisse como agarra, sempre acompanhando o rio à nossa direita.

Uma vez no topo notamos q os gdes abismos e muralhas já haviam sido deixados pra trás voltamos ao leito do rio, e assim a escalaminhada teve continuidade, desimpedidamente, pelas pedras mesmo por um tempo, em meio a muitas cachus, poços e altos visus. Mas eis q desponta outra queda vertical barrando nosso caminho, obrigando-nos outra vez a varar a vegetação através de sua íngreme encosta direita no mesmo esquema anterior. Na verdade aqui a declividade não era problema e sim a mata agreste em si, repleta de espinhos. Claro q dali saímos daquele túnel de vegetação imundos.

Na sequência desembocamos num trecho onde o rio aparenta nivelar, mas eis q numa curva descortina-se com td sua imponência o q seria o maior desafio daquele dia. Estávamos numa poção ao sopé da “Cachu do Rio Vermelho” (tb conhecida como “Cachu dos Grampos”), q dividida em 3 patamares sucessivos lançava suas águas de uma altura de mais de 40m!!! Logicamente q nos brindamos aqui um breve descanso regado a tchibum no poço no sopé da queda. Ao mesmo tempo em q perguntei pra Ju, seriamente: “Olha, agora é você q decide, é possível ganhar o alto da cachu rasgando o mato da encosta ou escalaminhando o paredão lateral. Por onde vc quer ir?”. A baixinha olhou a cachu de cima pra baixo, avaliou as agarras de longe e respondeu, decidida: “Vamo escalando!”

Respiramos fundo e lá fomos nos. O primeiro nível foi breve e fácil, bastando segurar firme as agarras e saliências secas na rocha e tomar impulso muralha acima. Grampos fincados na rocha denunciam a pratica de rapel, e tb servem de apoios oportunos durante nossa ascensão. De cara o borrifo da cachu somado a jatos d´água ricocheteando nas rochas nos ensopa parcialmente. Saber fincar os pés nos apoios menos escorregadios é regra, uma vez q a rocha além de úmida encontra-se besuntada de limo visguento. O segundo nível é repeteco do primeiro, porém um pouco maior. O terceiro nível é o maior e o mais exposto, mas o problema é q ali já se ganhou altura considerável e qq falha é queda livre na certa. Claro q subo sem olhar pra baixo visando apenas o degrau acima, na dianteira, avisando pra Ju onde pisar ou se agarrar. As vezes falta braço ou perna pra ela alcançar a agarra sgte, mas nada q uma mãozinha deste q vos fala resolva.

As 14hrs em ponto fincamos os pés no topo da Cachu do Rio Vermelho, isto é, estávamos no alto da serra. Estávamos contentes por ter vencido essa provação pra lá de adrenada e pq a partir dali o restante da trip seria na horizontal, em nível. O porto de Santos imerso numa opaca nebulosidade emoldurado pelas montanhas e vales verdejantes ao redor completavam a satisfação de estar ali, razão pela qual nos presenteamos com uma breve pausa de contemplação, conversa furada e descanso. E ali ficamos prostrados nos lajedos, donos absolutos daquele pedaço privilegiado da Serra do Mar. Incrível era constatar q enqto os vales vizinhos ferviam de gente, ali onde estávamos éramos únicas testemunhas daquele belo remanso e mirante natureba.

Após lagartear ao sol daquele inicio de tarde, retomamos a pernada pelo agora manso Rio Vermelho, cujas águas cor-de-coca-cola justificam seu nome devido a gde qtidade de matéria orgânica vegetal em suspensão. O avanço daqui em diante transcorreu livre e desimpedido, e assim seguimos pelo sinuoso e tortuoso rio alternando ambas margens, chapinhando na água ou saltando de pedra em pedra. Td sem dificuldade alguma. Eventualmente havia q desviar de enormes poços ou transpor pequenos cânions emparedando o riacho, ora pela margem arenosa (com água até a cintura) ou pelos estreitos apoios onde era possível avançar agarrado à encosta. No trajeto, claro, uma breve pausa num dos vários convidativos poços no caminho.

Após um tempo o rio se estreitou e emergiu da mata fechada pra então marulhar bem raso, rasgando silenciosamente os descampados de arbustos. A esta altura entrar na água até o joelho não era problema, incômodo mesmo era a areia q dançava dentro do calçado. Mas ao passar por baixo das torres de alta tensão lembrei q era sinal de q nossa jornada estava quase nos finalmente.

Dito e feito, as 15:30hrs interceptamos as manilhas de concreto, dando adeus em definitivo ao trecho de aqua-trekking. Após lavar as botas e remover areia suficiente pra iniciar a construção dum sobrado, despedimo-nos do rio pra retomar a picada de volta. Não bastasse, a Ju só reparou no caminho q sua calça estava rasgada bem no traseiro, deixando a mostra seu alvo “derriére” pra felicidade geral dos mosquitos da região. Nova pausa pra esconder tudo. E nesse compasso terminamos caindo no km 43 do asfalto cerca de 40min depois, onde não tardou a passar condução pra Rio Gde da Serra. Pra variar, antes de voltar pra Sampa entornamos várias geladas afim de bebemorar o “batismo de fogo” da Ju. Aí Pedrão, coloquei tua pulila pôr em prática o q aprendeu no teu curso, na marra! E ta aprovada!

Dessa forma, a Serra do Mar as margens do asfalto situado entre Rio Grande da Serra e Paranapiacaba revela não apenas belas paisagens de seus fundos vales contrastando com escarpadas montanhas apontando pro céu. Nos brinda tb vários roteiros informais q vão além dos programas tradicionalmente conhecidos e, consequentemente, repletos de barulhenta muvuca. Circuitos ou "ferraduras" como a pouco (ou nada) visada “Ferradura do Rio Vermelho”, que pode tanto começar pelo “Vale dos Cristais” como pelo “Rio da Fumaça”. O sentido fica a seu critério. Independente disso, neste rolê selvagem o visual, adrenalina e paz em meio a natureza estarão sempre garantidos.
 

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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