Folia do Divino, como foi nova conquista na Pedra Riscada

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No dia 16 de agosto deste ano, uma equipe de escaladores paranaenses partiu de seu estado natal com uma missão: abrir uma nova via na Pedra Riscada, em São José do Divino, MG. Com dois dias de viagem e 1500 km rodados, chegaram na pedra. Instalaram acampamento no pé da enorme montanha, considerada por muitos o maior monolito de rocha do mundo. Em 3 dias, os aventureiros Ed Padilha, Valdesir Machado, Willian Lacerda e Elcio Muliki fixaram cordas até aproximadamente 600 metros. Descansaram um dia e então subiram com tudo, permanecendo na parede por mais 4 dias para atingir o topo da gigante pedra.

A imponente Pedra Riscada em São José do Divino, Minas Gerais. Foto: Ed Padilha

A linha aberta pelos escaladores atingiu a marca de 1200 metros de extensão, com 7 dias de grandes esforços e uso de 300 proteções fixas. Na parte central da via, que é mais vertical, são 8 esticões entre 8b e 9b (graduação brasileira), de um total de 26 esticões. O nome escolhido para batizar a rota – Folia do Divino – foi dado em homenagem ao povo local, pois quando os escaladores chegaram, foram convidados para fazer parte das festividades, recebidos com muita alegria e hospitalidade.

A chegada na Pedra Riscada

Depois de rodarmos 1500 quilômetros, paramos estupefatos diante da muralha de pedra. Como sempre, na hospitaleira e surpreendente Minas Gerais, sempre surge alguém simpático para puxar conversa:

-Ceis vieram pra escalar a pedra?

-Sim.

-Mas o pessoal não sobe por aí não, é mais lá pra direita, aonde a pedra é mais deitada.

-Pois é, mas nós queremos abrir uma nova rota aqui pela frente desse paredão.

-Ah, então ceis tem que falar com o Beto, pra ir pelas terras dele.

-É ali aonde está acontecendo uma festa?

-Isso, vou chamar ele pra falar com vocês.

-Opa, Beto, a gente queria acessar a base da montanha, passando pela sua propriedade, para tentar abrir uma via por ali.

-Passem pra dentro. Comam um churrasco, tomem uma cerveja e depois nós conversamos. Aqui está tendo a Folia do Divino, uma festa tradicional da Igreja Católica e vocês agora são convidados.

Tradicional festejo da Folia do Divino. Foto: Ed Padilha

Algumas horas depois, muitas cervejas depois, após nos fartarmos com um almoço espetacular, depois de quase perdermos um dos membros da expedição que já havia sido contratado como cantante oficial da Festa do Divino, o Beto veio falar conosco dizendo que poderíamos ir até a base da parede e acampar em suas terras por quanto tempo o desejássemos.

Subimos a estrada ainda inebriados com a energia daquela gente maravilhosa, que se reunia ali, num clima de profunda amizade e reverência à verdadeira mensagem do Cristo, de amarmos uns aos outros. Foi uma recepção energizante.

Montamos acampamento ao lado de um córrego que seria nossa fonte de água pelos próximos dias. Eu e o Val abrimos a trilha até a base, enquanto Elcio e Willian organizavam as coisas. Marquei o tempo, 10 minutos de caminhada. De volta ao acampamento, organizamos os equipamentos para iniciarmos a abertura da via no outro dia, combinamos de acordarmos naturalmente.

Do 1º ao 3º dias de conquista

7h, está claro, não aguento mais ficar na cama, ou melhor na barraca, quando saí já vi que teve gente que acordou antes mim, não era o único velho da equipe.

Muito café, ovos fritos, pão. Arruma mochila e parte para a base da via. Lá avistei uma ave lindíssima. Pensei, vou tirar foto já, pois não sei se a verei novamente. E não vi mesmo.

Falcão-morcegueiro ou Cauré, pássaro da família Falconidae. Foto: Ed Padilha

Soltamos o Val na punta caliente da corda, fazia tempo que ele não escalava, partiu como máquina pra cima. Sem parar, foi abrindo os esticões, Willian na seg e eu e Elcio trazendo equipos, água e cordas para fixar. Depois de abrir 400 metros, Val cansou, por fim, Wilian assumiu e chegou no mega platô de mato, já tínhamos 470 metros de via. O calor se fazia presente, apesar do dia estar nublado. Eu havia pensado que era um platô de mato, mas não, era uma grande floresta, que levamos uns 10 minutos para atravessar, chegando à parede vertical. A primeira olhada foi desalentadora, mas aos poucos fomos percebendo que havia agarras, todavia bem pequenas. Andamos para esquerda e para a direita e ficamos em dúvida de por onde continuar a linha. Já era tarde e não estava conseguindo raciocinar direito, descemos e deixamos a decisão para o próximo dia. Quase 500 metros de rapel para atingir a base da via, o dia fora proveitoso.

Valdesir Machado na ponta caliente da corda. Foto: Ed Padilha.

Segundo dia de escalada, quarto de expedição, acordamos naturalmente, tomamos café sem apuro e subimos preguiçosamente pelas cordas fixas com as mochilas super carregadas. Enchi a mochila de água e depois enfiei mais um monte de chapeletas, quase morri. Lá pela P5 parei para ver as mensagens, pois só a esta altura tinha algum sinal de internet, nada de relevante perante aquilo que estávamos vivendo. Batemos na parede vertical, anda pra lá e anda pra cá e decidimos ir reto pra cima ali aonde a trilha chegou, pois era tudo difícil mesmo. Willian abriu a primeira e Elcio a segunda, uma 8c, a outra 9b. Val foi liberando os movimentos das duas. Dia rendeu poucos metros, a verticalidade e a busca pela linha que proporcionasse agarras para ser feita em livre frearam nosso passo. Rapela tudo e chega no acampamento para mais um jantar macarrônico, com legumes e ovos. Dormir cedo e acordar naturalmente.

Ed e Valdesir nos primeiros esticões após o grande platô. Foto: Ed Padilha.

Terceiro dia de escalada, nada de novo no front, abrimos mais dois esticões de 40 metros, e ambos estariam da casa de 9a regleteiro. Íamos abrindo e estocando água, cordas e chapeletas, a cada subida trazíamos uma carga. Neste dia fixamos os últimos metros de cordas. A próxima subida seria para ficar, já tínhamos até uma barraca armada para nos protegermos dos pernilongos, que eram os donos do platozão. Descemos felizes porque no outro dia iríamos descansar um pouco, almoçar na cidade e comprar uns mantimentos para a derradeira subida.

Uma pausa para repor energias

Acordei, subi uma encosta atrás do acampamento só pra “loquiar”, depois tomamos um longo café e acho que até tomei banho, não lembro direito. Entramos no carro, descemos pela estradinha até a casa do Beto, deixamos as baterias da furadeira carregando e em mais meia hora chegamos no centro nervoso de São José do Divino. Mercado primeiro, depois uma Heineken com batata frita e partimos para o restaurante da Dona Creusa. Nossa, comida caseira, 25 reais por cabeça, coca-cola, comer até explodir. Na volta, decidimos dar uma volta inteira na Pedra Riscada, que foi um rolê incrível. No meio do caminho encontramos o xerife Edimilson Duarte, dono do Refúgio Pedra Riscada e depois passamos pela base da Divina Liberdade (1100m, 2013) e Place Of Happiness (850m, 2009) ambas vias que participei da abertura. É muito gigante essa pedra, acho que levamos uma hora de carro para contornar a pedra inteira, mas talvez eu esteja exagerando um pouco…

Lembrança mais importante do mercado:

-Será que levamos uns miojos?

-Acho que não precisa, tem um monte de comida liofilizada.

-Mas 8 pacotinhos de miojo não pesam nada.

-É verdade. Levemos.

4º dia ao 6º dia de conquista

Quarto dia de escalada, sétimo de expedição. Acordar cedo, tomar café, encher a mochila com as coisas que faltavam levar, como sacos de dormir, comida, fogareiro, mais água, etc. No platozão já tinha bastantes coisas. Chegamos na base da pedra e começamos a subir pelas cordas fixas, dia nublado, parecia que ia chover naquela secura. De repente uma garoa, dava pra sentir aquele cheiro da pedra molhada, mais uns metros acima engrossou e virou cachoeira. Bem no dia que decidimos subir com tudo. Chegamos na barraca ensopados e ficamos lá dentro até a chuva cessar. Às 11h estava escorrendo água pela pedra, às 12h estávamos subindo pelas cordas fixas. Elcio terminou mais um esticão. Tomei a dianteira e parti para mais um daqueles esticões demorados, tudo em artificial, mas seguindo uma linha natural de agarras que depois terminou sendo mais um nono grau. Todos os dias, antes de rapelarmos, organizávamos tudo e deixávamos um haulbag com a furadeira e baterias dentro, água, chapeletas e alguma comida. Descemos com últimos raios de sol para o conforto do platozão. A noite caiu e os pernilongos se acalmaram, graças a Deus! Esquentar água, mas quando abrimos os pacotes de comida liofilizada estava tudo estragado, com um cheiro horrível. Por sorte tínhamos um pouco de pão, queijo e os 8 pacotes de miojo (lembra da conversa no mercado?). Por sorte ou intuição, o Val insistira para levarmos os miojos. Sem os liofilizados sabíamos que passaríamos fome. Dormimos preocupados.

Ed abrindo um novo esticão. Foto: Ed Padilha

Quinto dia. A noite foi terrível, o solo era todo irregular. Muito café e lá vamos nós pra cima, pois com o racionamento de comida teríamos de agilizar o processo. Terminei meu esticão, Willian assumiu e guiou uma aresta bem bonita e exigente. Elcio tomou a dianteira e continuou por canaleta e depois aresta vertical. No fim das luzes, subi uns metros mais fáceis para atingir um platô, que era grande, mas era torto. Bati uma parada ali, pois imaginei que seria o local para passarmos a noite, quando subíssemos para o ataque ao cume. Olhei para cima e o que vi foi mais do mesmo: parede vertical com agarras pequenas. Descemos para o platozão, agora já ficava distante, quase 300 metros. Miojo, bolacha água e sal, uma barra de chocolate de sobremesa (era o mais esperado).

Willian colocando mais uma chapeleta. Foto: Ed Padilha

A vez de Elcio abrir um esticão. Foto: Ed Padilha

Sexto dia. Nono de expedição. A noite foi melhor. Ajeitamos tudo para subirmos e ficarmos pra cima. Fui na frente, pois começaria o dia guiando, pra variar. Val veio junto e Willian e Elcio subiram rebocando um haulbag com água, chapas, fogareiro, sacos de dormir e mantimentos. Fiquei em dúvida por onde iniciar o esticão de número 18, mas minha intuição me levou para uma aresta à direita, a qual se mostrou ideal. Comecei em livre, depois artificial, e foi nessa mescla até atingir um ponto em que parecia que a parede deitava. Bati a parada num pseudo platô. Val subiu e seguiu adiante por uma bela canaleta e depois por alguns veios de rocha, que mais pareciam cicatrizes. Aí ficou divertido, subi pela corda fixa, cheguei na parada, que era meio pendurada, peguei costuras com chapeletas, furadeira, martelo, corda auxiliar e parti. Fui decifrando aquelas cicatrizes numa diagonal para a esquerda, até um ponto onde consegui uma sequência de agarras boas para cima. Busquei um lugar confortável para bater a parada, mas nada, só um apoio para o pé, depois de bater a parada vi que tinha um bom platô à direita, só fiasco. Sol pegava forte, na parede devia estar mais de 30 graus, sem vento. Elcio guiou uma rampa com agarras e depois o Val subiu por uma bela canaleta. Descemos todos até o platô torto e curtimos um lindo pôr do sol com música ao vivo, óbvio que levei o ukulelê. Noite estrelada, porém sem dormir direito, pois dormimos sentados.

Alguns trechos mais “deitados” da pedra. Foto: Ed Padilha

Ed escalando. Foto: Ed Padilha.

O esperado dia de cume

Sétimo dia de escalada, décimo de expedição. Acordamos destruídos, tomamos muito café e descobrimos que teríamos de usar com parcimônia as últimas 50, das 320 chapeletas que trouxéramos. Expresso jumar pra cima e pra variar pego a punta caliente. Neblina forte, não conseguia enxergar muitos metros à frente, fui guiando, mas tinha de escalar com muita atenção, pois os musguinhos acumulavam água, encostava a mão ou a ponta da sapatilha e molhava.  Além disso, devido ao racionamento de chapeletas, chegava no ponto de bater a próxima e esticava um pouco mais, tenso. Bato uma parada numa rampa, não aguentava mais ficar pendurado. Elcio assume, mas ainda não conseguimos ver nada, só vamos pra cima, por belas sequências de agarras.

– Que esticão é esse que eu vou iniciar agora?

– Acho que é o número 25!

– Caramba, não acaba mais. Mas agora parece que deitou, não é?

– Oremos.

Seg e descanso em parada nada confortável. Foto: Ed Padilha

Comecei a escalar e a neblina começou a se dissipar e parecia que chegaria ao topo. Escalei alucinado, esquecia até de parar para bater as chapeletas, depois meus parceiros reclamaram, mas era bem fácil. Estava quase chegando ao final da parede, mas a corda acabou, 60 metros acabam rápido quando a parede afrouxa. Bati a parada ao lado de uma língua de mato, fixei a corda e falei para os parceiros subirem. Foram chegando um a um e a alegria foi se multiplicando. Willian guiou os metros finais e chegou ao final da parede de rocha, era 11 da manhã e o céu abrira, podíamos ver a paisagem em volta e também sentir o sol nos torrando. O cansaço substituído por felicidade. Que lindo foi chegar ao topo com esses irmãos de montanha, que vibe, que lugar! Foram 1200 metros de parede, metro a metro, movimento a movimento!

Equipe completa no cume. Foto: Ed Padilha

Descer é mais fácil, mas não quando estamos carregados. Iniciamos os rapéis meio dia e terminamos às 19h. Foram 7 horas pendurados, carregando cordas e equipamentos. Alegria maior foi chegar ao acampamento, sentar numa cadeira e brindar à Folia do Divino. Nome este que demos à via, em homenagem à recepção que tivemos quando chegamos ao paraíso chamado Pedra Riscada.

Via Folia do Divino

1200m 6+ IXb E3 D5

Pedra Riscada MG.

Conquistada por : Ed Padilha, Valdesir Machado, Willian Lacerda e Elcio Muliki entre 18/08 e 25/08/2025

Croqui  Via  Folia  do  Divino

 

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Sobre o autor

Edemilson Padilha é sócio fundador da Conquista Montanhismo, um dos principais da fabricantes de equipamentos de montanha do Brasil, localizado em Campo Largo PR. Conhecido e reconhecido também por suas Conquistas de vias de escaladas que estão entre as mais comprometedoras do país.

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