No início deste ano, mais especificamente no finalzinho do Carnaval, estávamos alí no abrigo de montanha da Kathy do CET (Centro Excursionista Teresopolitano) eu e meus companheiros de cordada Ricardo Ishigami, Diogo Caldeira e Reginaldo Gomes aguardando uma janela pra escalar o Dedo de Deus quando em conversa com a nossa anfitriã e alguns outros hóspedes sobre a história do montanhismo nos picos da região, alguém tocou no tema do free solo, a escalada sem cordas. Expus o meu ponto de vista e logo o debate se instaurou e a discórdia reinou. São Pedro inclusive nos castigou pouco antes de entrarmos na variante Maria Cebola enviando uma chuva torrencial. No caminho de volta para São Paulo, com todos quietos no carro, comecei a escrever este artigo.

Vista aérea do Dedo de Deus. Notar as presenças de apoio e de vegetação.
Eu sei que o free-solo é um tema quente e costuma levantar os ânimos da galera quando é abordado, por isso o tom que adotarei aqui será mais voltado para o questionamento do que para a argumentação de verdades relativas. Não estou aqui para convencer ninguém à ser contra o free-solo como eu, mas para ampliar os horizontes de quem nunca pensou além da página dois sobre o assunto.
A escalada, hoje, é um esporte que está em alta. Em especial desde 2021 quando entrou para os Jogos Olímpicos. E, estando na mira da mídia, que diga-se de passagem, não está muito acostumada à cobrir sobre o universo da verticalidade, tem sido em muitos momentos mal noticiada sob o ponto de vista ético em função do potencial que o suspense de algumas práticas de risco como o free-solo possuem na atração de audiências.
Na imprensa, as pautas de competição e das grandes conquistas no ambiente outdoor, ultimamente tem perdido espaço para o sensacionalismo da escalada sem cordas, causando em primeira instância enorme confusão e prejuízo na construção da imagem pública sobre o esporte, sem contar as consequências negativas que atingem a sociedade de maneira geral.
A glorificação da tomada de risco é uma prática que atinge facilmente um público amplo. Hollywood é a prova disso. Porém, o problema do espetáculo real no estilo Faces da Morte (e quem viveu nos anos 80, 90 sabe do que estou falando) não é somente o fato de fazer com que o público pense erroneamente que o solo seja a forma mais avançada de escalada, mas principalmente porque fomenta o desejo em muitas pessoas, em especial adolescentes em plena fase de provação e maturação da identidade, em imitar o que vê em busca de atenção ou 15 minutos de fama.
E tudo isso, me deixa particularmente desconfortável. Independente das motivações e dos talentos destes que se prestam a escalar sem segurança em frente às câmeras, esta glorificação do free-solo alimenta um sinistro espetáculo comercial com heróis prontos a serem sacrificados. Estas pessoas estão para a mídia e para as redes sociais o que os Gladiadores da Roma antiga estavam para o Coliseu. Para a indústria, isso é um excelente negócio, e afirmo isso com propriedade pois atuei por mais de 20 anos no setor da publicidade e sei como a coisa funciona. A morte é intimidadora e o medo ajuda a vender produtos e serviços ligados ao entretenimento, moda, turismo, e até mesmo à segurança. Apenas para colocar um pouco de luz neste aspecto perverso do sistema que amedronta as pessoas para controlá-las e explorá-las cada vez mais.
No livro “Climb Ethics. Os valores da escalada.” Do francês Marc LeMenestrel, atual presidente da Comissão de Ética da Federação Internacional da Escalada Esportiva, ele diz o seguinte: “Diferente do que ocorre no mercado financeiro onde o risco está ligado à fórmula que combina probabilidades e consequências, atribuindo maiores riscos à maiores ganhos. Sob o aspecto matemático, não há justificativa racional para o apreço pelo risco na escalada. Muitas pessoas sem qualquer inclinação suicida, são entusiastas da escalada e atraídas não somente pelas lindas paisagens das montanhas mas pelo risco nos seguintes termos: Suponhamos que a probabilidade de um acidente fatal seja de 5%. O escalador irá preferir uma chance de sobrevivência de 95% ao invés de 80%, mas também à uma de 100%! É um paradoxo. Porque o risco influencia nas preferências de maneira não monótona!”
O autor, em outro ensaio sobre os aspectos racionais da tomada de risco na escalada, afirma que as pessoas precisam ter uma medida para o risco baseada não somente nos procedimentos técnicos intrínsecos à própria escalada, mas também na leitura minuciosa dos fatores externos, estes que não se podem controlar, e de suas consequências. Desta forma, a pessoa que aprecia a tomada de risco pode ser considerada prudente ao mesmo tempo.
Quando um escalador escolhe tomar riscos ele se investe em uma consciência de sua vida e do valor à que ele lhe atribui. Não posso negar que eu mesmo já experimentei a escalada em solo integral e senti o êxtase da façanha ligado ao gosto amargo do risco.
Uma mistura perigosa. Tão excitante que pode vir à se tornar um vício. O perigo está em não querer mais parar de escalar sem corda e acabar morrendo cedo. Eu parei faz muito tempo. E, é neste momento que entra a questão sociedade quando debatemos sobre o free-solo.

Silberfinger, Engelhörner, montanhas bernenses. Em Solo, Ueli Steck conseguiu escalar a difícil parede.
Há muitos milhares de anos deixamos de ser eremitas das cavernas e passamos a viver em comunidade. Todos temos famílias, amigos, responsabilidades civis e deveres sociais. E, não há Dirt-Bag hoje em dia que escape deste fato. Eu duvido que alguma mãe, esposa, namorada, irmã, filha, madrinha, prima, tia ou amiga se sinta confortável sabendo que o seu ente querido está brincando com a sorte e arriscando a sua vida sem cordas em alguma falésia por aí. Eu imagino a angústia que essas pessoas passam e o misto de tristeza e raiva que se arrebata nelas quando a coisa dá errado e um corpo precisa ser enterrado.
Outro aspecto da questão social que me incomoda muito também é o exemplo que se dá aos iniciantes na apologia à negligência da segurança. Aquele guia que ignora as chapas e não protege a sua ascensão na frente de seus clientes, aquele instrutor que sola na frente dos alunos. Na minha leitura, gente que faz isso está prestando um desserviço ao esporte e queimando a imagem da escalada.
O direito ao risco faz parte dos direitos fundamentais garantidos em nossa constituição assim como o direito de ir e vir. Porém, como diz o escalador e Guia de Montanha, Eliseu Frechou: “É importante lembrar que a maioria dos picos e falésias que temos no Brasil estão localizadas dentro de propriedades privadas ou sob gestão de algum parque nacional ou estadual. E, a responsabilidade civil recai nestes proprietários e gestores toda vez que ocorre algum acidente, gerando uma série de problemas para eles, dores de cabeça para os resgatistas voluntários e gastos públicos com helicóptero, Bombeiros e SAMU. Isso muitas vezes resulta no fechamento do spot ou interdição da prática no local, afetando assim toda a comunidade de escaladores.”
Você pode ter escalado 50 ou 100 vezes a mesma via e por mais que você conheça os movimentos de cor e consiga realizá-los sem esforço, nada anula os riscos externos como uma agarra que pode quebrar, uma pedra que pode cair, uma abelha, uma formiga ou uma aranha que podem te picar, um vento forte que pode soprar, um pássaro que pode te assustar, uma formação recente de musgo que pode desestabilizar um pé, uma cãibra que pode se manifestar, o tempo que pode virar… enfim, citei aqui apenas 10 fatores que estão completamente fora do controle de um escalador e que são muito comuns na montanha.
Atualmente, numa roda de escaladores, as opiniões são bem diversas e polarizadas a respeito do free solo. Já ouvi resumirem a prática à termos como: Meditação pessoal, ato de coragem, imbecilidade, imaturidade, arte pura, egoísmo… Eu adicionaria: Roleta-Russa.
Há quem diga:-”Mas, poxa, grandes feitos foram realizados em free-solo!“ Ah, jura? O que a escalada sem corda do Honnold por exemplo, mudou na sua vida? Nada. No quê esse feito agregou para a sociedade além de gerar um Oscar para o Jimmy Chin e 15 millhões de dólares em bilheteria para a distribuidora do documentário, no caso a Disney, que como medida desesperada para ressuscitar a audiência de uma de suas piores aquisições, a National Geographic, apelou por dar palco à tamanha macaquice.
Sempre há quem se emocione e fique deslumbrado. Afinal, o storytelling está impecável. A trama é inspiradora, as paisagens são de tirar o fôlego. O filme foi lançado em 2018 mas tornou-se popular na pandemia quando a claustrofobia da quarentena estava em seu auge. A receita do sucesso está aí.
Então, te pergunto: Você é um ser emocionado que se deixa manobrar pelo sistema ou você é um ser racional que valoriza a vida e preza pela sua liberdade? Não precisa responder agora. Apenas tire um tempo para refletir.
Eu queria abordar aqui a questão psicológica de quem escala em solo, mas por ser um assunto complexo prefiro deixar para um próximo ensaio onde eu possa contar com a ajuda de um especialista da área. No entanto, da parte física do cérebro, com um pouquinho de ajuda do ChatGPT e a confirmação dos dados em alguns videos do Youtube, eu consigo afirmar pra você que a amígdala (região localizada no lobo temporal do sistema límbico) é responsável por controlar as nossas emoções e por consequência a nossa resposta ao medo. Alguns distúrbios mentais, como por exemplo, o (TEA) Transtorno do Espectro Autista, dependendo do grau na escala, pode afetar essa região do cérebro e “desligar” os sinais de alerta que ela envia. Isso é interessante observar quando em algumas matérias, como a publicada por J. Hookway CEO da MedicSignal no site Brainwave lemos que embora não haja um diagnóstico oficial de autismo para Alex Honnold, especialistas sugerem que o escalador exibe fortes características do transtorno. O que explica muitas de suas realizações.

Alex Honnold durante solo em Potrero Chico, México. – Fonte: Outside – Autor: Cedar Wright
Enfim, desde que o filme Free-Solo foi ao ar, iniciou se uma onda chamada “Efeito Honnold” que apesar de se concentrar muito forte nos EUA, vem se espalhando por todo o mundo. “ Está sinistro. Hoje em dia você escala alí na região do Yosemite e vê um monte de gente solando. Inclusive, um tempo atrás eu estava numa via com um cliente e passou do nosso lado um cara sem corda todo tremendo.” Relata Frechou. Se você leu até aqui é bem provável que também seja um escalador ou entusiasta das alturas, então, anote aí uma das citações mais provocativas e emblemáticas do meio montanhístico proferida pelo alpinista alemão Anderl Heckmair (o homem do Eiger) no início do século passado: “Um bom alpinista é um velho alpinista.” Entre os dinossauros da velha-guarda, com quem eu aprendi as técnicas de base e os valores da montanha, eu sempre ouvia esta frase. Independente do país onde eu me encontrava. Esta é a filosofia que me foi passada e é a que eu gostaria que prevalecesse entre as próximas gerações. Uma filosofia de cuidado e amor à vida.
Eu poderia finalizar este artigo dizendo:” Quer mais emoção na sua escalada? Experimente o Solitário (sozinho, porém com auto-segurança) em paredes mais difíceis.” Em todo caso, como eu disse lá atrás no início deste artigo, não existe uma única verdade e a matemática não se aplica ao gosto pelo risco. As pessoas são diferentes e como comunidade que formamos, por freqüentarmos os mesmos lugares e compartilharmos as mesmas paixões, então que nos apoiemos nestes pontos em comum para promover a paz, a harmonia e a segurança.
Boas escaladas à todos!
















1 comentário
Parabéns pela reflexão! Muito pertinente nos dias atuais talvez não só no âmbito da escalada, hoje temos uma epidemia de necessidade de likes, vizualizações a fim de viralizar algum conteúdo com finalidade a massagear o ego ou retorno financeiro!