Muitos escaladores brasileiros já estiveram por lá e não se cansam de lembrar deste marcante lugar da América do Sul…
Nessa temporada, inclusive, cruzamos com muitos conterrâneos e uma diversidade enorme de nacionalidades em busca dos trekkings e escaladas que esse belo cenário internacional oferece.
Em lugares como esse, a variedade de elementos transcende o simples desejo de escalar vias longas após anos escalando vias esportivas. A experiência como um todo é o que marca, passando pelo clima e os visuais, o camping selvagem na beira da laguna, as aproximações, o comprometimento e a beleza das vias, entre tantas outras nuances.
Sem dúvida, senti muita complexidade aqui…
Assim como meus favoritos vinhos, o Frey apresenta muito corpo, transpõe camadas pouco a pouco, revela-se mais e mais a cada gole… “É daqueles que tem que respirar para ficar melhor!!!”
Em alguns casos gera estranheza, dúvida, soprando a príncipio um tanino forte demais… Em outros casos, adormece tudo no primeiro gole, para preenchernos com todo seu sabor e complexidade ao longo do experimento…
Para saborear verdadeiramente escaladas e aventuras como as que o Frey oferece, é preciso mergulhar realmente em seu espírito e sentir cada nota emitida pelo lugar. Não basta querer desvendar movimentos, descobrir formas de proteção na rocha, conquistar cumes, pois são muitas as suas peculiaridades.
E quanto mais entro em contato com esse ´tipo de uva´, mais ela me conquista…
Nessa vivência, muito frio versus muito calor;
…neve, morainas, ventos e sopros patagônicos que mantêm-se na memória por um bom tempo;
…água cristalina em abundância, ora petrificante, ora restauradora e refrescante;
…vistas grandiosas, ora arrebatando a alma, ora amedrontando;
…fendas, diedros, regletes e muitas cordadas;
…lastro não opcional composto por nuts, friends, camalots, mochila, e por aí vai…;
…aproximações exigentes passando por riachos, ora consumidos pela sede, ora ignorados e vencidos pelo cansaço…;
…ora achados, ora perdidos!
…jogo de gamão, latas de atum, sopas, chás, massas desidratadas, vinho sempre…
(e chocolates de Bariloche, merecidamente!)
E assim, apaixonada por esse mix intenso e encorpado, saboreei minhas férias de janeiro em Cerro Catedral, Argentina, somando mais uma marcante vivência à minha vida.
Vamos, então, aos nomes de uvas e elementos trabalhados para que eu chegasse a essa boa safra:
“Além de vinho, atum enlatado, azeite extra-virgem e pão, ofereça-me vias longas e verticais, com regletes potentes, de preferência longe da civilização e sem luz elétrica…”, disse eu a meu companheiro de escalada Filippo.
“Já sei que lugar é esse”, respondeu-me ele… “Com algumas coisitas a mais”…
Coincidentemente, meus amigos Carla e Alex planejavam uma longa trip de carro para passar o Natal, reveillon e férias de janeiro, conhecendo e escalando alguns picos na Argentina. Além das Cataratas, Glaciares e Pinguíns, os dois ficaram duas semanas em Chaltèn, com poucas janelas para escalar, mas percorrendo algumas trilhas e encontrando também muitos brasileiros.
De lá, subiram para Bariloche onde nos encontraríamos após o reveillon. Qual foi nossa surpresa quando os dois nos esperavam já no aeroporto de Bariloche!
E assim, além de mais amigos, tivemos um carro que facilitou nossa vida!
(É possível locomover-se de ônibus facilmente também!)
Fizemos o supermercado para os dias de escalada que tínhamos no Frey, comemos muito chocolatinho, organizamos mochilas, contratamos dois cavalos para carregar metade de nosso equipamento e comida (Pirincho – $170,00 pesos por cavalo), e deixamos o carro no estacionamento público de Cerro Catedral, de onde sai uma das trilhas (que levou 6 horas graças a muita parada para fotos!)
Tivemos sorte com o dia de sol na subida. Armamos acampamento e planejamos para o dia seguinte uma escalada em três, para nos aclimatar…
Seguindo a previsão do tempo, ventava pacas neste dia e as nuvens patagônicas carregadas surgiam atrás das agulhas a oeste, de onde vêm as tormentas…
Na fúria de apertar, fomos até a base da via Diedro de Jim (Agulha FREY), tentamos a primeira cordada, mas o frio estava de lascar e começou a nevar…
“Escalada na Patagônia é assim… “, disse tranquilamente meu companheiro…
E assim, descemos da via e voltamos eu, Alex e Filippo para o acampamento à espera de uma janela, que não estava na previsão para o dia seguinte.
Mas ele amanheceu ensolarado…
E lá fomos eu e Filippo direto para a Agulha El Tonto, realizar a via Meteoritos sobre a qual ele marketeava desde o Brasil: “Alucinante, Filé, você tem que conhecer!”
Desde o acampamento, levamos cerca de uma hora e meia de caminhada até a base da parede.
Para acessar a via Meteoritos, que começa em um platô a 50 metros do chão, escalamos a via Le Gran Tom, meu primeiro contato autêntico com as agarras perfeitas do Frey.
Já na Meteoritos, guiada pelo Filippo, finalmente entendi a empolgação com a linha, principalmente na saída do diedro para a reta final que passa por uma fenda alucinante, com o elemento adicional do vento soprando fooooorte!
“Intenso.”
E assim, chegamos ao cume DEL TONTO !
No dia seguinte, friaca, neve e muito vento, sem chances de desfrutar de agulha alguma….
Dia de descanso bem vindo!
O outro dia amanheceu com sons que me pareciam ´boeings´ sobrevoando o Valle…
“Existe uma parede chamada La Tapia no Valle do Campanille que fica abrigada do VENTO”, lembrou o Alex.
Tocamos para o Valle e chegamos à base desta parede.
Após analisarmos o croqui, optamos pela clássica Jungle en Folie, com crux de 6c, (tipo um 7c do Brasil – a graduação do Frey é mais forte que a francesa).
O frio estava forte e o Alex abortou na base, já que em 3 ficaríamos muito tempo ´estacionados´ nas paradas.
Via linda, mas com a rocha geladassa eu e Filippo também paramos no fim da primeira cordada!
O dia seguinte estava um pouco menos frio, ainda com bastante vento. Sendo assim, optamos em voltar à La Tapia para fazer cume por uma via onde eu também me sentisse segura em guiar em móvel.
A ´Jungle´ estava ocupada por um casal de norte-americanos então escolhemos uma linha chamada Vertical Robbery um pouco mais ao lado…
Com o rack de móveis completíssimo, me preparei fisica e psicologicamente para guiar a primeira parte, como sempre, não economizando peças…
Delícia de sensação…
No final dos primeiros 30 metros, todos os friends roxinhos e amarelos já tinham sido usados, mesmo estando duplos no rack…
“Isso que dá estar acostumada a proteção no pé…” hehehe
Uma fenda muito louca, bem casca, seguia dali, e como não havia mais peças compatíveis à fenda para proteger, viva a parada! Avistei uma chapeleta em cima de uma laca para servir de ´poltrona´ e ali me instalei para segurar o Filippo.
Dois ´camalotzões´ serviram para compor a equalização + back-up… Modéstia parte e graças à formação rochosa, foi uma paradinha digna de bivaque!!! ehehe”
“Só espero que essa laquinha não seja um daqueles casos em que o platô inteiro se solta da parede!!! “, pensei eu lá com o resto dos meus botões…
Tocamos pra cima as outras 3 cordadas da via e escalaminhamos o restinho até o cume!
Super Alto Astral!!!
Nessa mesma noite, o vento diminuiu e o céu estrelado anunciava a entrada de uma janela de tempo bom…
Guiados por ela, programamos uma escalada mais forte no COHETE LUNAR (150 metros).
Acordamos com um dia intensamente azul e partimos eu, Fi e Alex para a caminhada de 2 horas rumo à base da via Objectivo Luna, do outro lado do Valle do Campanille.
A primeira cordada é toda em móvel, deliciosa, com altas agarras oriundas de uma fenda com pegas potentes, quase toda em oposição!
A via oferece algumas chapas na 2ª e 3ª cordadas de face, com movimentos bem delicados. Depois, vem a cordada de 4 grau, com trepa pedra e algumas fendas fáceis (um pouco confuso no croqui)…
Após algum tempo procurando, encontramos a base da enfiada seguinte, um lindo diedro passando no final a uma aresta incrível… Altos visuais.
O crux vem em seguida: um domínio negativo em fenda, passando depois para uma face vertical cheia de regletes. Eu estava bem cansada nesse trecho e após as cordadas anteriores, sofri para fazer o movimento de força…
E finalmente chegamos ao módulo lunar, um bloco gigantesco apoiado no topo da agulha com uma enfiada curta e muito linda, toda em regletinhos bons, que leva até o cume!!!
Em 3 escaladores levamos cerca de 8 horas de escalada até o ponto mais alto do COHETE LUNAR!
O rapél é feito pela face oeste da agulha, seguindo por uma ´destrepada fácil´ por trás da Agulha LA BANANA (ao lado do Cohete).
Para quem não conhece, dá para se perder fácil…. Principalmente se você tiver que iniciar a desescalada à noite como nós…
O último dia amanheceu com um sol escaldante, que somado ao cansaço muscular e geral, me levou direto para dentro do lago, permanecendo alguns segundos imersa!
Dia de descanso total! E viva “o banho”!!!
No dia da partida, café da manhã no refúgio Frey ($25 pesos, com geléia e pão caseiro, e o básico café com leite ou achocolatado)…. Boa opção para encarar as 4 horas de trilha rumo à civilização….
Em ´Brasiloche´, jantar de despedida dos companheiros Carla e Alex que estão subindo para o Brasil de carro! Saudades!!!
Quem tiver interesse em acessar uma matéria brasileira bem legal sobre escaladas del Frey, pode encontrar na edição n.6 da revista Headwall: www.revistaheadwall.com.br
E como despedida, nada melhor do que o autêntico tango Argentino!
Valeu galera! Já estamos trabalhando a próxima safra!
Agradecimentos enormes ao Filippo Croso e Alex Gessner!!!!
Hasta La vista,
Janine