(Quatro horas da manhã)
– Cristina?
– Quem fala?
– Pedro.
– O que houve?!
– Se acalme!
– O Juan…
– Juan morreu.
– Como?
– Edema. Pulmonar. Não conseguimos baixa-lo a tempo. Nevasca.
– E Murilo?
– Está bem.
– Onde vocês estão?
– La Hoyada, ao pé do Infernillo, 5.700 metros, muito vento, -25 graus.
– Deus… para que isso?
– O que você quer que façamos com o corpo? Podemos baixa-lo até Piedra Grande, de lá envia-lo de mula para Cajatambo.
– Não.
– Não?
– Deixe-o aí.
– Mas…
– Juan queria morrer na montanha. Dizia que um dia não voltaria. Chegou esse dia.
– Mas…
– Façam uma cerimonia espiritual. Rezem e o cubram com neve.
– Estás segura?
– Sim.
Pedro desligou o telefone satelital.
Murilo acompanhou a conversa calado, encolhido em seu saco de dormir. Juan, esticado ao seu lado, se vivo estivesse teria ouvido sua mulher mandar que ficasse por lá.
O dia amanheceu. Os dois alpinistas deixaram a barraca. Fizeram uma cova onde depositaram o corpo de Juan, seguindo a vontade de Cristina. Mas ela pediu que antes de cobri-lo de gelo, fizessem uma cerimonia espiritual.
Em volta do corpo, os dois se entreolhavam sob o vento inclemente. Nevava muito.
– Fala alguma coisa…
– Começa você.
– A gente não se preparou para isso.
– Uma cerimonia espiritual…
– Não sei o que é.
– Nem eu.
– Juan era sangue bom.
– Companheiro.
– Solidário.
– Sorridente.
– Salvou minha vida numa greta.
– Descanse em paz.
– Não vai descansar…
– Como assim?
– …nem vai se cansar. Acabou.
– Juan agora está com Deus.
– Juan acabou, deixou de existir.
– Até em velório você é ateu!
– Agnóstico.
– Mesma coisa.
– Não é.
– Qual a diferença?
– Muito frio para explicar.
– Ele continua existindo no espírito da montanha.
– Montanha não tem espírito.
– Montanha é sagrada.
– Montanha é areia e rocha.
– Ao longo dos séculos, incas, aimarás, sherpas, mongóis, os mais diversos povos cultuaram seus deuses nas montanhas.
– O homem criou Deus e o fez morar nas alturas.
– A montanha une o humano ao divino.
– A montanha é uma elevação natural do terreno.
– A montanha propõe diversos caminhos ao cume.
– Nós criamos os caminhos.
– Cada caminho com suas dificuldades…
– São nossas as dificuldades.
– Escolha, esforço, superação, transcendência. Chegar ao cume é a metáfora da comunhão com o sagrado.
– O ataque ao cume é um jogo de vida e morte, onde a nossa obstinação luta contra o medo e a sensação de abandono, fragilidade e insignificância.
– Olimpo, Kailash, Fuji, Sinai, Nebo, Song Shang, Croagh Patrick, Licancabur… Em todas as culturas, a montanha é onde o homem encontra Deus.
– Desculpe minha pobreza de espírito, mas insisto que montanha é só areia e rocha.
– E por que você escala montanha?
– Escalo para viver.
– Olhe para nós três. Chama isso vida?
– Sim, vida em estado puro. A montanha resgata a simplicidade que se perdeu na cidade.
– A montanha é complexa.
– Aqui não tem cardápio nem vitrine, não se troca de roupa nem de móveis. Na montanha menos é mais.
– Há muita vaidade na montanha.
– Na montanha tudo se explicita. Nos revelamos aos outros e a nós mesmos. A máscara cai. E o montanhista aprende o valor da paciência, perseverança, resiliência e humildade. Aprende a valorizar o essencial, abrigo para dormir, água para beber, e a contemplação da paisagem. Se isso não for viver, não sei mais o que é.
– Mas você diz que Juan morreu.
– Sim. Isso não é maravilhoso?
– Maravilhoso?
– Morreu de tanto viver.
Enquanto discutiam, o corpo de Juan sumiu sob a neve. Em volta, tudo era branco. Apenas o açoite do vento quebrava a monotonia da paisagem. Os dois, congelados, deram a cerimônia espiritual por encerrada. Voltaram para a barraca e esperaram o fim da nevasca.
Funeral na montanha
0O falecimento de Juan na montanha.
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