Inter-parques: do Parque Estadual do Itambé ao Parque Estadual do Rio Preto em 2,5 dias.

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A proposta surgiu no apagar das luzes de setembro de 2023. Uma caminhada técnica e desafiadora, em quatro dias, partindo do Parque Estadual do Pico do Itambé e concluindo no Parque Estadual do Rio Preto. A condução avançada e matura na gestão dos parques permitiu a integração entre as duas unidades de conservação e franqueia, sob disputada reserva, essa travessia, sem obrigar a contratação de guia. Esse arranjo libertário sinaliza que a administração de ambos os parques entende o montanhismo como esporte e trata os praticantes com o devido respeito, sem buscar uma curatela paternalista, verdadeiro veneno para o montanhismo. Responsabilidade, condicionamento físico e emocional, competência técnica e autonomia são conceitos basilares para o esporte. Faço sincero voto de que essa exemplar postura se propague pelos demais parques, Brasil afora. Esse é um local que me traria imenso prazer voltar a trilhar e conhecer ainda melhor.

Havia-se tentado organizar essa travessia, porém sem obter quórum para viabilizar uma van e fazê-lo com transporte rodoviário soma ao cansaço da caminhada, as dificuldades de chegar e partir em horários comerciais. O projeto dormitava na gaveta, quando surgiu essa oportunidade, organizada pelo Clube Excursionista Universitário – CEU em parceria com alguns outros montanhistas. Sem perda de tempo a Amanda se inscreveu na lista de espera e, em sequência, esse que vos escreve. A vaga dela surgiu rápido… a minha, demorou-se um pouco por aparecer, mas deu certo, com boa antecedência ainda.

Como usual em grupos de montanhistas sérios, a responsabilidade de planejar o trajeto e as atrações ficou a cargo de cada um de forma individual, com uma proposta “estrutural” feita pela Talita e pelo Marcelo. Os pontos de acampamento, dentro desses parques são parte do plano de manejo e, portanto, não é permitido o “camping livre” em locais diversos dos já estruturados para esse impacto. Isso decorre de questões de segurança e de impactos antrópicos ao ambiente. A esmagadora maioria das pessoas, condiciona-se desde a infância, ao servir-se de banheiros para as suas necessidades fisiológicas pela manhã. Então, o ponto de acampamento tem expressivo potencial de contaminação de terras e águas, caso não seja objeto de adequado manejo. Nessa travessia, aa exceção do Pico do Itambi todos os pontos de acampamento ofertados contam com funcionalidades de água para banho e banheiros com biodigestores. O ponto de acampamento no Pico do Itambé dispõe de eficiente e ecológico banheiro seco, uma solução elegante para a reduzida oferta de água, que inviabiliza o banho.

Se a proposta de fazer a travessia em 4 dias era desafiadora, afinal nosso roteiro totalizava 84 km, o passar célere pelas cachoeiras do PE do Rio Preto, em função do horário de retorno previsto (14h), incomodou a Amanda, que me trouxe uma proposta ainda mais ousada: fazer em 3 dias a travessia, criando uma margem para ficarmos “de boa” apreciando as cachoeiras do trecho final na manhã do 4° dia.  Dessa forma, alteraríamos o ponto de acampamento do primeiro pernoite do cume do Pico Itambé para a casa do Sr. Santos. Faríamos de dois dias, um. O incremento de quilometragem previsto não era muito expressivo, 9 km, sem grandes subidas. Topei a ideia e tratei de apurar meu planejamento, revisando o mapa da travessia e o arranjo de equipamentos e mantimentos, pois, poderíamos contar com jantar nas noites 1 e 3. Dessa forma andaríamos um pouco mais leves e contribuiríamos com a economia local. Importante ressaltar que fazê-lo acrescenta a obrigatoriedade de adequação nos pontos de acampamento, frente ao gestor do parque e que essa adequação é uma liberalidade, baseada na assunção por parte do responsável na capacidade do montanhista de cumprir a jornada mais extensa no primeiro dia, sem descuidar dos aspectos de mínimo impacto e de segurança prezados por ambos os parques. A Amanda relatou nossa “capivara” de trilhas, ao longo de décadas de caminhadas de diferentes perfis e complexidades. Obtido o voto de confiança prévio, tratamos de apurar nosso planejamento, buscando minimizar o peso transportado e rever as estratégias originalmente definidas para consumo de água, comida, ritmo de caminhada, pontos de paradas, exposição ao sol etc.

De pronto, reduzimos o peso de alimentos, contando com jantar a primeira noite no Sr. Santos e a terceira no próprio restaurante do PE do Rio Preto. Ainda que tivéssemos plenas condições de transportar os alimentos e meios de preparo, nos agradava a ideia de consumir localmente, ajudando, ainda que em pequeno grau a movimentar a economia dos moradores da região. Dessa forma, ficamos com os pernoites previstos assim distribuídos: 1° noite, Sr. Santos (com jantar); 2° noite, Casa Mozart e 3° noite, camping no parque (jantar e café da manhã no restaurante).

O ponto de encontro era na padaria do metrô Tatuapé, tivemos um primeiro atraso com a chegada da van, mal sabíamos o que nos esperava nesse tocante. Eram dois motoristas que não valiam por um. Ainda no começo da viagem, por mera sorte, estranhei um veículo diminuindo e por fim parando na pista (faixa da esquerda) enquanto nossa velocidade permanecia inalterada. Alarmado, verifiquei que tanto piloto quanto co-piloto estavam com a cabeça baixa, sem olhar para frente. Francamente assustado, meu grito de “CARRO PARADO NA PISTA” teve o condão de retornar o olhar do motorista para onde não devia ter saído, a estrada. Enquanto ele desviava do carro parado, jogando na pista da direita e obrigando o caminhão que estava ali a sair para o acostamento, eu só pensava em colocar as pernas de lado, para não ficar preso as ferragens e poder fazer algo após o acidente, que julguei inevitável. Mais por acaso que competência ao volante, conseguimos escapar do choque e seguir viagem. Emoção desnecessária, essa.

O trânsito de véspera de feriado fez com que partíssemos às 20h10 com pouco mais de uma hora de atraso em relação ao horário previsto, 19h. A Talita e a Priscila alertaram os motoristas que seguissem pela estrada do Serro, evitando longo e moroso trajeto pela região de Itabira. Dessa forma, seriam 12 h de viagem + 1 h de parada, fazendo com que nossa previsão de chegada no parque passasse de 8h para 9h, bastante margem em relação ao horário-limite de entrada. As sucessivas trapalhadas na escolha do caminho pelos condutores acabariam por nos deixar perto da entrada do parque (alegaram que van não conseguiria prosseguir pela estrada de terra) praticamente às 14h, então tratamos de subir quase que correndo até a portaria, onde chegamos às 14h17. Apresentamos os documentos de reservas dos pernoites, o “de acordo do gestor do parque” e felizmente, tivemos a entrada autorizada. Aproveito para agradecer a compreensão do fiscal na guarita.

Dia 1

Tratamos de apertar muito o passo, pois nosso caminhar seria mais extenso que o dos demais, uma vez que acamparíamos no Sr. Santos, cerca de 9 km após o cume do Pico Itambé, destino dos outros colegas de pernada para aquela noite. O sol estava extremamente intenso, e o atraso de 6 h em relação ao planejado prejudicara por demais o início da travessia. Procurando manter o planejado, de forma a enfrentarmos o sol intenso com as roupas molhadas e muito bem hidratados, fizemos ataques céleres até as cachoeiras Água Santa, Neném, do Rio Vermelho, chegando ao cume do Pico Itambé às 23h, com a Amanda tendo sentido mais o desgaste na subida, provavelmente por uma hipertermia incipiente. Subi devagar, aguardando que os retardatários nos alcançassem ou que, ao menos conseguíssemos ver as lanternas deles. Quase no cume, a Amanda me alertou que éramos os últimos do grupo na subida, coisa que duvidei, pois não havia visto algumas pessoas que, para mim, estavam atrás de nós. Ao chegarmos no cume, pude confirmar que ela tinha razão, em algum momento e de alguma forma, havíamos sido ultrapassados e eu não percebera.

Com o atraso na viagem, projetamos que chegaríamos na casa do Sr. Santos às 3h da madrugada sendo um estorvo ao acordá-lo, uma vez que apenas nós éramos esperados aquela noite. Fosse como fosse, sua preocupação com nossa chegada perduraria até quase o nascer do sol. Discutimos um pouco sobre prosseguir ou alternar o pernoite para o Pico Itambé. Lugar para bivaque não faltava e o ponto d’água da descida não era muito distante. Estávamos em um dos pontos de acampamento autorizados pelos parques e dispúnhamos de instalações sanitárias. Particularmente, para a Amanda, deixar de cumprir o cronograma era fulcro de grande angústia e eu procurava ponderar sobre a possível conveniência de nos adaptarmos ao contingente, ainda que contrariados. Como passaríamos direto pelo cume, optáramos por subir com água apenas para o caminhar. As recorrentes sugestões de pernoitarmos no cume fizeram coro no oportuno de apreciar melhor a beleza cênica do majestoso Itambé, com 2052 m de altitude, em rochas metamórficas, de arestas agudas e cuja vegetação arbustiva e espinescente apresenta cruento contraste com a Serra do Mar que trilhamos com maior frequência. Um pouco ressabiados com o “fugir” do proposto, mas aceitando que só chegaríamos após as 3h da madrugada no Seu Santos, entendemos mais prudente alternar o ponto de acampamento para o cume do Itambé, pelo que pedimos perdão aos gestores das unidades de conservação. Com a decisão de pernoitar ali e seguirmos no outro dia direto até a casa Mozart, tratei de ir buscar água, enquanto a Amanda preparava um frugal jantar para nós.

Seguindo as placas, não tardei a encontrar o ponto de abastecimento, infelizmente, com a tubulação de captação totalmente seca. Segui a tubulação por uma trintena de metros para descobrir que ali também não havia água. Decidi procurar mais um pouco, pois a umidade era bastante intensa e em alguns pontos podia-se observar o gotejar, nas rochas. Fazendo um pouco de malabarismo, consegui coletar dois litros e satisfeito, retornei ao abrigo do pico.

Dia 2

Acordamos, arrumamos as cargueiras e partimos pouco após as 7h, descendo cuidadosamente por entre as rochas, acompanhando os rastros e as sinalizações colocadas estrategicamente nos pontos em que a passagem não é óbvia. Por duas vezes, foi necessário “mergulharmos” em direção ao solo, como se entrássemos em uma caverna, para podermos prosseguir. No primeiro ponto desses, busquei contornar o mergulho, já que a placa apontava “pra dentro de um buraco”, apenas para concluir que a alternativa testada era bemmmm pior. Sinalizei isso para a Amanda, aguardei que ela me alcançasse por baixo para lhe entregar minha mochila antes de voltar e me espremer pelo buraco. Sem mochila foi bem tranquila a passagem. Pouco depois escutei o Davi procurando fazer a passagem pelo mesmo ponto em que eu testara há pouco, e retornei uma vintena de metros acima para orientá-lo. Em dois, comigo dando apoio aos seus pés, ele logrou passar pela alternativa, que apresentava pequena inclinação negativa. Após trazê-lo em segurança ao solo, ambos concluímos que definitivamente não era o melhor caminho e sinalizamos isso para o Marcelo que também chegava ao “ponto do buraco”.  A exposição à uma queda nas pedras abaixo não justificava sequer a tentativa em solitário. Retomei a caminhada, alcançando a Amanda, que aguardava algumas centenas de metros à frente.

Na descida encontramos um guarda-parque que subia em direção ao Pico do Itambé para conferir as condições do abrigo e monitorar a visitação ao cume. Foi bem legal presenciar esse cuidado que toda a estrutura de gestão e controle dos parques dedica. Seguimos trocando impressões com a dupla Marcelo e Davi sobre a beleza cênica, a organização do abrigo do cume, que dispõe inclusive do sanitário seco mais alto do Brasil, projeto na área de Epidemiologia do professor Dr. Alex Sander Dias Machado, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, em parceria com o Parque Estadual Pico do Itambé. É alvissareiro encontrar “pílulas” da boa integração entre a Academia e a Sociedade.  Essa impressão positiva seria reforçada a cada encontro com a equipe de guardas-parques, pesquisadores e moradores, em ambos os parques. Expresso aqui o reconhecimento, meu e do grupo, pela visionária condução da gestora Mariana Gontijo na lida de tão delicado assunto.

Concluída a descida, encontramos um brigadista em trabalho preventivo e aproveitamos a rústica mesa para um rápido lanche enquanto eu tratava de costurar a sola do meu tênis que apresentara uma enorme “boca” com o descolar do calcanhar esquerdo. Canivete, uma fita Hellerman e um pouco de criatividade permitiram pequena “solução técnica alternativa” tão eficiente, que ao escrever hoje, passados quase dois meses, ainda está trabalhando. Inclusive foi empregado na travessia Itaci-Guapé, roteiro inédito que ainda pretendo relatar.

Conserto efetuado, retomamos o caminhar, sabedores de que nosso acampamento ainda distava uma quase uma trintena de quilômetros. Buscávamos recuperar as horas de atraso da viagem colocando nosso planejado “em dia”. Aproveitamos todos os cursos d’agua que cruzamos para molharmos as roupas, refrescarmos os corpos e nos hidratarmos. Mantivemos conosco 1 litro de água por cabeça, zelando pela disciplina de bebermos de pouco em pouco, independente de sentirmos sede. Numa curva do caminho, ao pedirmos autorização para cruzarmos as terras de uma simpática senhorinha, aceitamos algumas bananas, extremamente frescas e saborosas. Foi um custo conseguir que a senhorinha aceitasse alguns reais pelo mimo. Argumentei que me faria um pouco mais feliz, ao que ela se rendeu. A hospitalidade que recebemos em todos os pontos foi algo de enternecer o mais empedernido dos corações. Gente que compartilhava do “pouco” que tinha com estranhos que nunca veria novamente. Que nos convidava a partilhar de suas casas e suas histórias. Numa parada nos refrescarmos, deixamos a dupla Marcelo-Davi e seguimos à passo, apreciando o suceder de paisagens estonteantes do Espinhaço. Observamos uma discreta saída à direita, em ângulo adequado para quem viesse em sentido contrário que supomos permitir acesso a alguma cachoeira ou poço para banho. Com o “avançado” da hora optamos por não conferir se nossa suposição era acertada. Saberíamos depois que sim, dava acesso a uma charmosa cachoeira.

Cipocerus Minensis( Marcelo Fontana)

Maracujá selvagem

Chegamos na casa do Seu Santos, 11h20 e, após insistirmos em pagar a hospedagem, até como uma forma de contribuir com a economia local e, principalmente entendermos adequado. Em meio às nossas reiteradas desculpas pela preocupação adicional que havíamos causado, acabamos convidados por ele e sua senhora para almoçarmos antes de prosseguirmos. Apesar do atraso que contávamos, não soubemos como recusar.

Não estou acostumado a trilhar dessa forma, por “consumir horas nobres de luz” e obrigar o corpo a dividir esforços fisiológicos entre a digestão e o caminhar. Mesmo assim, a humilde e simpaticíssima companhia fez com os momentos passassem céleres e de forma extremamente agradável. Talvez um dos momentos mais aprazíveis desse dia. Ao final da refeição simples, farta e saborosa, ofereceu-nos uma carona até a escola, ao que educadamente recusamos. Por mais que apreciemos fomentar a economia local, não nos apetece aceitar qualquer ajuda na caminhada, até por ser um desafio pessoal a que livremente, nos propomos. Acabaríamos por retomar a caminhada apenas às 13h, fazendo a digestão enquanto caminhávamos.

Deixando as terras do Seu Santos, seguimos em suave descida passando por algumas cabeças de gado, com um espetacular “castelinho” ao fundo. Por precaução e de forma a não assustar os animais andamos com as mãos para cima, tocando as reses ao som de “ôôôô boi”… pode não ser elegante, mas foi eficaz. Os animais que estavam na estrada e também à margem se afastaram pacificamente. Desse ponto a descida se acentuou um pouco e logo encontramos o famoso (e temerário) sumidouro, um trecho em que o rio corre por sob enormes pedras, sendo audível seu rumor, mas não sendo possível observar a água. Em toda parte, troncos despedaçados e galhos sinalizam que, sob uma chuva mais forte, a água que corre metros abaixo toma também a superfície com grande violência. Como as rochas não guardam rastros de passagens anteriores, mirei o que parecia um rastro de passagem na encosta oposta e fui caminhando em sua direção. Após galgar algumas pedras consegui observar uma singela escadinha, sinal inequívoco de que nosso trajeto passaria por ali. Sinalizei a confirmação para a Amanda, que me seguia, distante de uma quina de metros.

Cruzado o sumidouro, subimos por uma encosta pouco inclinada, passando peças de madeira lavrada, aparentando serem por vestígios de um antigo moinho. Pouco a frente, um bambu atravessado na trilha parecia indicar que o proprietário não franqueava a passagem naquele trecho, de forma que pegamos uma trilha à esquerda e seguimos por alguns metros aquele rastro, ao notarmos que se distanciava e começava a perder altitude de forma mais intensa, voltamos sobre nossos passos e subimos por uma corrida d’agua até retomarmos ao caminho planejado. Seguindo em frente, cruzamos uma porteira, tendo o cuidado de tornar a fecha-lá após nossa passagem para evitar que animais se extraviassem. Seguimos a cerca, passando por dois pés frondosos de jatobás, plantados rente à cerca da casa do João. Mais algumas centenas de metros nos levaram a estrada e, pouco depois chegamos na Escola Covão.

Fizemos uma rápida parada para que a Amanda contatasse a mãe dela, de forma a tranquilizar a ambas. Enquanto buscávamos o contato, ficamos observando a tempestade ao longe, para os lados do Itambé. Lembramos que eu havia perguntado se iria chover ao Seu Santos e este respondera que não… concluímos que eu deveria ter explicitado melhor o local e horário da dúvida. Descuidei e não corrigi o ajuste do meu tênis, que vinha roçando na lateral e na palma dos pés, na região próxima aos dedos. Esse é um dos pontos que adoro nas trilhas. Sempre há o que melhorar. Pagaria meu descuido em cada passo e com juros crescentes. Minha aposta era que, pelo movimento das nuvens teríamos não mais de 4 horas antes que fossemos alcançados. Avaliamos nos abrigarmos e esperarmos, mas o tempo que perderíamos prejudicaria sobremaneira o propósito de alcançar a entrada do PERP antes das 20 h. Decidimos prosseguir, apertando o passo perdendo altitude primeiro para depois começarmos uma suave, mas extensa subida até a porteira do parque. As lufadas de ar quente prenunciavam que seriamos atingidos pela tempestade. O vento trazia folhagens e poeira com violência. Tratei de afundar o chapéu na cabeça, para que não fosse levado a qualquer momento. Deixamos as capas de chuva de prontidão. A tempestade nos alcançou na subida para a Chapada do Couto, com as gotas de chuva sendo sopradas pelo vento com bastante força, tamborilando ao se chocar com o meu chapéu. Segui contando o intervalo entre os relâmpagos e os trovões e, para meu alívio, logo ficou claro que estávamos apenas na borda da tempestade e que ela não se aproximava de nós. Com a tarde escurecendo rapidamente, seguimos em passo apertado, cada qual com suas dores nos pés.  Com o anoitecer, começamos a ter um novo efeito com o clarear de cada relâmpago. A claridade provocada fazia as vezes de um flash fotográfico e permitia apreciar o contorno das montanhas ao longe em um efeito que equilibrava a beleza cênica e poder bruto em quadro que impunha admiração e respeito. Não éramos os pontos mais altos e a tempestade mantinha-se distante de nós. Mesmo assim, seria bem agradável contar com um teto sobre nossas cabeças. Fazia alguns minutos que a Amanda aceitara vestir uma capa de chuva, mas não queríamos descuidar do risco de potencial hipotermia, então o combinado era mantermos o passo ate nosso ponto de pernoite. Ao chegarmos, ela trataria de se secar enquanto eu prepararia uma refeição quente.

Passamos pela placa sinalizando a nascente do Rio Preto às 19h22 e no alojamento dos guardas-parque e dos pesquisadores, às 19h36. Para nós, restava 2,5 km de caminhada, mesmo com os pés feridos, faríamos em menos de uma hora até a casa Mozart, onde nos abrigaríamos da chuva para o pernoite. Quando nos informaram que não “poderíamos” prosseguir, ficamos sem entender, pois ainda estava dentro do horário de entrada permitida. Pacientemente, o guarda-parque Júlio nos alertou que chovera com bastante intensidade mais cedo e que havia receio de que a tempestade houvesse causado algum dano no abrigo. Em função desse receio, de comum acordo com os demais colegas, nos ofertou, excepcionalmente, guarida naquela noite.  Poderíamos bivacar na sala, com direito a banho quente e ainda nos convidou para que jantássemos com eles. Colocado dessa forma, seria um grande desrespeito com toda a cautela que ele entendia pertinente, e não seríamos nós a obstar o excepcional trabalho que os diversos profissionais envolvidos na visitação segura entendia adequado. Tomamos um revigorante banho, trocamos as roupas molhadas da caminhada por vestes secas de dormir, partilhamos do jantar simples mas super saboroso, com direito a bolo de chocolate, inclusive.  Ao ver as bolhas da lateral externa dos meus calcanhares, cuja posição ficava difícil pra que eu mesmo a perfurasse, o Julio se ofereceu para a tarefa. Lhe passei a agulha intramuscular de contingencia frente a um choque anafilático e em poucos segundos, a tarefa estava feita. Para arrematar, prendi um pouco de gaze para ajudar na drenagem do líquido. Arranjarmos os dois colchões cedidos na sala, demos boa noite e nos recolhemos.

Dia 3

Como de praxe, acordei às 5 h e fiquei em silêncio aguardando que os outros acordassem. Pouco depois das 6h, o pessoal da casa começou a se movimentar, de forma que acordei a Amanda para que não atrapalhássemos (mais) a rotina deles. Tratamos de arranjar as coisas de volta nas mochilas e, às 7h estávamos prontos para partir. Ficamos ainda um tempo conversando com o Julio, esperando ver se o dia vingaria para sol ou para chuva. Lá fora, um nevoeiro prometia sol, mas ameaçava molhar tudo que alcançasse, o que levou a Amanda a vestir sua jaqueta de chuva. Aproveitei para verificar se os jatobás colhidos do chão estavam maduros, com a grata surpresa de uma resposta positiva. Preenchemos as fichas devidas e às 8h partimos para a derradeira perna dessa travessia. Seguindo as orientações lógicas do Júlio e, de tempos em tempos conferindo nossa posição no mapa impresso que levávamos, em 40 minutos de tranquila caminhada (as bolhas drenadas e o uso de dupla camada de meias fez maravilhas com os meus pés) alcançamos o ponto de pernoite original da segunda noite.

Aproveitamos para conhecer um pouco dos arredores, fazer algumas fotos e coletar muitas frutinhas ao lado da casa. Eram gabirobas, e as encontraríamos em fartura nas próximas horas.

Cruzamos o Rio Preto pela primeira vez e passamos a subir suavemente buscando superar o divisor de águas que daria acesso ao Córrego das Éguas. Na subida, em meio à miríade de gabirobas, à direita encontramos uma frutinha diferente, que supus acertadamente ser Cereja do Rio Grande. Pouco a frente, porém agora à esquerda, duas espécies de palmeiras com frutos comestíveis se faziam presentes. A cada pouco, saltava da vegetação grandes voadores marrons, que viríamos a saber serem gafanhotos, cada um com pouco menos de 10 cm de corpo, que pareciam pequenos pássaros.

Alcançamos a Cachoeira do Crioulo, em sua cabeceira, às 14 h. Caso seguíssemos pelo caminho fácil, em pouco mais de uma hora estaríamos no restaurante do parque. Não era nossa proposta, então pegamos o caminho longo, por dentro do cânion do Córrego das Éguas, seguindo as setas estrategicamente colocadas para orientar a caminho. Com as nuvens cinzentas que vínhamos observando ao longe no horizonte, procuramos minimizar o tempo em que ficávamos encurralados pelos paredões verticais, deixando para apreciar mais a paisagem quando as paredes laterais cediam lugar a trechos menos verticais que permitiriam a fuga da fúria das águas, caso se fizesse necessário. Às 16 h, alcançamos a Cachoeira das Sempre-vivas, fizemos uma rápida parada para registrar sua beleza antes de seguir em frente, em direção ao Poço da Forquilha onde ocorre o encontro das águas do Rio Preto com as águas do Córrego das Éguas. Nesse poço fizemos uma nova parada para banho que encerramos rapidamente em função da quantidade (e voracidade) das mutucas à espera de incautos banhistas. Esses hematófagos voadores são predados pelos muitos calangos que vimos pelas rochas e que, certamente não passam fome frente à disponibilidade de alimento.

Cachoeira das Sempre Vivas

Deixamos as frescas águas do Rio Preto, passamos por um pé carregado de Cagaita derrubado pela forte tempestade da véspera e, com a doce sensação de completitude caminhamos pelos 2,2 km que nos separavam da sede do parque, do restaurante e do camping. Chegamos no restaurante às 17h48, demos parte da conclusão da caminhada ao Antonio (Tonhão), gestor do PERP, a quem agradecemos por todo o cuidado e zelo que dedica na organização e funcionamento de ambos os parques.  A Amanda aproveitou para deixar respirar os pés feridos e eu para apreciar uma coca cola (zero) gelada e uma porção de batatas fritas, enquanto esperávamos o jantar (contratado previamente) ser servido, em sistema self-service.

Bem alimentados, restava montar a barraca para o pernoite. Quando chegamos eu ficara surpreso com os chalés e propus alternarmos para um deles, caso os valores não fossem exorbitantes e houvesse disponibilidade, ao que a Amanda aquiesceu. Verifiquei que a resposta para ambas as questões era positiva e pouco depois pudemos descansar os corpos da dura jornada.

 

Dia 4

Tendo passado por todas as cachoeiras e poços (abertos à visitação) do parque na véspera, nos demos essa manhã para descanso, acordando sem pressa, tomando um lauto e saboroso café da manhã, fazendo curativos para os machucados dos pés e arranjando as mochilas para a viagem da volta. Devolvemos a chave do chalé e ficamos esperando no restaurante que o almoço (a lá carte) fosse servido. Havia certa expectativa com a chegada dos demais integrantes do grupo, que não víamos desde a primeira noite, quando dividimos o Pico do Itambé. Teriam tido problemas para cruzar o Sumidouro, em função da tempestade? Como a longa estrada de pedras entre o Seu Santos e a casa Mozart teria sido vista (e sentida) por eles? Chegariam todos, de fato, até o horário previsto das 14 h, planejado para a partida da van para o retorno? Havíamos Começado a caminhada do terceiro dia às 8 h e chegáramos ali às 18 h, sem nenhum perdido substancial, nem paradas para banho e registros mais longas. Para fazerem o mesmo tempo, e chegarem às 14 h, pelo mesmo caminho, teriam que fazer a partida às 4 h da madrugada, o que equivale dizer que precisariam ter a disciplina de fazer a alvorada às 3 h. Faze-lo no derradeiro dia de caminhada, com os corpos já sensibilizados pelo superar de quilômetros de caminhada, sob o sol intenso que fizera nos últimos dias, era certamente algo desafiador.

Aos poucos o pessoal foi chegando, todos íntegros e faceiros. A pergunta em nosso olhar era “como?”. Todos declaravam ter descido por dentro do rio, da mesma forma que nós, mas não se via um a escolher a passada, clássico de bolhas nos pés, ou a trincar os lábios no segurar mudo de um palavrão frente à dores inconfessáveis. Saberíamos na viagem de volta.

Jatobás no segundo dia, pouco após cruzarmos o Sumidouro.

Iniciamos o retorno com pequeno atraso, 14h20. Em uma das paradas, o segredo revelou-se: lembram-se da dadivosa oferta do Seu Santos para nos dar “uma carona”? Então, essa oferta foi aceita pelo grosso do grupo. Com algumas exceções (sei das duplas de caminhada Marcelo e Davi, do Miguel e Maria Andrea e da Priscila e Paulo e também da Letícia), alguns fizeram quase que todo o trecho do dia 3 aboletados na valente camionete do Santos e outros caminharam sem as mochilas cargueiras nas costas. Após passarem pela Cachoeira da Cortina, uns se bateram por subir mais do que o previsto, atacando o pico 2 Irmãos e acrescendo o pouco explorado Morro do Alecrim ao trajeto (Marcelo e Davi) e outros optaram por incentivar a economia local em graus variados. Houve, portanto, quem aproveitasse para trilhar de “consciência leve”, enviando as cargueiras pelo conveniente transfer do Seu Santos até a entrada do PERP. Tanto eu quanto a Amanda temos nossos pudores em movimentar a economia local, rsrs. O converter do sigilo em segredo de polichinelo, trouxe confessado alívio, afinal havíamos sofrido um pouco na caminhada, principalmente em decorrência do atraso na viagem de ida.

Travessia ímpar de beleza crua e visceral. Apreciar o cerrado brasileiro em sua exuberância de flora e fauna. Os gestores de ambos os parques, Mariana, do Parque Estadual do Pico do Itambé e Tonhão, do Parque Estadual do Rio Preto fazem primoroso trabalho no organizar das visitações e travessias, bem como no zelar pela conservação desses importantes fragmentos (e testemunhos) do meio ambiente do nosso país.

Participantes:

Marcelo, Talita, Caroline, Paulo,Miguel, Ilma, Amanda, Rogério Alexandre, Mauricío, Thaís, Letícia, Ronald, Priscilla, Raquel e Rogério Pássaro, Davi.

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1 comentário

  1. Rogério, o texto está sensacional. Consegui sentir a emoção do momento enquanto lia. Meus parabéns! Uma pena que o grupo tenha se dividido. Acredito que para as próximas seja possível bolar uma estratégia de caminhada para que todos iniciem e concluam juntos, e principalmente, que passem todos por todos os desafios.

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