Invernais na Espanha, Catalunia e País Vasco – Parte II

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Não escalar também serve como aprendizado. Ansiosa por cascatas e corredores norte, em fevereiro não foi possível escalar muito pelos Pirineus devido à uma das piores tempestades que atingiu a região nos últimos anos e depositou uma quantidade enorme de neve nas montanhas, criando condições perigosas e impossibilitanto a escalada semanal. Mesmo assim foi possível explorar um pouco, eventualmente tendo que mudar os planos devido ao clima.

Canal de Roya, nos Pirineus Aragonenses
 
Entre meus amigos daqui é consenso que a melhor parte dos Pirineus espanhóis é na região de Aragón, próximo a Huesca. A concentração de montanhas íngremes possibilita a formação de cascatas grandes, e principalmente de boas condições para escalar corredores grandes e faces norte.
 
A convite do Mikel, nos juntamos com o Andrés, que escalaria gelo pela primeira vez, e um casal de amigos, pra tentar a sorte na região de Jaca, num lugar conhecido como canal de Roya. Roya é um pequeno vale aos pés da belíssima Aynet, e dentro de uma das maiores estações de ski da Espanha, a Formigal. Eu estava bem gripada, mas insisiti em ir, no que também foi minha primeira trip de "furgoneta", as vans adaptadas dos escaladores espanhóis, muito similares às vans dos americanos, com cama, cozinha e aquecedor. 
 
Saímos às 6h30 ainda no escuro, sob -7 graus, e depois de 1h30 subindo pelas pistas de esqui, finalmente chegamos à parte alta da estação, de onde já podíamos ver as cascatas do canal, o impressionante Aynet, e também sentir o vento forte que soprava por ali. Já com o sol de pé, podíamos visualizar nossas opções: eram 4 cascatas para as 2 cordadas. Além do canal não recebe luz direta em nenhuma parte do dia, o vento forte derrubasva a temperatura ainda mais. O Mikel já estava acostumado, mas pra mim e pro Andrés foi difícil desde o começo tolerar aquele frio que beirava os 10 graus negativos.
 
Mikel me ofereceu a guiada da primeira enfiada, mas eu tremis de frio e tinha uma sensação estranha no corpo, como uma vontade de vomitar. Segui de segunda tranquilamente, e depois veio o Andrés. Enquanto eu quase gritava de dor com o pior "screaming barfies" que já tive na vida (quando voce termina uma enfiada em gelo, e para de apertar os piolets, o sangue começa a voltar pros dedos frios, causando uma dor muito forte por uns 5 minutos, que normalmente dá vontade de gritar e vomitar ao mesmo tempo), o Andrés vinha de terceiro já sofrendo com a dor e com frio extremo. Mal chegou na parada e já estava muito mal. Decidimos então descer, mas ele preferiu apenas que o baixássemos, esperando na base da via.
 
Eu mesma não sabia se continuava ali ou descia – eu tremia de frio e realmente queria vomitar. Mal podia pensar direito, menos ainda guiar uma enfiada. Mas decidi insistir e tentar mais uma enfiada, apesar de ter sido a condição mais extrema em que já escalei. O Mikel saiu pra guiar a segunda, que era um pouco mais complicada, o que não ajudou nada pois meu corpo ia esfriando e eu tremia cada vez mais. Quando finalmente chegou minha hora de escalar, desmontei a parada voando, e subi igual um foguete pra terminar a enfiada.
 
A cascata não estava completamente formada, mas o gelo estava suficientemente grosso e em alguns locais todo azul e muito duro. Apesar de não muito vertical, ela não tinha uma linha muito reta, o que exigia um jogo constante de troca de mãos e piolets. Chegamos ao final onde tinha uma parada fixa, e rapelamos daí, sempre debaixo de muito vento. Infelizmente com o sofrimento do frio fica difícil aproveitar bem a escalada.
 
A volta pra van foi longa, mas pelo menos com um pouco de sol. Descemos pelas pistas de ski, lotadas de famílias num dia de céu claro e quase nenhuma nuvem. Na volta, hamburguer em Jaca, e uma bela piora na minha gripe, que iria me deixar super doente por umas 2 semanas, no que parecia mais uma pneumonia que qualquer outra coisa.
 
Congelando Ainda Mais no Carnaval de Gredos
 
Depois de 900 mil mensagens no nosso grupo de Whatsapp, mudamos nosso destino inicial do Carnaval de Riglos e Pirineus pra, outra vez, Gredos. Seria mais central pra todos e as condições por lá estavam excelentes, ou seja, o total oposto dos Pirineus. A "Cordada" se encontraria por completo pela primeira vez desde o Nepal.
 
As cascatas estavam bem formadas e a previsão era de 4 mm de neve pra primeira noite, e com pouco vento. Depois de me buscar em Madrid, pegamos o Dani em Navaluenga e seguimos pra Gredos. Carregadíssimos com todo o equipo de camping, partimos pra dura subida (e descida) à área do refúgio. Daí começaram alguns problemas: quando chegamos na parte alta do caminho, conhecida como Los Barrerones (onde o vento é constante e mesmo com precipitação, forma-se muito gelo) o Alfonso escorregou e machucou o cotovelo, numa torção ou rompimento de ligamentos. Insistiu em descer até o refúgio para no caso de melhorar até a manhã seguinte, escalar junto com a gente.
 
Já no fim da tarde o tempo começou a piorar, com muito vento e um pouco de neve caindo, além da temperatura já abaixo dos 0 graus. E daí foi pra pior: já lá pelas 7 da tarde o termômetro marcava -11, o vento estava ainda mais forte e a neve já começava a se acumular fora das barracas. Nesse dia não escalamos pois chegamos tarde, mas tivemos tempo de subir próximo à algumas cascatas e decidir os objetivos do dia seguinte.
 
A noite foi de frio, ventos ensurdecedores, e a surpresa de acordar com a barraca 2/3 enterrada em neve. Claramente tinha nevado uns 70 cm. Eu e o José tratamos de desenterrar as duas barracas enquanto o Dani fazia café da manhã no refúgio e o Alfonso descansava, com ainda mais dor que no dia anterior.
 
Continuava a nevar, o termômetro não mudava (ainda -11 durante a manhã), e ninguém saía do refúgio, menos ainda de perto da lareira. Mas depois de muita vergonha na cara, fomos encorajados pelo Alfonso com seu cotovelo machucado, nos dizendo que pra escalar na Patagônia tem que estar acostumado a escalar com os piores dias de clima invernais… e eu respondi "querido ninguém aqui quer escalar na Patagônia!" A motivação serviu, e saímos eu, Dani e José pra escalar primeiro a Araña, uma cascata clássica de Gredos.
 
O que era pra ser 15 minutos de subida se tornou em quase 1 hora de andar enterrado no mínimo pelo joelho na neve, e em boa parte, com neve quase na cintura. E quanto mais subíamos, nos aproximando da cascata, mais o vento piorava. Como ser humano normal já me arrependia de ter saído do refúgio, mas como escaladora teimosa o esforço estava tolerável.
 
Mas foi só chegar na base pro tempo fechar de vez, a tremedeira de frio reapacere, e junto com ela aquela vontade de vomitar. "Será que em Roya estava mais frio, ou está mais frio aqui? Mas o que eu estou fazendo aqui mesmo?" Essas eram as dúvidas momentâneas. Mas estando lá, o jeito era escalar, e assim fizemos. Na hora que subi de segunda fui voando pra ver se esquentava rápido. Felizmente, pra ajudar um pouco, tinha pelo menos sido o melhor largo de cascata que tinha feito até agora. Gelo azul quase vertical em alguns pontos, e no geral bem consolidado. Apesar de ter sido a mais vertical, justo pela qualidade do gelo foi a mais plausível, já que a piqueta entrava de primeira e os pés também se encaixavam muito bem.
 
A guiada da segunda enfiada era pra ser minha, mas o frio extremo te tira a concentração e os meninos chegaram a perguntar se eu queria descer por conta do frio, mas decidimos seguir rapidamente já que essa enfiada era apesar de mais difícil, bem mais curta. De novo o José Antonio abriu, seguimos eu e Dani, e rapidamente terminamos, montamos o rapel, e descemos pro refúgio.
 
Enquanto o Alfonso preparava a janta, fui lá pra fora desenterrar as barracas pela quarta vez. Felizmente nessa noite o vento parou e a nevasca diminuiu, e conseguimos dormir um pouco. Na manhã seguinte só escalaram Dani e José Antonio e eu fiquei pra trás pra dar apoio moral pro Alfonso que estava frustradíssimo. Infelizmente os meninos se envolveram num pequeno acidente, mas ninguém saiu ferido, e apesar do final de feriado tenso, todos chegaram em casa bem, com ainda mais vontade de escalar.
 
Lições aprendidas por mim: primeiro é que não é só no Brasil e só no verão que o clima atrapalha e muito, os planos de escalada, às vezes por uma boa parte da temporada. Segundo, essas sesações fisiológicas inéditas devido ao frio extremo, e as limitações que elas impõem no meio de uma escalada. 
 
Mudança de Rumos: "PA EL SUR!"
 
Os Pirineus estiveram sem condições por muitas semanas, era impossível ir escalar em Etxaurri com toda neve e chuva, e a neve era tanta que as montanhas só estariam em condições de novo em talvez 1 mês. Vencida pela falta de perspectiva de escalar ou treinar (já que nem sair na rua era possível), pela chuva interminável e frieza geral, fui facilmente convencida pelo Alfonso a descer pro Sul da Espanha. Recarregar as baterias ao sol, voltar aos treinos, escalar muita rocha na melhor região para vias longas da Espanha e aproveitar muito com um dos meus melhores amigos daqui.
 
Dois dias depois de chegar em Bullas, uma pequena cidade perto de Múrcia, já me levaram pra conhecer Castellar, um setor de esportiva com 23 vias de até 20 metros, variando do 3 grau brasileiro, até o 9a, todas abertas pelo Alfonso, que vem trabalhando aí desde 2011. O local fica a 10 minutos de carro de Bullas, num vale, e a rocha é calcário, ainda existindo espaço na rocha pra mais aberturas.
 
O local antigamente era um assentamento árabe, inclusive existem no local ruínas de uma torre de observação. A região é bastante seca assim como a maior parte do sul da Espanha, e portanto o calcário é mais abrasivo do que esse que temos no Brasil, apesar de não chegar perto do que é o granito.
 
Passei um dia inteiro aí escalando com a turma, gente de todas as idades e níveis que fazem parte de um clube que se formou faz pouco tempo, e conta com cursos de formação, saídas pras montanhas da região e outras atividades de fomento à escalada. Graças à essas ações, em um período de pouco mais de 3 anos Bullas passou ter quase nenhum escalador a ter uma comunidade ativa de escaladores, o que gerou pequenos mas significativos desenvolvimentos econômicos, como a abertura de algumas lojas de equipamento e agência de turismo. A cidade tem 14 mil habitantes.
 
Entre uma escalada e outra ainda tivemos a oportunidade de assistir uma palestra do Chris Bonnington, em Múrcia. Chris receberá o Piolet D´Or Vida Alpina 2015, por seu pioneirismo no alpinismo de exploração.
 
Uma semana depois foi a vez de conhecer Sierra de Espuña, onde fica o vale de Leiva, a zona de escalada mais emblemática da província de Múrcia, e berço da escalada clássica dessa mesma região. As abertura começaram nos anos 50, e hoje existem mais ou menos 200 vias clássicas, semi-equipadas, e artificiais na parede sul, a principal do vale, onde também há vias de esportiva. A rocha, assim como em praticamente todo sul da Espanha, é calcário de boa qualidade, mais seca e sólida, o que a distingue do calcário do litoral.
 
Me juntei com a Marisa e a Carmen pra escalarmos a via América, um V+ (francês), de 4-5 enfiadas, com proteções móveis e paradas fixas. As meninas estavam acostumadas apenas à esportiva, então acabei com a tarefa de guiar todas as enfiadas, o que apesar de um pouco exaustivo, é bastante recompensador quando se está numa parede com tantas fissuras e possibilidades de proteção.
 
As duas primeiras enfiadas foram as mais complicadas pois foi aí que percebi que apesar da abundância de fissuras, as mesmas no calcário são bastante irregulares. Além disso, é uma escalada muito de "pé na mão", já que as mãos são excelentes, porém não há bons pés e sim aderências super escorregadias, ou seja, é uma escalada de muita dominada, quase o tempo inteiro, e algumas proteções não muito confiáveis.
 
Depois de um momento de tensão num diedro curto da segunda enfiada, e de perceber que as meninas não estavam indo tão bem assim (e o tempo passando), chegamos à terceira enfiada, onde poderíamos fazer um diedro vertical de V+ francês, ou ir mais à direita pra um 4 grau mais tranquilo. Até dei uma olhada no diedro que estava lindo, mas sem pé nenhum. A equação diedro vertical + móvel + aderência em calcário resultou em "vamos pelo mais fácil", totalmente apoiado e estimulado pelo resto da cordada.
 
Terminamos então com duas enfiadas de 4 grau, mais tranquilas e muito mais divertidas. Foi uma boa experiência pra treinar guiada em móvel, ainda mais com as diferenças do calcário, e também pra curtir uma temperatura mais agradável, e fazer uma cordada feminina pra variar um pouco. Terminamos o dia a 1 hora dali, onde acampamos na praia de Calblanque, na região do Mar Menor, em pleno meio de semana. 
 
O sul da Espanha é uma área quase desértica porém repleta de rocha por todos os lados, inclusive no litoral, onde há centenas de locais de escalada esportiva, e principalmente vias longas de altíssima qualidade. Nas próximas semanas o objetivo é explorar essas áreas e matar a saudade do calor. Até a próxima!
 
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Sobre o autor

Nômade por acaso, Cissa Carvalho nasceu em São Paulo, já morou no Alabama e na Amazônia, e atualmente reside na capital Paulista até que os ventos novamente a levem pra algum destino inusitado do planeta. Trilha desde pequena e conheceu as montanhas com vinte e poucos anos, mochilou a América do Sul, andou pelas montanhas brasileiras e nos últimos anos tem se dedicado ao montanhismo de altitude, e mais recentemente à escalada em rocha. É bacharel em design gráfico e pós-graduada em design editorial.

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