Adepta da filosofia de montanhismo raiz, que por vezes me parece em extinção frente ao avanço avassalador do famigerado “turismo de aventura”, a Amanda Mascaro, do grupo Arcanjo, vez por outra encafifa com alguma travessia inédita.
Não entenda, caro leitor, que são locais ermos, nunca pisados pelos caminhantes desse nosso Brasil primaveril. Há poucos lugares (se é que há algum) que não foram palmilhados ao longo dos tempos. O mérito está em pesquisar obscuros relatos, estudar cartas topográficas e imagens de satélites, costurar os trechos singulares em um todo coeso, viável de ser feito em uma travessia mais ou menos intensa. O desgaste físico cresce na exata proporção que o somar das belezas cênicas se apresenta ao olhar dos felizardos montanhistas. Sim, porque a escolha é por travessias brutas, mas belíssimas. Não foi diferente da proposta de cruzar um trecho menos aclamado das serras próximas à Capitólio/MG. Começar por Itaci e caminhar até Guapé, cruzando duas serras. A toponímia da segunda serra explicitava o que nos esperava “Serra da Rapadura”… como sabem, é doce, mas não é mole. rsrs.
Durante a “temporada” minhas tralhas de montanha ficam separadas e com a prática de anos arranjando cargueiras, é coisa de minutos para faze-lo. Mesmo assim, sempre dedico muita atenção à essa etapa, afinal a falta de algum item crítico pode converter passeio em perrengue. Como aprenderia nessa trilha, sempre há algo a mais a se considerar e precaução realmente nunca é demais. Chegaremos lá.
Embarcamos na van no dia 17/11/2023, pouco após as 22h. Meu estômago estava péssimo, rebelado contra algo que eu comera e que não caíra bem. As idas “ao trono” deveriam ter me alertado para a conveniência de adequar o kit de PS, mas a soberba prevaleceu e a natureza me ensinaria mais uma árdua lição. Antes de partirmos, tomei um comprimido de imosec, antidiarreico sintético “clássico”.
Segui na frente, tendo informado ao nosso destemido piloto que minha situação poderia exigir uma inglória parada de emergência. Na parada para lanche, banheiro e café, foram 3 incursões aos reservados. Pelo menos, não houvera necessidade de parada emergencial, à beira da estrada. Devo fazer constar que, frente ao que eu projetara (até mesmo de ficar em algum ponto no caminho e voltar por conta depois) havia sido um considerável alívio.
Retomamos a viagem, com minhas tripas se embolando mais e mais. Chegamos ao ponto de início da nossa caminhada às 6h10, ajustamos os equipamentos e iniciamos a subida às 6h24, buscando o rastro de passagens anteriores. Subi à frente do grupo, aproveitando para fugir das vorazes mutucas que campanavam nosso ponto de desembarque. Pouco depois às 6h38, tomamos conhecimento da primeira batata-quente da travessia: na empolgação para começarmos a caminhada, ao descarregarmos as mochilas, acabou-se por retirar da van uma mochila a mais que o devido. Deixei minha mochila e retornei sobre nossos passos com a companhia do Eduardo. Às 6h43 constatamos que era a mochila de itens pessoais do nosso motorista, para os dias em que passaria à nossa espera, antes de nos resgatar. Não era nada de peso ou volume excepcional e não havia nada que entendêssemos imprescindível por um par de dias, para o nosso bravo condutor. Com tranquilizadora informação, tratamos de retornar ao ponto em que havíamos deixado as cargueiras, ali dividiríamos os itens entre os possíveis voluntários, cada um levando uma fração de carga extra em sua própria mochila. Na divisão coube a mim, o par de chinelos, e brinquei que finalmente, teria um chinelo para usar nos acampamentos. O restante dos materiais foram dividimos, cada qual acrescendo um adicional de peso na própria cargueira. O
Eduardo conseguiu arranjar a mochila vazia na sua própria. Divididos os itens e rearranjadas as cargueiras, às 6h54 retomamos a caminhada, com pouco mais de meia hora de atraso a recuperar, pelo imprevisto.
A subida inicial, até alcançarmos a crista da primeira serra segue acompanhando a canaleta causada pelo recorrente passar de motos offroad. Esses rastros permanecem mais ou menos marcados, a depender do afluxo de passantes e da capacidade do solo e da vegetação em resistir ao suceder das agressões. Quando “sumiam” ou mesmo esvanesciam ao olhar mais focado, mirávamos o rumo provável e tocávamos serra acima, na certeza de reencontrar as marcas de passagem algumas dezenas (ou centenas) de metros adiante.
Rapidamente, às 7h14, alcançamos o primeiro ponto de ataque da jornada. Deixamos as mochilas e tocamos pra baixo, por uma pirambeira de uns 50°, com partes em que as rochas desagregadas formavam pilhas de cascalho, que desciam a encosta acompanhando nossos passos. Desci à frente, na intenção de registrar o equilibrar-se dos colegas de trilha. Cinco trilheiros optaram por “cortar” os ataques, fazendo o caminho projetado “por cima”.
Aqui, cumpre uma pequena explicação: um aspecto que me agrada nesse tipo de pernada é estudar a topografia, eventuais relatos, imagens de satélite, etc e “interpretar” o “por onde” passaria uma trilha otimizada. As considerações nesse sentido são muitas, envolvendo desde a história da região e de seu desenvolvimento econômico, pontos d’água, atrações cênicas, altimetrias envolvidas.
Quando a Amanda me trouxe a ideia, risquei algumas opções de trilhas que fariam a ligação Itaci-Guapé e as disponibilizei como sugestões de trajetos no grupo. O arranjo do Arcanjo, nesse sentido é do tipo que me agrada: rateio de despesas, com o planejamento a cargo de cada um. Como me divirto nessa etapa prévia e buscando fomentar a discussão no grupo, sempre posto as alternativas pensadas. O formato prevê que seja informado qual o trajeto que a pessoa pretende, de forma a tornar uma busca, ainda que indesejada, mais assertiva. Nesse mesmo sentido, foi elaborado e disponibilizado mapa da região com sugestões de trajetos rascunhadas, para que todos “falassem a mesma língua”. Desnecessário dizer que são cuidados importantes, porém normalmente bem pouco usuais nos grupos de trilha. Nada de novo sob o sol. A esmagadora maioria das pessoas não está preparada para andar autônoma e prefere seguir alguém, “sempre”.
Esses 5 integrantes, dispondo de rádio e do tracklog sumiriam na imensidão, deixando-nos a perder a altitude tão arduamente conquistada, em direção ao primeiro refresco e banho no rio Bonito. Apesar dos muitos chamados pelo rádio, não conseguimos contato com eles, certamente por inabilidade no seu emprego. E isso, mesmo tendo antecipado a forma de proceder para termos comunicação efetiva. Declarei certeza de que correria tudo bem com eles, mas confesso que não era tão peremptória quanto promulgava. Sob as cargueiras pesadas e expostos ao forte sol que a vegetação de cerrado pouco detinha, a chance de uma insolação ou hipertermia não era algo a desconsiderar.
O caminho pelo qual optaram não tinha tanto subir e descer, pois não visitava as várias cachoeiras, reduzindo o desgaste com a altimetria. Por outro lado, não lhes propiciava acesso às águas tépidas que nos permitiriam mantermos-nos bem hidratados, andarmos com pouco peso de água e nos refrescarmos a cada pouco, nas cachoeiras e cânions.
De qualquer modo, sendo roteiro livre, não nos cabia lhes dizer o que fazer, de forma que nos despedimos com as recomendações de praxe e iniciamos a descida às 7h15 para o Poço das Virgens, alcançado às 7h50. Depois de uma breve parada para banho, coletamos água e retornamos até as cargueiras. Encontrei um pé de Mama-Cadela (Brosimum gaudichsudii) no retorno, e desconhecendo a fruta, apenas provei e registrei para posterior pesquisa. No retorno houve quem optasse por testar um rastro observado à esquerda e que parecia convergir para onde havíamos deixado as cargueiras. A menor inclinação dele me fez supor que seria um trajeto muito mais longo. Preferi não arriscar e toquei devagar pela parte mais íngreme da curta pirambeira. Alcançamos o ponto em que havíamos deixado as cargueiras às 8h42. Após um curto lanche, retomamos a caminhada às 8h47, seguindo um rastro bem batido e que descia, primeiro de forma suave e depois de forma mais abrupta. Como não me recordava de ter essa descida no tracklog projetado, sinalizei que parecia estarmos fora do curso pretendido, e em comum acordo, às 8h50 decidimos retornar para corrigir. Aquele caminho que havíamos trilhado poderia ser apenas uma descida para outro ponto do rio, o que nos custaria tempo e suor, prejudicando nosso avanço em acordo com o planejado.
Após corrigirmos a errada de navegação, às 8h53 continuamos a ganhar altitude até alcançar o cimo do espigão, às 9h12, onde a trilha faz suave inflexão à esquerda. Cruzamos um curto trecho de terra gradeada, que provavelmente estava sendo preparado para plantio agrícola. Apesar de improvável, gosto de supor que éramos testemunha d’algum projeto de reflorestamento sendo concretizado. Passamos a descer, perdendo boa parte da altitude duramente conquistada até chegarmos ao segundo ponto de ataque, que nos daria acesso à cachoeira do Calafrio.
Apesar de muitas previsões apontarem tempo chuvoso, mesmo consultadas às vésperas, éramos brindados por um sol abrasador, sem nenhum indício de nuvens, ou trecho de mata mais fechada que nos abrigasse de sua intensa radiação. Às 9h38, ao chegarmos no cânion que daria acesso à cachoeira, tratamos de nos hidratar, para depois deixarmos novamente as cargueiras e tocarmos cuidadosamente pra baixo, pois em várias partes as pedras encontravam-se recobertas por limo e escorregadias.
Encontramos uma pequena cachoeira à direita do tributário, quiçá sazonal, que seguimos na descida, com as águas vindo da montante do curso do Rio Bonito. Descemos mais um pouco o curso e encontramos outra cascata, com seus 4 ou 6 metros e um belo poço de águas verdes, banhadas pelo sol.
Ficamos algum tempo curtindo as águas refrescantes antes de retornarmos até as cargueiras (10h43), fazermos uma pausa para lanche e nos colocarmos em marcha às 11h. Voltamos a subir, buscando contornar o Cânion da Lua. Após andarmos pouco mais de 300 m, notei um rastro menos batido à esquerda, descendo em direção ao Cânion, e, para minimizarmos o tempo de exploração, sugeri que continuassem seguindo em cota, enquanto eu desceria por aquele rastro até entender qual sua finalidade ou destino. Sugestão aceita, toquei pela discreta vereda, procurando sempre ter visual para o restante do grupo. Já na borda do cânion, a discreta trilha parecia sumir e, mais por desencargo de consciência (ou preguiça) que previdência, testei subir ao longo da margem, em meia distância. Bastou-me andar uma vintena de metros pra reencontrar, a partir de uma corrida d’água sazonal, os rastros bem batidos. Subi a passo apertado até a nascente do cânion e, então sinalizei para meus companheiros que o caminho estava ali. Notei que desciam paralelos uns aos outros, atravessando o capinzal, com metade das pernas ocultas pelos tufos de vegetação. Formavam uma imagem singular e fiquei a contempla-lós enquanto aguardava que se aproximassem. Contornamos a nascente do Cânion da Lua, como selenitas de cargueiras, e apertamos o passo na suave descida que nos levaria à grande interrogação que me acompanhava desde que começara a estudar as cartas, mapas e imagens da região. Por cerca de 70 m, a marca das passagens anteriores no solo desaparecia. Havia uma trilha óbvia, à direita, contornando a área, cerca de 20 m acima. Talvez aqueles 70 m fossem de charco, brejo ou algo que impedisse o trânsito por ali. Logo estávamos sobre o trecho da dúvida. Ali, a conformação do terreno propiciava uma fartura de água que não se repetiria em nossa caminhada. Caminhamos por uma espécie de charco inclinado, onde a fartura de água fazia par com a fertilidade do solo e propiciava o intenso crescimento da vegetação. Os nutrientes disponíveis não suportavam árvores ou arbustos, apenas o capim vicejava intensamente. Cruzamos o trecho em apenas 5 minutos e passamos a subir suavemente antes de passarmos para a próxima micro bacia de drenagem, na qual as águas convergem para a Cachoeira do Trovão, repetindo, às 12h, o o ritual de deixar as cargueiras e descermos intensamente até o curso do Rio Bonito que corre encachoeirado entre as rochas metamórficas.
Tendo aproveitado intensamente as águas e a incrível beleza cênica da cachoeira, recuperamos as cargueiras e, às 12h40, tratamos de fazer a transição Trovão-77, subindo a Serra da Rapadura. Como o leitor bem sabe, ela é doce; não mole. Umas das cachoeiras mais bonitas, a 77, alcançada às 12h57, tem o acesso muito mais simples, feito a partir da estrada municipal, distante uns 500 e, talvez uns 60 m mais elevada. Fizemos uma parada um pouco mais longa para lancharmos e nos refrescarmos e, às 13h, retomamos o caminhar, agora restando apenas 7 km de trilha, com 300 m de subida vertical e 400 de descida para chegarmos ao ponto de pernoite. Cruzamos novamente o rio Bonito, agora pouco acima da cachoeira e passamos a conquistar metros de ganho vertical sob copioso suor. Sabíamos que o próximo d’água seria apenas no ponto de acampamento, já nas nascentes do córrego do Paredão cujas águas banham o Parque Municipal do Paredão. Esse saber nos fez partimos para o subir-sem-fim da Rapadura, com 2 litros de água por cabeça, acrescendo às cargueiras, insidioso peso e almejada segurança. O sol nesse momento nos caçava à todos e as pequenas e diafánas sombras pouco amenizavam sua ira. As pedras calcinadas pelo Sol não apenas refletiam os raios solares, como tambem irradiavam o calor acumulado ao longo de toda manhã. Não é nenhum exagero registrar que cada um caminhava dentro do seu forno particular.
Rapidamente, a água transportada se aqueceu e foi a solução ruim, mas possível, para combatermos a desidratação. Eu e a Amanda seguíamos no segundo grupo, tentando repetidamente contato via rádio com os colegas que haviam se separado. Minha esperança particular era, que ao final da subida a morfologia do terreno fosse favorável e conseguíssemos contato. À nossa frente, o trio Homem Pássaro, Santana e Emerson se tornava visível vez por outra, a distância.
Como não há escarpa que não se apequene frente ao irrefreável avançar persistente da integral dos infinitos passos no tempo, a infindável marcha nos levou ao ápice de altitude do dia, onde novamente tentei contato com o grupo que seguira “por cima”, sem sucesso. Passamos a descer constante, chegando ao ponto de acampamento, nas margens da Cachoeira do Chapadão, às 15h. Para nossa angústia, não havia sinal dos colegas que optaram por caminhar separados. Rapidamente montamos acampamento e discutimos o que fazer a respeito.
Dividiria a barraca com an Amanda, que convalescia de um queda, onde trincara duas costelas. Se fosse pela recomendação médica, sequer sair de casa poderia. Minhas cólicas estomacais, que durante todo o dia, tornaram meu caminhar “mais interessante” finalmente resolveram acalmar-se. A ausência de respostas via rádio e o reporte, por parte dos banhistas que encontramos aproveitando as tépidas águas de que não haviam visto ninguém de mochila antes da nossa chegada, era preocupante. Felizmente, pouco mais de uma hora depois, com grande alívio, escutamos vozes e logo estávamos todos agrupados. As nuvens que se desenvolviam ao nosso redor desde o começo da tarde desaconselhavam tentarmos antecipar a exploratória da manhã seguinte, por dentro do cânion. Somaríamos aos riscos do andar no cânion, ao final de tarde com o rápido escurecer que ocorreria, fosse pela encostas à prumo, fosse pelo próprio avançar das horas. Combinamos a partida para a manhã do dia 2, às 7h.
Mesmo com as nuvens se aglomerando ao longe, fiz questão de armar a barraca com grande cuidado, considerando que o solo rochoso poderia reter a água e fazer de depressões amplas e convidativas, verdadeiras lagoas. Como minha barraca não era auto portante, não havia como montá-la sem estaquear os tirantes atentamente. O solo, raso e pedregoso tinha em si, a gênese da dificuldade e da solução. Utilizei galhos, raizes e pedras para garantir a correta fixação dos cabos e estacas.
Preparamos um jantar com cuscuz marroquino, purê instantâneo, legumes diversos. Entre as tralhas de comer, an Amanda levara vários pacotes de refresco e uma providencial batatinha frita.
Dia 2
Levantei às 5h para apreciar o nascer do sol. Fiz uns registros do acampamento e preparei o café da manhã, enquanto aguardava o pessoal se mobilizar para a caminhada matinal. Tomei o cuidado de prender o comunicador via satélite no bolso da calça. Coloquei uma lanterna de cabeça no outro bolso, juntamente com o apito , o canivete e um pequeno isqueiro. Doce e barras de proteína completavam o kit de cautela, simplificado ao extremo. Para o celular, a solução fora coloca-li dentro de dois sacos plásticos tipo ziplock. Iniciamos a a exploração às 7h20, com um ruído de comunicação nos fazendo perder preciosos minutos à espera da verificação quanto a viabilidade de acesso à parte baixa da Cachoeira do Sumidouro. Uns supunham que seria por dentro do rio, outros entendiam sem impraticável. Com a informação de que realmente era inviável se não fosse pela margem esquerda do rio, toquei pelo rastro batido e, desprezando a saída à direita que levaria de volta ao rio precocemente (como entendido), segui em frente, procurando identificar onde seria o ponto de acesso. Com isso, acabamos por nos separar do trio Homem-Pássaro, Emerson e Santana. Entendíamos que estariam à nossa frente, quando estavam muito atrás de nós. Ultrapassada o primeiro acesso, seguiríamos um bom tempo atentos ao tal do “segundo acesso”. Não encontraríamos esse segundo ponto de acesso. O rastro que seguíamos era remanescente de alguma estrada de serviço, apesar de não sabermos disso no momento. Pedi ao grupo que esperasse enquanto eu e a Amanda buscávamos um ponto de acesso viável para vencer o considerável desnível vertical que a água escavara nas rochas ao longo de muitos milhares de anos. Encontrei um trecho em que algumas árvores permitiam, com um pouco de técnica, descer a encosta quase a prumo, alcançar o leito do rio e felizmente retornar encosta acima. Testada e aprovada a rota, pedi à Amanda que aguardasse enquanto eu retornava ao grupo para orientá-lo a nos alcançar. Fizemos a descida sem maiores contratempos e, uma vez reunidos no leito do rio, sinalizamos com muito cuidado e atenção o ponto de escape garantido. Com o totem da saída montado e sinalizado com galhos e ramagens, evitaríamos ultrapassá-lo de forma não intencional, nos colocando em um possível beco sem saída, haja vista que não havia nenhum rastro descendo ao rio, desde aquele primeiro, preterido. Certamente seria imprudência, imperícia e negligência nossa não contar com um ponto de fuga mapeado para sair do cânion. É a clássica receita para uma má manchete. Nossa avaliação de que, ao cair da tarde, a possibilidade de uma tempestade quase certa, desconhecermos o terreno à frente e a até mesmo a desenvoltura do grupo para avançar por entre as rochas escorregadias, as quedas d’água e as gargantas tornava o tempo necessário para a exploratória uma incerteza adicional. Isso, ainda que não ocorresse nenhum contratempo mais sério, como uma torção de pé, por exemplo. Para acompanhamento da evolução e do limite que iríamos avançar antes de iniciar o retorno, consideramos que a volta tomaria o dobro do tempo da ida. E a estratégia era fazer a ida de tal forma a alcançarmos o acampamento até às 14h.
Com isso em mente, logo após começarmos a descer o rio, encontramos um pequeno isso curso d’água, chegando pela esquerda, que supomos, num primeiro momento ser o que formaria a queda registrada como “Cascatinha”. Prosseguimos e pouco mais de uma vintena de metros adiante encontramos outro tributário, à esquerda. A amplitude do talho que suas águas criara nas rochas evidenciou, que aquele sim, era o rio da Cascatinha. Deixamos o principal e subimos alguns minutos até alcançarmos , às 8h34, a queda d’água que nomeava aquele afluente. Voltamos ao curso principal e continuamos descendo. Em dois trechos, as paredes laterais verticais nos obrigaram a nadar por cerca de 50 m, em cada ocasião. Ali, um aumento do fluxo de água tornaria o retorno pelo mesmo caminho perigoso, quiçá inviável. Passamos a Cachoeira do Funil às 9h05 da seguimos descendo e iniciamos o retorno às 9h40. Muitas foram as pequenas quedas que não mereceram nomes individuais. Aqui é ali, restos de tubulações de borracha usadas na agricultura podiam ser o ser adas nas margens, por vezes, mais de 2 m acima da lâmina d’água. Eram testemunhas singulares mudas e mesmo assim, convincentes das violência das águas ali, sob uma tempestade. Restolhos de vegetação também podiam ser observados nos galhos das árvores às margens.
A volta, apesar de rio acima, foi mais célere, pois as paradas para contemplação e registros eram naturalmente mais curtas. Às 10h27 passamos pelo totem que marcava nosso acesso e frente à tranquilidade de cronograma, optamos por continuar a subir o rio, buscando a cachoeira do Sumidouro, ponto em que nosso trio de exploradores supôs que seria pouco viável/demais perigoso transpormos em grupo na descida.
Gastamos alguns minutos desmontando o totem de forma a deixar o trecho o mais próximo do original possível e continuamos a subida, observando que, coincidência ou não, as paredes verticais impediam o acesso (e a eventual fuga) do leito do rio nesse trecho.
Alcançamos a base da Sumidouro às 11h04 e depois de algum tempo de banho e contemplação, parte do grupo escalou a cachu, à exemplo do Homem Passado, e outra parte retornou pela encosta da margem direita, com direito a um impressionate mirante do cânion.
No acampamento às 11h30, pegamos as cargueiras, aguardamos pouco mais de meia hora minutos o pessoal arrumar as tralhas antes de iniciarmos a caminhada, agora subindo a longa escarpa que nos levaria ao cimo da Serra da Rapadura. Apesar de alguns (vários) andarem mais céleres que eu e a Amanda, no frigir de ovos, quando se soma a segurança da navegação à constância do caminhar, poucos acompanham essa mulher. Ela anda bem, de fato. E é persistente, sem dúvida. Como andar por estrada não é algo que me agrade sobremaneira, peguei o primeiro rastro à direita que havia e que parecia servir ao nosso intento. Tal caminho nos levou uma sequência de lobeiras (Solanum lycocarpum), que apresentavam alguns frutos maduros caídos ao chão. Com o peso de um fruto atingindo cerca de um quilo, é fácil supor que as rajadas de vento acabam por derruba-lós. Não sendo fruto climatérico, poucos se encontravam em condições de consumo, mas o suficiente para apresentar a fruta para os colegas da trilha.
Uma vez atingido o cimo da Serra da Rapadura, iniciamos a longa e desgastante descida, sob as mesmas calcinantea condições da véspera. Tentamos truques para tornar o consumo da água quente menos desagradável, molhando roupas e jogando pra cima, na esperança que ao evaporar, se mostrasse menos desgastante a caminhada. Nada, nesse sentido foi eficaz, nos restando apenas resistir ao sol e manter o passo, pois certamente, ao perdermos altura, já nas vizinhanças do segundo ponto de pernoite, encontraríamos água.
Interessante notar, que como não é usual caminhantes nesse trecho, o ponto d’água Salvador não estava registrado em nenhum tracklog, mapa ou carta que consultamos. Felizmente, a geomorfologia não mente e, havia água no ponto suposto, quando ainda começáramos a descida pelo trecho de pasto até a estrada. Eu havia chegado na estrada francamente desidratado, e parei para aguardar a Amanda à beira de um pequeno bambuzal. Com férrea determinação, ela parecia não ter sofrido sob o mesmo sol que me castigara. Como toda resiliência que supera a minha me é suspeita, fiz com que ficasse uns minutos à sombra, me abanando.
Quando vimos que o pessoal se aproximava, cedemos vez na pequena sombra e retomamos a caminhada, meus pensamentos voltados à uma curva na estrada, na qual eu apostava que encontraríamos água.
Aposta vencida, ainda que a vazão fosse pequena e o pisoteado de animais na beira da estrada não motivasse alegremente o consumo. Deixei a mochila na beira da estrada e segui uns 20 metros para dentro até encontrar uma área em que a água parecia mais confiável para consumo. Novamente encharcamos as vestes com a água fresca, tomamos uns bons goles e tratamos de continuar a caminhada, agora revigorados pelo frescor das vestes e pelo hidratar do corpo. Coordenadas do ponto d’água salvador: S20.83216° W45.96173°, alcançado às 14h.
Completamos a caminhada do dia, e às 14h40 estávamos acampados, de rei do Parque do Paredão.
A Amanda e o Roberto Santana, durante a fase de planejamento, entraram em contato com a administração do parque e verificaram valores e horários de funcionamento, tanto do parque quanto do restaurante. Dessa forma, nossa meta era chegarmos até as 16h, para termos garantido o jantar. Como chegamos ainda mais cedo, fomos aproveitar as cachoeiras do complexo, comer e descansar. Por um valor fixo (e acessível) poderia se repetir no self-service bem variado à vontade. Optei por fazer pratos frutas, queijos e legumes.
A chuva prometida chegou próximo das 18h com grande intensidade e permaneceu variando entre fortes pancadas e momentos de menor intensidade até tarde da noite.
Dia 3
O famoso “dia da segurança” onde o caminhar é menos intenso, permitindo que os alquebrados se recuperem.
Como de praxe, levantei pouco antes do clarear do dia e fui alongar um pouco as pernas, caminhando até as cachus do parque, colhendo manga, jambo e pixiricas. Trouxe uma mesa para tornar mais confortável o café da manhã, com ovos e queijo comprados no restaurante, na véspera. Fiz alguns registros do acampamento às 5h, com o dia ainda se definindo pelo sol ou pelas nuvens.
Partimos mais cedo que o limite, para podermos fazer a caminhada de forma bastante tranquila.
O Emerson aproveitou para ic conhecer o complexo ecológico instalado sobre o rio Macuco, com infraestrutura para eventos e hospedagens de empresas.
Cruzamos as águas do córrego da Empreitada, em um pequeno vau em meio ao pasto, para subirmos por estrada de manejo do gado até a porteira, depois cruzamos o córrego da Beleza, correndo sob uma discreta ponte de madeira. Seguimos um pouco mais à frente, com a estrada fazendo uma curva em “s” ao cruzar a sede de uma fazenda, onde colhi pitangas às mãos cheias. Pouco depois chegamos à porteira de acesso à Jacutinga, que infelizmente estava fechada, sem nenhuma informação. Resolvemos findar a caminhada ali, à sombra das árvores do pórtico de entrada. Pouco depois, nossa van de retorno nos alcançou e seguimos até a o vilarejo de Posse, onde negociamos um almoço num pequeno estabelecimento. Acabou que precisamos aguardar cerca de 1 hora para eles preparem os pratos, mas valeu a pena. A comida estava saborosa, o rapaz foi buscar coca-cola zero no mercado. Multiplicamos por 15 o faturamento deles, naquela tardezinha modorrenta de segunda. Foi bem legal poder contribuir com a economia local.