Nas tardes quentes de verão, a muvuca se concentrava principalmente ao redor da piscina formada após a cachoeira do Rio Ipiranga no local ainda conhecido como Roda d’água. Hordas de farofeiros para lá se dirigiam com suas barracas canadenses, colchonetes e cobertores amarrados pelo lado de fora das mochilas escolares. Verdadeiro Woodstock da pobreza para um final de semana com muito banho gelado no rio, rock and roll, cachaça, sexo e drogas ilícitas. Ali aconteciam as coisas mais doidas da serra.
Nosso objetivo, naquele tempo, era chegar a Casa do Ipiranga com as motocicletas; uma Honda XLX de 250 cilindradas, outra de 350 e algumas Yamaha pouca coisa mais leves. Por muitas vezes já havíamos escalado o Morro da Samambaia para estacioná-las embaixo da Pedra dos Incas no Anhangava, percorrido toda a trilha da Conceição desobstruindo a passagem com o machado e estávamos convencidos de que com uma motocicleta, um pedaço de corda e muita disposição poderíamos repetir tudo o que os desbravadores fizeram no século XVII com uma tropa de mulas.
Descer atravessando a vau os rios até que não foi difícil, mas retornar subindo pelas pedras ensaboadas tornou-se uma epopéia de sofrimento indescritível e as motocicletas foram totalmente derrotadas pelas mulas. Neste tempo os ambientalistas da região resolveram iniciar o processo de salvação do planeta privatizando os acessos à montanha. Com o uso de tratores e retro escavadeiras, construíram valas, paredões de pedras e armadilhas com arame farpado. Como não estávamos a fim de arrumar encrenca nem destruir a mata fazendo caminhos alternativos, acabamos por mudar de ramo e o grupo se dissolveu. Com novos amigos redescobri o prazer de andar a pé.
Em certa ocasião, descia acompanhado pelo Paulo Marinho e o José Pioli, mas não conseguia acompanhá-los e por várias vezes precisaram parar para me esperar. As piadas sobre meu desempenho se faziam constantes e a certa altura parei de achá-las engraçadas. Sentia um mal estar geral e punhaladas profundas entre as costelas que dificultavam o avanço. Por fim chegamos a Casa do Ipiranga ainda intacta e vi uma oportunidade para descansar. Eram tempos da RFFSA e fomos recebidos por um guarda ferroviário na entrada da estufa. Sujeito do tipo armário, todo vestido de preto com um enorme revolver na cintura. Meu humor não estava dos melhores para engatar uma conversa fiada, mas o Paulo e o Pioli se demoraram por educação. Saí de fininho na direção da casa que emanava um delicioso cheiro de marmita requentada.
A casa estava intacta e pela primeira vez a encontrei aberta. A curiosidade foi maior que a dor e pedi licença para conhecê-la por dentro. Um segundo guarda ferroviário esquentava as marmitas num fogareiro e não se incomodou com minha presença. Já não havia nenhuma mobília, mas paredes, assoalhos, forros, esquadrias, lareira e as escadas estavam em perfeito estado de conservação. Nem os vidros estavam quebrados ainda. Descendo do sótão reparei num grosso rolo de corda depositado embaixo da escada de madeira, junto a algumas caixas de papelão, agradeci a gentileza do anfitrião e fui andando para a ferrovia quando o primeiro guarda me alcançou bastante irritado.
Perguntou o que estava procurando dentro da casa e respondi que seu companheiro permitiu minha entrada. Continuou furioso e avançou com a mão sobre a arma, olhos faiscando até parar a menos de dois metros, medindo-me de cima abaixo e retornou por onde veio, bufando de raiva.
Estava com frio, muito frio apesar do sol quente. Da mochila, retirei o anorake e algo mais por via das dúvidas. O Paulo e o Pioli me alcançaram e juntos nos dirigimos para a Roda d’água, mas antes que chegássemos às escadas, um grupo de fiéis freqüentadores do local nos interceptou pedindo emprestado uma corda para resgatarem um amigo. O rapaz havia caído num poço do rio e sumido no turbilhão. Desconfiavam que o corpo estava preso debaixo das pedras e precisavam da corda para mergulhar e soltá-lo.
Respondi que não tínhamos nenhuma corda, mas que fossem pedir aos guardas na Casa do Ipiranga, então falaram que um primeiro grupo já tinha ido e os guardas também não tinham. Mandei que insistissem e esclareci que a poucos minutos havia visto um rolo de corda debaixo da escada do sótão. Os rapazes seguiram apressados para lá.
Com isto perdemos a vontade de visitar a Roda d’água e depois de alguns minutos seguimos calmamente pelos trilhos para retornar a trilha quando o guarda veio novamente em nosso encalço. Estava possesso. Gesticulava furiosamente com a mão esquerda enquanto a direita segurava a coronha da arma ainda no colder. Gritava aos quatro ventos que não havia corda alguma naquela casa. Mentiroso foi a palavra mais amena que dirigiu a mim enquanto quase esfregava o dedo indicador na minha cara. Com a mão no bolso do anorake, destravei a pistola e puxei o cão para a posição de disparo, mirando pouco abaixo da barriga, onde o colete a prova de balas não protegia. Não movi um músculo sequer e apenas ouvi o acalorado discurso, mas se aquela arma ameaçasse sair do colder ia haver muito barulho. Antes julgado por sete do que carregado por seis.
Com a confusão começou a aparecer os curiosos e nosso amigo amenizou sua fúria. Talvez não quisesse testemunhas e aproveitamos a pausa para agarrar o mato em direção ao Cadeado. O Paulo estava aflito com a situação, sabendo que sou naturalmente esquentado, temia um desfecho trágico para o episódio. Mas realmente naquele dia não estava nada bem e só queria chegar ao fim da trilha e descansar quieto num canto. Concordamos que se os guardas nos seguissem pela trilha estaríamos numa situação de sobrevivência e não esperaríamos pra ver o que aconteceria. Então tomaríamos a iniciativa em auto defesa. Seguimos rezando e atentos a qualquer ruído pela retaguarda.
Minha saúde foi-se deteriorando pelo caminho e no trecho entre os rios já estava quase me arrastando na trilha. As dores aumentaram e as punhaladas ficaram mais constantes e profundas. Faltava-me oxigênio e comuniquei que desceria a Trilha do Sabão para o Véu de Noiva e na estação tomaria o primeiro trem para Curitiba. Todos os dois me acompanharam sem fazer perguntas. Acabaram-se as piadas e a situação estava crítica. Atravessamos por cima da represa e me aquietei sentado nuns dormentes em frente a Estação Véu de Noiva enquanto o Paulo se informava dos horários dos trens.
As horas passaram lentas até que um auto de linha desceu a serra e parou na Estação. Dele desceram nossos amigos guardas ferroviários, circularam apressados por ali, conversaram reservadamente com outros ferroviários e carregaram outros caixotes. Meu amigo em particular, ao me reconhecer parou imóvel por longos minutos, olhando-me a distância. Vai dar merda, pensei enquanto o encarava. Mas finalmente pulou pra dentro do vagão e sumiu pelos túneis em direção ao Cadeado. Nunca descobri o que havia naquelas caixas, mas garanto que boa coisa não era. Pouco tempo depois a Casa do Ipiranga e as vilas de operários estavam todas saqueadas e em ruínas.
Em Curitiba fui diagnosticado com pneumonia e o tratamento seriam aplicações consecutivas de 14 ampolas de benzetacil, duas por dia. Na primeira vez que entrei no ambulatório, a enfermeira me aponta a maca e manda arriar as calças. Opa, sou espada moça! Apontei para o braço e ela só revirou os olhos enquanto torcia o beiço. Passou um algodãozinho com álcool no local e disse: “Você que sabe!”. Então enfiou aquela agulha até o talo. Na manhã seguinte voltei lá para a segunda aplicação já apontando o outro braço. Ela só balançou a cabeça e repetiu toda a operação. Passei uma tarde de cão imaginando que teria que enfrentar aquela jararaca novamente. Os braços me doíam só de respirar.
A noitinha entrei no ambulatório sem falar nada, arriei as calças até os joelhos e deitei de bruços sobre a maca gelada. Aiiiiiiiiiiii!