Eram 5hrs da matina e ainda tava escuro qdo arrumei as coisas e joguei td dentro da mochila, p/ depois deixar o simpático camping da “Pousada Juventude”, em Jericoacoara. Na verdade, era somente pousada, mas os jovens donos permitiam acampar em terrenos planos e arborizados na frente dos chalés por meros R$5, motivo pelo qual havia barracas saindo pelo ladrão. A superlotação do local, mas principalmente o som ensurdecedor ao lado – ora do bate-estaca techno ora da sanfona elétrica-forrozeira – fizeram q antecipasse a saída p/ Camocim. Não q Jeri fosse sacal, pelo contrario. Jeri é uma miragem no meio do deserto litorâneo-árido cearense, uma babilônia de mochileiros de td parte do mundo, um local p/ descansar e badalar, onde ou se curte o dia ou a noite. Não é a toa q no verão a população se multiplica 15 vezes, baladas começam depois das 23hrs e padocas estão abertas 24hrs. E o único local onde jegues, cavalos e vacas circulam livremente pela praia em comunhão + q normal em meio à gringaiada e caiçaras locais.
Voltando à pernada, por uma travessa deixei a Rua do Forró p/ chegar na Rua do Meio (ou Principal, sei la), as únicas “avenidas” de areia q aqui servem de referencia. Havia alguns jovens, remanescentes da noite perambulando com seu goró e baseados em punho. Diferentemente dos demais dias, aquela segunda-feira tava nublada e bem fresca, o q era ótimo, afinal não iria torrar sob o sol inclemente no período da tarde. Deixei a vila ate alcançar a praia principal sentido à Praia de Mangue Seco, 5km p/ oeste. Mas não sem antes ladear o sopé da famosa Duna-do-Pôr-do-Sol, onde, sagradamente, td mundo se reúne td dia p/ apreciar o crepúsculo.
Maré baixa, praia larga, plana e de chão firme. Perfeito. Assim, deixo a cosmopolita Jeri p/ atrás, com suas luzes noturnas faiscando sumindo gradativamente a medida q o céu se tinge lentamente de tons rubro-laranja típicos da alvorada. Alem da praia, à paisagem à minha esquerda se resume à algumas dunas baixas em meio à uma escassa vegetação, misto de restinga costeira e caatinga. Logo cruzo com alguns grupos de jovens voltando p/ vila, chapados, com guitarra em punho. Provavelmente ficaram farreando na praia fugindo da muvuca de Jeri.
Já na Praia de Mangue Seco – identificada por uma torre em meio a um arvoredo praia adentro, ladeada por uma larga faixa de mangue soterrado – as pessoas se resumem a alguns pescadores jogando redes e/ou alguém caminhando pela larga e extensa praia. Não demora e a primeira moto passa por mim, sentido Tatajuba. Depois vem gente em bicicleta, no sentido contrario, e por ai vai. Os bugues, embora proibidos, só começaram a circular mais tarde. No horizonte, observo meu destino ao longe, contrastando com a retidão da planície árida de restinga q vou acompanhando, uma ponta bem mais arborizada p/ qual me dirijo sem pressa alguma.
5km depois e sem nenhuma alma viva, me encontro no q parece o inicio da Praia do Guriú, marcada com a presença do rio do mesmo nome, manso e largo, e onde a vila devia se localizar mangue-seco adentro. Vários garotos esperam sentados em balsas simplérrimas – um gde compensado plano de madeira no qual cabe ate um veiculo – a sua oportunidade de levar alguém pra outra margem e, quem sabe, ganhar algum “agrado”. São apenas 7:30 e converso rapidamente c/ um deles enquanto empurra a balsa c/ um largo pau, forçando-o contra o fundo do rio, q não parece tão fundo assim. Me fala q mochileiros e ciclistas são freqüentes ali, enfim, estava habituado a gente como eu, fora dos padrões típicos de passeio de bugue.
Em terra firme, já do outro lado, coleto as últimas infos e continuo minha pernada. Como as balsas cruzam longe da foz, tenho q voltar p/ praia por um árduo caminho de areia fofa, acompanhado pela direita pelo Rio Guriu e do lado esquerdo por um exuberante mangue repleto de pernilongos, o q apressa a caminhada involuntariamente, claro! Passado o mangue e, após muito esforço, estou novamente na praia, um extensa faixa de areia q se estende ate onde a vista alcança, ladeada ora uma restinga árida ora por belas e enormes dunas. Aqui já não há ninguém, praia totalmente deserta. E é somente agora q o sol resolve aparecer em definitivo. Firme e forte.
Os 15km seguintes são percorridos calmamente, apreciando a paisagem q se descortina a minha frente, composta pelas águas do mar – calmas e cristalinas – refletindo o céu azul, e das alvas e belas dunas de perder a vista. Seguindo sob sol inclemente, lentamente vou me aproximando do foco verdejante – kms adiante – q contrasta com a claridade horizontal da praia deserta. Esse foco de mata ao longe é Tatajuba e, entre passos trôpegos e alguns merecidos pit-stops p/ descanso, alcanço meu destino por volta das 10:30.
Ainda na praia, alcanço o foco verdejante, já mais próximo de mim e q consiste em coqueiros perfilados encimados num morro de areia repleto de restinga, ou seja, uma alva duna salpicada de verdes arbustos. Ao sopé dela há um braço do Rio Gamboa, impossível de cruzar a pé que tampouco dispõe de barqueiros p/ esta finalidade. Ciente disso, antes de chegar lá bastou seguir as marcas de bugue saindo da praia pra adentrar nas pequenas dunas, na tentativa de contornar o tal rio e atravessa-lo na parte mais rasa. O ritmo é lento, a areia fofa do trajeto – entre dunas baixas – aliada ao sol forte castiga a pele sem dó. Me sinto um Lawrence da Arábia tupiniquim. Nestas horas q é bom ter caronas, mas nada aparece pelo caminho.
Exausto, cheguei finalmente no primeiro “quiosque” de Tatajuba, onde alguns motoqueiros e turistas de picape degustam alguma iguaria à sombra de um toldo de folhas de palmeira, ao lado de uma rústica casinha de sapé onde curiosos porcos circulam livremente por entre cadeiras e mesas. Descanso o suficiente apenas p/ saber q ainda não estava em Tatajuba, mas no q sobrou dela, a Antiga Tatajuba. Isto pq as dunas já haviam engolido a vila faz tempo, obrigando os moradores a se deslocar um pouco mais p/ oeste. Alguns poucos tetos de palha rente ao chão espalhados pelos arredores comprovavam isto, q a vida ali era imposta pelo humor do vento. Na verdade, ali havia somente aquela barraquinha p/ receber turistas de Jeri e o local era até bem bonito. Emoldurado por belas dunas, avistava-se um belo oásis c/ muitos coqueiros, contrastando com o resto da paisagem. Ao lado, um enorme braço do Rio Gamboa serpenteava , duna adentro. E era por ali q se dava acesso p/ Nova Tatajuba, o vilarejo propriamente dito.
Ao invés de seguir as trilhas de bugues e picapes, cortei caminho, pois já avistava as primeiras casinhas do vilarejo, ao longe. Assim, desci a duna no qual me encontrava e caminhei um tanto pela areia molhada ate alcançar a margem ampla e rasa do rio, q atravessei sem problemas c/ água ate o tornozelo. Se a maré estivesse alta (o q ocorria à tarde) cruza-lo seria impossível, tanto q os moradores se diziam isolados de Jeri à tarde. Após andar por um trecho enlameado e em seguida de areia, alcanço as primeiras casas da vila por volta das 11hrs!
Tatajuba tem a fama de ser “a Jeri de 2 decadas atrás”, alcunha merecida p/ uma aldeia de pescadores espremida entre as pálidas dunas e o mar esmeralda. Com a mesma beleza de sua vizinha famosa, a diferença é q mantém a rusticidade e tranqüilidade típicas de um pequeno povoado q consiste em 2 ou 3 ruas de terra q se entrecruzam, casinhas de alvenaria espalhadas entre casebres mais rústicos, uma pequena igreja e só. Nada mais inspirador, relaxante e meditativo. Estrutura em si não vi nenhuma, o q me deixou apreensivo (e ate agoniado) pq tava doido p/ beber uma(s) cerveja(s), mas nada de boteco nem pousada! Assim sendo, me dirigi pelo q parecia ser a “rua principal” – um amplo aterro q atravessava um pequeno mangue – em direção à praia e, sinuosamente beirando casebres e coqueirais, cheguei no q parecia ser a única pousada dali, rente ao mar. E era mesmo a única pousada!
Na sacada funcionava um modesto refeitório, e foi ali mesmo q fiquei p/ descansar, me proteger do forte sol q agora fazia, e me esbaldar de cevada gelada, claro!. A vista dali já era bem inspiradora, a praia logo abaixo e vários braços rasos de rio espalhado formavam diversas piscininhas. Na areia, próximo dali, o q não tava ocupado por restinga ou coqueiros mostrava sinais de construções deixadas ao relento, provavelmente futuras pousadas ou quiosques. Três simpáticas jovens comandavam o local, e logo apareceu + gente: um biker de Jeri e um bugue , (“Jegue Turismo”) de Camocim, q deixou uma família inteira ali p/ almoçar. Conversei rapidamente c/ uma das proprietárias e me informou q são poucas as pessoas q vão ate ali, por isso não existe infra alguma. A dificuldade de acesso, as dunas, as marés e a distancia ditam horários rigorosos p/ quem se dispõe a conhecer esse pequeno paraíso. Comentou q a média de fregueses diária não ultrapassava 15 pessoas…e nos éramos os primeiros daquela segunda-feira!
Após relaxar e observar o escasso movimento dali – pois o de bugues na praia era maior – 1 hora e 3 cervejas depois resolvi colocar pé-na-areia novamente, na tentativa de quem sabe conseguir carona, pois o sol ainda estava de fritar miolos. Desci suavemente o morro de areia no qual me encontrava pra tomar novamente os rastros deixados por veículos na ampla e larga praia. Não andei nem 10minutos e bateu um cansaço e preguiça desgraçados devido à bebedeira q me auto-presentei por ter chegado ate ali, e encostei na sombra de um enorme arbusto na escassa restinga rente à praia. Bateu aquela preguiçinha típica pós-manguaça, bem indisposto a continuar a pernada. Tratei de ficar visível pros veículos, q naquele horário começavam a rarear. Qdo passava algum, me limitava a levantar o dedão, sentado na areia, na maior folga. Realmente não devia ter bebemorado tão cedo (bebe, desgraçado!) pq bateu um sono lazarento àquela altura. Assim sendo, dei um breve cochilo, lógico! Afinal, sou tb filho do Homi..Pelo jeito, beber não foi uma boa idéia. Portanto fica a dica: Se beber, não faça travessias!
Logo depois retomei a pernada numa praia deserta e interminável, refazendo meus cálculos de tempo/distancia, já prevendo ter de pernoitar novamente em meio as dunas. Felizmente havia coletado água suficiente p/ esta finalidade, mas minha idéia era avançar o máximo possível ate Camocim. Fora isso, as praias provavelmente mudavam de nome, mas não o cenário: dunas brancas de um lado e areia dourada c/ mar azul cristalino do outro. Por conta disso, mas principalmente ao cansaço acumulado, este belo trecho foi sacal e monótono. Lamentei não ter almoçado algo com mais “sustança” em Tatajuba e tive q me resignar em beliscar um lanche enquanto caminhava. Mesmo assim, tava cansado. E nada de bugues.
Quase 10km sofridos depois e o sol a pino, resolvi descansar na sombra fresca do q restou de uma cabana de pescador à beira da praia, semi-engolida pela areia. Foi ali tb q o sol deu lugar permanentemente a uma nebulosidade clara e a um mormaço intenso, seguida de um forte vento, q trazia areia à velha choupana por todos lados possíveis. Meu cabelo, já impregnado da maresia salobra, ficou uma belezura c/ o complemento em gde escala destes grãos de quartzito. Nesse meio termo, fiquei estirado na frente daquele casebre, atento aos veículos q eram escassos devido provavelmente à maré alta, q estreitava lentamente a antes larga faixa de areia. Tava exausto, sem vontade de caminhar e foi ali q decidi pernoitar caso não conseguisse logo carona p/ Camocim. Na verdade não fazia idéia de qto faltava ate lá, pois as infos de tds são desencontradas, mas acredito q não faltassem mais q 8km. Mesmo assim, andando chegaria na cidade à noite e seria forçado a ficar numa pousada, o q tava fora de cogitação. O jeito era ficar ate ali ate a manha sgte, e assim continuar, se fosse o caso.
Deviam ser quase 16hrs qdo um bugue parou e me ofereceu carona, q não recusei. Milagre! Assim, os 5km restantes foram feitos na base da adrenalina, pois o cara pisou fundo, dando altas derrapadas na areia. O jovem motorista tava indo buscar gente em Camocim e contou q ali há mais bugues q canoas ultimamente. Principalmente máfias de bugues (!?) clandestinos, pq espalhou-se a idéia q p/ “enricar” rapidamente basta ter um veiculo p/ levar turistas, e por isto a oferta é maior q a procura. Pior, a identidade cultural de antigos pescadores e jangadeiros esta sendo lentamente minada pelo turismo, q estabeleceu uma nova escala de valores à vida dali. Enquanto falava, o bugue cortava as ultimas praias desertas dali – como Moréia e Imburana – serpenteando dunas próximas e ladeando mangues ou lagoas secas, ate finalmente parar num extenso trecho de areia dourada, barrado apenas pela presença do enorme e majestoso Rio Coreaú. Na outra margem, barcos e canoas menores perfilavam-se aos pés do simpático porto q caracteriza Camocim.
Agradeci o bugueiro e não demorou a aparecer uma gde balsa, na qual embarquei junto com outros 3 bugues q aguardavam antes de mim. Era engraçado ver quase td mundo ali q eu vira passar enquanto caminhava e q não me deram carona, desde Tatajuba. A surpresa parecia ser recíproca. A travessia pelo Rio Coreaú não demorou nem 10min, sob águas mansas de cor verde berrante q se fundem com o mar da Baia de Camocim. Rio adentro, observam-se matas intactas e ate algumas ilhotas de areia à preamar. Já em terra firme, tomo a direção p/ esquerda acompanhando o cais, q é limpíssimo devido à maioria das embarcações se constituir de barcos a vela ou jangadas. Em seguida, , sigo por ruas de paralelepípedos, adentrando mais e mais na centenária Camocim, q embora seja a maior cidade da região, vive numa calmaria de ruas vazias e algum casario colonial, sob a sombra de arvores frondosas e o efeito entorpecente da brisa do mar. Dali segui p/ pequena rodoviária, onde mandei ver vários pasteis após garantir minha passagem p/ Parnaíba, e dar continuidade à minha trip, agora em território piauiense.
E assim é a Jeri-Camocim, pernada selvagem lentamente ameaçada pelos bugueiros. Isto pq a rústica Tatajuba já sonha com turistas em gde escala. Bela, preservada e cobiçada, não se sabe precisar qdo ela deixará de ser “a Jeri de 2 décadas atrás” pra se tornar “a de hoje” mesmo. Enquanto essas indagações tomam conta das rodas de bugueiros, pescadores e locais, ainda há tempo p/ conhecer este belo trecho do intocado litoral cearense. Um trecho onde ainda se come peixe c/ farinha e cachorro urina em coqueiro por falta de poste. Só não se sabe ate quando, pq ultimamente a vida e a cultura local são regidas com extrema facilidade e pouca sutileza, seja pela ação caprichosa das dunas como pela poderosa força turística dos dólares.
Jorge Soto
http://www.brasilvertical.com.br/antigo/l_trek.html