Em 2011, o montanhista e ciclista Jorge Kaiser começou um audacioso projeto na Patagônia que era percorrer os 5.224 quilometros de extensão da Ruta 40 de bicicleta. Ele dividiu o percurso que corta a Argentina de norte a sul em 4 trechos. No primeiro ano ele percorreu cerca de 1200km entre Mendoza e e Junin de los Andes. Durante esse período ele também escalou o Cerro Penitentes 4351m, o Cerro de la Virgen 1131m e o Vulcão Lanin 3776m, montanhas vizinhas a estrada.
No ano seguinte ele retornou a Patagônia argentina e percorreu cerca de 1818 km entre as cidades La Quiaca, na fronteira com a Bolívia e Mendoza, atravessando parte do Altiplano Andino. Em 2015, fez o trecho entre Junín de Los Andes a Gobernar Costa. E após uma pausa, Kaiser retornou esse ano para completar o seu projeto percorrendo o trecho entre Gobernador Costa e Cabo Vírgenes/ Santa Cruz.
Confira como foi essa aventura:
No dia 01 de março desse ano, parti para a Argentina com o objetivo de realizar a travessia entre Gobernador Costa/ Chubut e Cabo Vírgenes/ Santa Cruz e assim percorrer os últimos 1500 km da Ruta 40 de bicicleta.
No primeiro dia, ainda em deslocamento para Gobernador Costa, um grande susto. No caminho entre o aeroporto de Esquel e a cidade de Esquel num transfer, a caixa com a bicicleta que ia em cima do carro se soltou depois de uma forte rajada de vento e quando vi a caixa estava voando com o carro em movimento a quase 100 km/h.
Pensei no momento, a expedição nem tinha começado e já iria acabar ali!
O motorista parou o carro imediatamente e fui atrás da caixa a mais de 200 m do carro, a caixa caiu no chão e se arrastou pelo asfalto da própria ruta 40 por muitos metros, até parar no meio do mato do outro lado da pista. Como a bike é de fibra de carbono, a probabilidade de estar quebrada era enorme com essa queda.
Felizmente o quadro não quebrou, somente a roda traseira que deu uma pequena danificada, mas nada que não fosse consertado! Foi um grande susto e muita adrenalina já no primeiro dia!
Início do pedal
No dia seguinte pela manhã já estava na pequena cidade de Gobernador Costa em plena estepe patagônica, pronto para iniciar o primeiro dia de pedal!
O dia lindo, porém de muito vento, cerca de 40 a 50 km/h vindo do Oeste e foi assim que fiz os primeiros 130 km com muito vento lateral e temperatura de uns 10° C em média, chegando no final da tarde a pequeno pitoresco povoado de Los Tamariscos.
Nos primeiros dias percorri em média 130 km por dia, passando pelas cidades de Rio Mayo e Perito Moreno, quase sempre com muito vento lateral e o frio constante e a Cordilheira dos Andes sempre a minha direita, avistando grandes montanhas como o cerro Castillo. A paisagem da estepe é presente e as longas retas também. A quantidade de guanacos e ñandús (espécie de ave parecida com avestruz) a beira da estrada foi aumentando ao passar dos dias.
A partida de Perito Moreno foi com grande expectativa, já que nesse dia iria passar pelo espetacular Parque Patagônia. E assim foi depois de 54 km pela ruta 40 cheguei ao parque e um dos seus portais de entrada fica justamente as margens da 40, o portal Canadon Pinturas. O parque é uma imensa área de preservação e partir desse portal possui uma rede de trilhas de cerca de 16 km. O parque é uma das regiões mais selvagens da Patagônia e ali vivem muitos pumas, guanacos, choiques e condors.
Após visitar o parque segui viagem pela estrada que vai serpenteando as encostas das montanhas e cânions do parque por muito kms, até ao acesso de outro parque muito conhecido o Parque Provincial Cueva de las Manos. Dalí seguí até o pitoresco povoado de Bajo Caracoles.
Na chegada um instabilidade do tempo e logo uma chuva congelada começou a cair e por sorte já estava abrigado.
O dia seguinte amanheceu muito gelado e com o céu totalmente cinza, o objetivo seria em dois dias chegar a próxima cidade Gobernador Gregores distante cerca de 230 km. Sentia dor no joelho direito, provavelmente do esforço excessivo do primeiros dias e principalmente por causa da posição inclinada da bike por conta dos fortes ventos laterais.
A ruta 40 é bastante deserta na Patagônia e nesses 230 km teria apenas um ponto de apoio no km 110, um local chamado Las Horquetas bem próximo ao acesso do Parque Nacional Perito Moreno!
Foram dois dias bem difíceis de pedal e muito, mas muito vento até chegar e Gobernador Costa.
Dalí após uma boa noite de descanso seguí viagem passando pelo conhecidos 73 km MALDITOS, um trecho de ripio as margens do lindo lago Cardiel, onde o cascalho e os fortes ventos fazem com que a progressão seja muito lenta e desgastante. Foram dois dias até Três Lagos e 175 km mais percorridos.
Em Três Lagos procurei atendimento médico no único posto de saúde da pequena cidade de pouco mais de 700 habitantes, estava com fortes dores no joelho direito. Fui muito bem atendido pelo único médico da cidade, porém sem muitos recursos me medicou com um injetável de antiinflamatório e analgésico.
Me recomendando ao menos um dia de descanso antes de seguir viagem.
El Chaltén
Tinha como objetivo, além da travessia de bike a realização de dois trekkings em El Chaltén, um até a base do cerro Fitz Roy e outro até a base do cerro Torre, porém com o joelho inflamado, resolvi no dia que seria de descanso pegar um ônibus e ir até El Chaltén distante 120 km dali passar o dia e retornar a noite, ao menos para conhecer a cidade e arredores do Parque Nacional de los Glaciares.
Então foi o que fiz, passei o dia na conhecida Capital Nacional do Trekking – El Chaltén. Ali conheci a cidade e também fiz pequenas caminhadas pelo entorno da cidade, com o início da trilha a Lagoa Torre e também Lomo del Pliegue Tumbado.
De volta a Três Lagos na manhã seguinte voltei a estrada dessa vez rumo a El Calafate distante dois dias de viagem.
No primeiro dia a estrada seguiu rumo Oeste bem de frente pra Cordilheira e depois de uns 40 km cheguei as margens do imenso lago Vidma, mais alguns kms e estava no mítico parador La Leona, um local com muita história, foi ali que o explorador Perito Moreno foi atacado por uma fêmea de puma, dando assim origem ao nome do lugar. Nesse dia dormi as margens da ruta 40 no alto de um imenso platô chamado de puesto Irene. Estava montando acampamento, quando chegaram mais dois ciclistas,um belga e um australiano vindos de Ushuaia. Ali também passaram a noite. Uma noite muito fria, de céu mega estrelado e certamente rodeado de pumas, já que muitos habitam aquela região.
No dia seguinte lá estava pedalando novamente pela estrada que segue margeando o rio também chamado de La Leona até outro gigantesco lago de degelo, o lago Argentino. Depois de muito vento contra, por volta das 15h cheguei a cidade dos glaciares, El Calafate.
A maior cidade desde então, bonita e organizada El Calafate é bem turística e ali muitos turistas de várias partes do mundo buscam conhecer o Glaciar Perito Moreno, distante apenas 80 km da cidade.
O joelho
A dor do joelho não dava trégua, por isso busquei numa farmácia atendimento e medicação para poder seguir viagem. A noite uma boa refeição com o prato típico da região, cordeiro patagónico e descanso para no dia seguinte seguir até o Puesto Cerrito.
Na manhã seguinte sentia melhor do joelho, parti rumo ao Sul. Depois de 40 km comecei a subir a Cuesta de Míguez, uma longa subida de quase 10km e muita altimetria. Ao chegar ao topo senti que a temperatura despencou e o vento era ainda mais forte, porém o vento estava cruzado e dali pra frente me ajudando. Imprimi um ritmo forte e eram 15h quando cheguei ao Puesto Cerrito, ali resolvi seguir viagem, já que era cedo e o vento estava ajudando, foi então que depois de 170 km cheguei a La Esperanza no final da tarde, um minúsculo povoado gelado perdido na imensidão patagónica.
De La Esperanza tinha ainda mais 3 dias de viagem até chegar a capital da província de Santa Cruz, Rio Gallegos. Foram três dias intensos de muito frio e vento, além de longos trechos de ripio. O dois primeiros dias de céu cinza e praticamente sem Sol pra aquecer a temperatura, até um pouco de chuva tive que encarar. Lugares que queria muito conhecer como Tapi Aike e 28 de noviembre, lugares que parecem estar perdidos naquela imensidão toda.
Cheguei a Rio Gallegos, a primeira cidade grande desde o início da expedição. As margens do rio Gallegos e muito próximo ao oceano Atlântico. A primeira impressão foi boa da cidade e logo encontrei uma hospedagem, próximo a praia e o centro.
Agora estava a apenas 142 km do meu principal objetivo, chegar a Cabo Vírgenes, o km 0 da Ruta 40 localizado no extremo Sul do continente já no estreito de Magalhães. Porém as condições climáticas eram completamente desfavoráveis para os próximos dois dias.
Frio, chuva e ventos de até 70 km/h.
Então, não tinha outra alternativa a não ser aguardar o tempo melhorar, fiquei dois dias aguardando ansiosamente a hora de seguir viagem. Aproveitei para conhecer um pouco da cidade e história da região, nos períodos em que a chuva dava trégua. Assim visitei alguns museus, com museu dos Pioneiros e da Guerra das Malvinas, além do pequeno porto e orla da cidade.
Condições invernais
Passados dois dias saí de Rio Gallegos, sob condições invernais, apesar de estar no final do verão ainda. Era dia 18/03 e a temperatura marcava -3.9°C, a sensação de -9° C e lá estava eu pedalando rumo a conquista de um sonho! O início do trecho era de em asfalto, mas logo em seguida o trecho de ripio deu as caras e assim pedalando sobre o cascalho fui até o estreito de Magalhães. Mas antes passei por duas das maiores estâncias da Patagônia, a estância Cóndor e a estância Monte Dinero. Pelo caminho avistei muitos animais, como guanacos, zorros, lebres e muitos cordeiros.
O dia era por vezes muito nublado e a temperatura baixa se manteve praticamente o dia todo. Porém o vento era fraco e facilitava de certo modo a progressão da bike.
Eram cerca de 16h quando cheguei a Reserva Provincial de Cabo Vírgenes, dali mais alguns kms cheguei a beira da praia e enfim o belíssimo Estreito de Magalhães!
Para chegar a beira da praia passar por uma pinguineira, milhares de pinguins de Magalhães! Que lugar incrível!
Após a passagem pela piguineira tinha ainda alguns kms e uma subida até o Farol de Cabo Vírgenes, onde sob muita emoção cheguei às 17h, ali encontra se o KM 0 da ruta 40, lugar que desejava chegar pedalando desde que montei o projeto lá em 2011.
Foram anos de espera, foram muitos kms de treinos e quatro expedições para chegar até ali, um dos lugares mais desejados pelos aventureiros e expedicionários que rodam o planeta.
Foi assim, que as 17h do dia 18 de março de 2024 que conclui o projeto Travessia Ruta 40 de Bicicleta, cujo o objetivo era percorrer a ruta 40 de La Quiaca a Cabo Vírgenes e ainda escalar montanhas próxima a estrada!
Foram mais de 5200 km percorridos de bicicleta e ainda a escalada de 8 montanhas e trekking nos Andes!