Juatinga – Final

0

Avançando em meio ao emaranhado arbustivo, em pouco mais de meia hora, aproximadamente, encontrei mato amassado: era a picada de descida, uhuhu!! Qdo todos chegaram fiz questão de deixar a mochila ali e subir novamente por esse caminho até interceptar a picada da crista, onde havíamos andado no dia anterior para poder deixar registrado um tracklog correto. Dito e feito, subi até interceptar o caminho por onde havíamos andado no dia anterior e marquei devidamente o ponto correto de descida, por sinal, imperceptível, e voltei de encontro aos amigos que me aguardavam preocupados achando que eu havia demorado muito. Seguimos descendo tranquilos e confiantes que a picada permaneceria assim definida e nos levaria facilmente à aldeia.

Doce ilusão, depois de algum tempo começaram  a aparecer os probleminhas,  os vestígios somem em trecho de mata mais aberta e as coisas começam a ficar mais difíceis. Chegamos a um ponto em que o Thunder reconheceu o bivak  q fez  na sua ultima  incursão, mas sua memória ficou só nisso, rss.. e  tivemos que ralar muito para encontrar o caminho em vários trechos, ora procurando algum mato cortado, ora pisadas, ora caminho mais provável.. Por volta da cota dos 350 metros, encontramos água e fizemos nossa primeira parada para descanso e reposição das energias. Eram 13 horas e ainda tínhamos um caminho incerto pela frente, apesar de havermos baixado bastante.  Desde algum tempo a vegetação tinha mudado de arbustiva para arbórea, muito mais fácil de caminhar,  mas também infinitamente mais fácil de se perder, pois não ficam  quaisquer vestígios de pisadas, as  copas das arvores são densas, nada de visual,  é navegação pura.
 
Logo depois do regato em que paramos para descansar, antes mesmo de partirmos e exatamente por onde passaríamos,  em uma pequena fresta entre as copas  em q o Sol penetrava,   o Thunder deparou-se com a primeira cobra da viagem: uma enorme bicha esverdeada de mais de  2 metros de comprimento. Putz, realmente fiquei preocupado e passei a tomar muito mais cuidado, já que era eu que seguia na frente. Nesse trecho o piso é o típico de matas fechadas:  altas arvores em que o  Sol não penetra e um colchão de folhas caídas apodrecidas, um lar perfeito para repteis.. Com meu fiel cajado usado como batedor e arma de defesa, segui muito mais atento rumo ao nosso objetivo.

Adiante mais pontos de confusão por volta da cota dos 220m,  onde tem alguns pequenos cursos de água e mini vales,  e logo começamos a encontrar vestígios de picadas, mas  confusas e que não seguiam  para o nosso rumo. Depois de outro pequeno vara-mato rumo ao topo de uma crista secundária,  finalmente começamos a ver vestígios mais evidentes de caminho. Na medida em que baixávamos eles  iam ficando mais nítidos, fazendo crer q nos aproximávamos cada vez mais da “civilização”.  Em pouco tempo notamos q a vegetação já não era primária e logo começamos a ter visual mais aberto do fundo do Mamanguá,  um grande alívio por estarmos completando a etapa planejada para o dia. Particularmente tinha grande curiosidade em conhecer melhor a aldeia dos índios guaranis, pois da ultima vez q lá estive não havia ninguém no local, somente cachorros, roupas nos varais mas nada de gente. Tudo indicava que a aldeia inteira havia ido para Parati vender seus artesanatos no feriado.
 
Nosso primeiro contato com a “civilização” foi ao nos aproximarmos do primeiro poço do lugar, onde algumas pessoas se banhavam. Imundos, suados e sedentos chegamos ali e fizemos questão de entrar de roupa e tudo na água para  uma “lavagem” completa..  Os  poucos banhistas eram turistas que haviam chegado de barco.  Em meio a eles havia um índio apenas, que por sinal era o guia do grupo, e  não perdi tempo em ir falar com ele, pois estava muito interessado em saber sobre  a existência de alguma picada que contornasse o mangue em direção a Laranjeiras. O índio super boa gente, que se  chama  Afonso,  foi bem atencioso. Da rápida conversa vem a primeira decepção: ele garantiu  com certeza que não havia qualquer trilha ou picada saindo dali contornando o mangue até Laranjeiras ou  Sono.  O único caminho seria por dentro do mangue (que eu já havia feito há um ano) ou de barco para atingir a outra margem do Saco. 

Não tivemos tempo de conversar mais,  pois ele tinha que levar seus turistas de volta a Parati-Mirim na sua “voadeira” , uma bela lancha  de alumínio com motor de 25 hp, tudo novo, pode? E eu pensando que eles usavam aquelas pirogas feitas de troncos de arvores, kkkkk..  Como ele deveria voltar só no dia seguinte para a aldeia fui sondar as imediações.  Outra vez fui nas choças precárias deles e nada de gente, mas subindo morro acima fui dar em outra habitação e lá havia duas índias, a mulher do Afonso e sua filha de 15 anos com seu filhinho. Infelizmente também não consegui muita informação com elas, que estavam um tanto quanto temerosas frente a uns “homões” sujos. Elas apenas  confirmaram que não havia caminho para Laranjeiras ou Sono, mas depois de alguma insistência da minha parte confirmaram que havia dois ranchos abandonados no sentido do fundo do saco, o que batia com o q levantei  das fotos de satélite, um alivio! O problema é que somente o Afonso  sabia o caminho dos ranchos e falar com ele só quando voltasse no dia seguinte.
  
Como deveríamos acampar nas imediações, fiquei esperançoso de no dia seguinte poder voltar a conversar com ele e conseguir  alguma preciosa dica, pois seguramente não haveria tempo de abrirmos trilha, pois sabia de antemão como era emaranhada a  vegetação do entorno do mangue, o que  poderia  demandar  um ou dois dias a mais de muita ralação.  Não era tarde, o dia estava super aberto, horário de verão com luz até as 8 horas, e resolvemos  procurar uma trilha que também tinha vislumbrado no Google Earth que ligava  a região da aldeia a uma pequena praia que ficava nas imediações, que poderia ser um ótimo local para acampar.

Essa trilha teoricamente deveria ser fácil achar, mas na prática não foi bem assim.  Por sorte, o dono de uma pousada que estava por ali  com seus turistas,  indicou onde começava o caminho, o que facilitou bastante e certamente nos poupou tempo. Com essa informação foi tranquilo, vencemos um morro e logo baixamos para a praia. O Thunder, que já havia feito esse caminho, só se convenceu que era por ali mesmo quando viu um barco  naufragado na praia, rss…  Um pouco antes de chegar à praia, ainda na descida do morro,  tem uma casa abandonada ao lado da trilha que é um lugar perfeito para acampar, bem melhor que a praia, adiante direi porque. Também tivemos a sorte de achar uma bananeira com banana prata madura, uma iguaria depois de tantos dias sem frutas..

Ao chegarmos a praia repleta de altos coqueiros carregados,  mas inatingíveis,  logo constatamos que a única casa do lugar também estava fechada e  não havia caseiro no entorno, um alívio, pois pelo menos poderíamos acampar na praia sem sermos incomodados por ninguém.  Tranquilamente fomos escolhendo um lugar para armarmos nossas barracas em um piso gramado junto a areia,   mas logo  nos demos conta que teríamos muiitos problemas. Começamos a ser atacados por nuvens de  “pólvorinhas”, aqueles minúsculos mosquitos sanguinários que infernizam a vida de qualquer um. Já tinha ido outras vezes ao Mamanguá, mas não tinha  tido essa desagradável experiência. Pólvoras são mais frequentes próximos ao mangue  em determinadas fases da Lua e, certamente,   essa era uma das  conjunturas favoráveis a eclosão desses bichos.  

Mesmo estando de calça, camiseta comprida, chapéu e luvas fui picado aos montes,  pois eles entravam por qualquer espaço disponível na roupa. Repelente pouco resolveu, foi tudo muito rápido e não via a hora de terminar de armar minha barraca e sair dali.  Tomei o máximo cuidado para não abri-la, pois sabia que poderia ter uma noite infernal se fizesse isso. Sabia também q os bichos atacam no por do sol, por isso depois que terminei a montagem levei minha mochila com tudo para junto da casa em uma área cimentada de onde irradiava um calor terrível que repelia naturalmente os insetos e onde  pude cozinhar (e ser cozinhado, rss) e "respirar" melhor. Bem mais tarde da noite voltei para a barraca onde  rapidamente entrei e me “tranquei”.  Mesmo com todo o cuidado, ainda tive que “caçar” alguns pólvoras perdidos q conseguiram entrar  comigo. Felizmente a trama da redinha do respiro da minha barraca é minúscula e os micro-insetos não passavam por ela.

A noite foi  tranquila, mas estava bem preocupado sobre qual opção seguir no dia seguinte, o  quarto e, necessariamente,  ultimo dia da nossa trip. Como já tinha a prévia informação do índio Afonso de que não havia caminho por terra e  em função do pouco tempo disponível essa opção era a menos provável das três disponíveis, pois abrindo caminho na mata a facão avançaria muito lentamente  e não venceria o trecho em 1 dia de jeito nenhum. A opção mais fácil e menos emocionante seria seguir  conseguir um barco para nos atravessar para outra margem onde há uma trilha batida até Laranjeiras. A  ultima opção  seria atravessar o mangue na raça. Entretanto eu ainda nutria esperanças de conseguir fazer o trajeto inicialmente planejado, contornando o mangue. 

A informação do dia anterior que a índia nos deu,  confirmando a existência de dois ranchos,    coincidia com a minha plotagem e me animava um pouco.  Também esperava encontrar o índio Afonso para  que nos desse a dica de como chegar nesses ranchos.. A decisão de qual caminho seguir dependeria do tempo também: se estivesse chuvoso sem dúvida iríamos cruzar o Saco de barco até Currupira e de lá por trilha de volta a Laranjeiras, a alternativa mais rápida. Com tempo bom poderíamos tentar encontrar o caminho procurando picadas ou,  melhor ainda,   seguir alguma possível dica dada pelo índio.

Apesar das nuvens do final do dia anterior prenunciarem mudança de tempo, mais uma vez fomos contemplados com um belíssimo dia,  claro e ensolarado, para a alegria geral. Um tanto quanto preguiçoso  e indeciso quanto ao que fazer,  levantamos acampamento tarde,  em torno das 9 horas da manhã,  com destino à aldeia e ainda perdemos algum tempo em tentativas frustradas  de apanhar cocos nos coqueiros do lugar.  O percurso de volta  leva pouco menos de 1 hora até  o primeiro poço, onde chegamos encharcados de suor e  não resistimos a outro pit stop  pra nos  refrescarmos.   Nessas o tempo foi  passando e a preocupação aumentando. Dali fomos até a choças procurar “o homem” do pedaço, o índio Afonso. Pra variar lá estavam somente as índias e a criança, nada do “homem”.   A única informação que conseguimos “arrancar” da índia, que falava um português enrolado (eles falam guarani entre si), foi sobre o lugar de onde saia a trilha para o rancho, bem em frente a uma das choças.

Bom, decidimos então tentar chegar nos tais ranchos rastreando a trilha já existente, já que varar-mato era totalmente inviável  nessa hora do dia   (passava das 11 horas).  E lá fomos nós confiantes  que chegaríamos no destino, afinal  com essa info e as plotagens haveria alguma chance. De inicio parecia q não encontraríamos grandes dificuldades, mas a trilhinha foi se fechando passando a picada, a vestígios até dar em um pântano e ali tudo se complicou muito, pois não achamos a sequencia do caminho. Sabia que estávamos no rumo certo, mas varar aquele tipo de mato denso e de raízes retorcidas naquela hora do dia implicaria q não chegaríamos de jeito nenhum em Laranjeiras nesse dia,  o que era absolutamente necessário porque tínhamos que  voltar a tempo a São Paulo para trabalhar na manha seguinte. 

Procuramos bastante a sequencia do caminho, por mais de hora e meia, gastando nosso tempo e energia em vão, até resolvermos  voltar já em torno das 13 horas. Tinha decidido, pelo avançado da hora,  que só tentaríamos fazer esse trecho por terra se encontrássemos o índio quando chegássemos na aldeia e se ele nos desse informações seguras de como chegar aos ranchos. A sorte então pareceu nos sorrir,  pois quando retornamos  à aldeia lá estava o simpático Afonso, mas ainda faltava convencê-lo a nos ajudar. No dia anterior tinha trocado poucas palavras com ele e o máximo que  tinha conseguido saber é que não havia caminho para atravessar a borda do mangue por terra.

Agora com mais calma pude explicar  meu  plano que era mapear um circuito praia-montanha-aldeia para caminhantes, o  que até poderia ser vantajoso de alguma forma para eles no futuro e   muito mais blá, blá, blá pra convencê-lo rss..  até que finalmente ele topou nos ajudar diretamente, isto é, nos levaria pelo menos até o primeiro rancho. Já passava das 13,30 horas  e ficamos prontos aguardando o Afonso se preparar para a empreitada (galocha, facão, etc..).  Apesar do exíguo tempo que dispúnhamos, pois já era bem tarde,  eu estava confiante que com essa ajuda alcançaria meus objetivos, contornar o mangue e chegar em Laranjeiras nesse dia ainda. Sabia que se chegasse rapidamente aos ranchos  faltaria  pouco para alcançar a picado do Sono e assim chegaríamos, nem que fosse de madrugada. 

Em pouco tempo saímos rumo ao nosso destino,  os tais ranchos.  Logo de cara percebi o meu erro horas antes:  quando  tentávamos achar o caminho do rancho, havia logo no inicio do caminho uma bifurcação na trilha que subia totalmente à esquerda em um pequeno morro, além da  sequencia “natural” mais pisada da picada que seguia paralela ao mangue, que ia  na direção do nosso objetivo,  mas que  nos  levou ao pântano  sem saídas.  A trilha que subia o morro era a correta,  exatamente por evitar o pântano, “lógica” que não vou me esquecer, rss…  Daqui pra frente,  com o Afonso na dianteira, avançamos bem rapidamente, mas em algumas vezes até o experiente índio titubeou em encontrar o caminho certo, quem diria, tava difícil até para o índio que conhecia o lugar…

Muito curioso é que a referencia dele é o  mato, ou melhor, as  formações vegetais, arvores principalmente. O que para nós é indistinto  para ele cada planta tem a sua identidade, muito interessante. Tai uma coisa que precisamos desenvolver para caminhar na mata, mas seguramente não deve ser coisa fácil para urbanóides. A picada sumia completamente em vários trechos e o motivo era desuso mesmo,  há meses que eles não iam aos ranchos, que não  eram habitados, sendo apenas uma espécie de abrigo temporário para  caçadores,  palmiteiros e coletores.  Os  ranchos ficam em terra firme,  perto da borda do grande mangue, e  são “acessíveis” por cursos d"água que adentram terra firme, o que explica a falta de picadas longas cruzando a região do mangue.

Seguimos em ritmo forte durante todo o tempo, mas não resistimos a  uma breve parada quando nos deparamos com  uma bananeira carregada de frutas maduras. Um pouco mais a frente chegamos ao primeiro rancho, na realidade um casa simples com paredes de bambu espaçados e com cobertura de zinco. Nele encontramos panelas e outros utensílios, certamente utilizados por caçadores locais. O Afonso que tinha se comprometido a nos levar até esse rancho, resolveu nos acompanhar até o outro, uma mão na roda para nós.  Uma ou mais hora depois chegamos ao segundo rancho, que por sinal nem vi, já q ficava em um barranco acima de nós e  que passamos batido por falta de tempo.

Depois de aproximadamente de quase 3  horas de caminhada acelerada chegamos a beira da picada que leva ao Sono. O curioso é que o índio não conhecia essa picada, não tinha a mínima ideia onde daria.   Ele também nunca havia subido do Cairuçu. Então sugeri que se precisasse eu poderia guia-lo por esses roteiros, tudo por um preço bem camarada rss… Foi muita sorte porque a minha previsão é que chegaríamos somente ao segundo rancho e dali teríamos q fazer um vara-mato em direção a picada do Sono, mas como o Afonso resolveu avançar um pouco mais demos sorte e reconheci a picada de imediato.

Eram aproximadamente 17 horas e agora felizmente estava em “casa”,  conhecendo o lugar e seguro que em breve estaríamos no trilhão do fundo do saco que nos levaria à Laranjeiras. Mas como nem tudo são delícias, ainda tivemos uns breves “perdidos” antes de chegar ao trilhão. Grandes arvores caídas no caminho atrapalharam um progresso mais rápido, mas mesmo assim chegamos ao final da picada, na borda do trilhão e ao lado de uma refrescante bica onde repusemos todo o liquido que perdemos dessa caminhada árdua e quente.

Da bica até Laranjeiras é um pulo, não mais que uma hora. Chegamos são e salvos ainda com luz diurna e  tempo ainda de podermos colher jabuticabas e pitangas no quintal da simpática dona de um “estacionamento” improvisado onde deixamos o nosso carro, logo no inicio do caminho que leva ao Mamanguá. Enfim, no final tudo era só alegria. Cumprimos  nosso objetivo:  fizemos uma travessia muito completa, longa, variada e pioneira, que esperamos possa ser repetido por muitos ainda.

Por fim, para aqueles que pretendam repetir esse roteiro,  sugiro prestarem muita atenção em eventuais  armadilhas de caçadores na região do mangue. Nas minhas andanças por lá não  encontrei nenhuma,  mas o mesmo não aconteceu com um amigo (Danilo) que refez posteriormente esse trecho do mangue com meu tracklog. No caso, ele se deparou com uma armadilha que era uma espécie de arma de fogo primitiva que disparava quando se passa em frente. Por muita sorte o tiro não o atingiu. Uma alternativa para quem não quiser arriscar ou é cruzar diretamente por dentro do mangue (exige também boa navegação, pois não há referencias visuais) ou se cruza  para outra margem de barco.

Texto de Angelo Geron Neto e fotos de Thunder
Mais fotos: http://thunder72.multiply.com/photos/album/40/Circuito_Joatinga_#

Compartilhar

Sobre o autor

Deixe seu comentário