Desde que montámos o nosso campo base e que iniciámos as primeiras caminhadas de aclimatação que aquele pico elegante nos olhava de soslaio. No entanto, as montanhas circundantes exerciam uma maior atracção. As suas altitudes superiores tornavam-nas mais apetecíveis.
Após a ascensão do Ekdant o tempo anunciava-se instável. As nuvens negras surgiam de uma forma constante, normalmente vindas de oeste, carregadas de ameaça e duvidas. De vez em quando estalava uma tempestade de neve, sempre acompanhada de um temível aparato eléctrico.
Com dois dias previstos de bom tempo tentámos escalar uma nova via mesmo pelo meio da face norte do Parvati Parvat. Ainda não nos tínhamos dado por vencidos.
Seria a primeira via tentada naquela face entrecortada por enormes barreiras de seracs.
Á primeira vista, parecia uma parede impossível mas, uma observação mais detalhada revelou uma possibilidade sinuosa que evitava os seracs mais perigosos. Desde a base da parede, utilizando o lápis da imaginação, traçámos uma linha invisível que contornava as ameaçadoras barreiras de gelo.
A beleza de se escalar em terrenos nunca antes pisados é dar-nos conta da importância do processo criativo envolvido. Deste modo, o alpinismo ganha uma dimensão muito real. De certa forma, completa-se.
Confiantes, iniciamos a ascensão no dia 1 de Junho por volta da uma da manhã com um plano ajustado. A ideia consistia em escalar no primeiro dia até um determinado ponto de altitude desconhecida, plantar a tenda – desde baixo, tínhamos avistado um pequeno serac que poderia servir como abrigo para passar a noite, situado a quase três quartos da altura da face -, no dia seguinte tentar o cume e descer tudo até à base da montanha.
Este plano cheio de pontos duvidosos, tinha no entanto, uma certeza absoluta: não iríamos estar no meio da montanha ao terceiro dia. Já tínhamos a suficiente dose de tempestade eléctrica nesta expedição.
A neve, variava entre o aceitável e o detestável, ainda assim a escalada decorria a um ritmo relativamente rápido.
A pendente, com inclinações entre os 50º e os 60º aceitava de quando em vez uma estaca de neve entre os dois, fornecendo algum conforto psicológico.
Ás quatro da manhã, o arco do sol ainda frio, surgia no horizonte de montanhas e o céu iluminava-se. Os frontais foram desligados.
Ás quatro e meia, aos 5100 metros, uma travessia quase vertical de neve completamente apodrecida fez-nos reconsiderar a nossa tentativa. Após alguns minutos de reflexão chegámos à inteligente conclusão que a retirada tardia prevista para o dia seguinte iria, no mínimo, raiar a loucura. Se, ás quatro da manhã, a neve já se encontrava naquele estado degradado nem queríamos imaginar como estaria depois do meio dia.
Descer foi a palavra de ordem.
Pouco depois, uma grande avalanche varreu toda a vertente numa tangente à nossa pretendida linha de ascensão. Encontrávamo-nos fora da área de perigo mas, enquanto assegurava a Daniela que destrepava as rampas inclinadas do esporão, ainda tive tempo de esticar o pescoço para ver uma série de grandes blocos de gelo a rolar descontroladamente, em alta velocidade e em todas as direcções.
Fora apenas uma pequena sacudidela da montanha, quiçá para nos incitar a não mudar de ideias relativamente à decisão.
Nesse mesmo dia descemos ao campo base.
O mau tempo previsto atrasou um dia e, o clima estável iria afinal persistir até ao dia seguinte.
Depois de um belo almoço providenciado pelo Indira e, com o dissipar do cansaço da madrugada anterior, começamos a arquitectar o plano seguinte.
E que tal uma tentativa fugaz ao pico isolado por cima do lago Sathopanth?
É uma ideia. Mas, vamos numa de ultra-light! Levamos apenas o essencial para um dia de escalada.
Ficou combinado regular o despertador para as 2.30 da madrugada e, caso nos sentíssemos inspirados, faríamos uma tentativa.
Acordámos à hora prevista. O corpo pedia mais horas de sono mas, a perspectiva de um novo período de inércia, debaixo do mau tempo, a comer saladas no campo base, incentivou-nos a sair do conforto dos sacos-cama.
Com as mochilas anormalmente ligeiras sentíamo-nos a voar. Era uma sensação nova.
Íamos prevenidos apenas com o material necessário para um dia.
Na mochila iam água, alguns chocolates e bolachas. O equipamento técnico estava composto por duas estacas de neve, três parafusos de gelo e quatro pitons de rocha. Desta vez juntámos a cordeleta de apoio com 50 metros à corda principal. Desta, iríamos usufruir de 50 metros disponíveis para os rapeis, em lugar dos 25 metros, do Ekdant. Todo um luxo!
A lua, em fase de crescimento, iluminava as montanhas. Os seracs e as vertentes nevadas omnipresentes, contrastavam com as estrelas mais brilhantes que cintilavam no céu nocturno, alheias à paisagem dramática da qual fazíamos agora parte.
As sombras dos blocos maiores, errantes eternos do glaciar, remexiam a imaginação, criando uma sugestiva aura de mistério.
Caminhávamos em silêncio e os ruídos daquela noite sem vento resumiam-se ás pedras que rolavam, por vezes deslocadas pelas nossas botas.
O amanhecer surpreendeu-nos na base oficial da montanha. Uns duzentos metros mais abaixo, sobressaía o verde do lago sagrado de Sathopanth.
Relativamente ao lago, o glaciar homónimo estendia-se para baixo, passando ao largo do nosso campo base até se perder de vista. Para cima, depois do lago, o glaciar chocava com o espectacular circo de montanhas dominado pelo Chaukamba.
Desencordados, escalamos um corredor inicial de neve até alcançar uma extensa plataforma. Uma mesa característica aos 4700 metros de altitude.
A parede norte do Pico pequeno, como inicialmente baptizámos o nosso objectivo, erguia-se agora em toda a sua plenitude. Desde a plataforma parecia evidente que este pico tinha mais de 5000 metros. Apenas adivinhávamos a sua altitude uma vez que a montanha nem sequer figurava no mapa, apesar de constituir claramente um pico destacado do resto do maciço. Com efeito, a única informação disponível acerca desta montanha era a imagem que agora nos surgia em frente dos olhos. Passou-nos pela cabeça a ideia de que escalar mais à vista do que isto era impossível.
O sol rolava e os seus primeiros raios tocavam já a parede de neve.
Com o comutador dos ânimos regulado no nível máximo, reiniciámos a ascensão.
A Daniela concluiu rapidamente metade da face em primeiro de cordada. A neve encontrava-se em boas condições e a corda que nos unia revelou-se inútil. Ao menos aliviava-nos as costas do seu peso.
A segunda metade da parede tocou-me a mim liderar e, no preciso momento em que trocámos de papeis, a qualidade da neve caiu a pique provocando um abrandamento radical no ritmo de escalada. A partir daí, a neve foi variando entre o medíocre e o ridiculamente podre mas, alguns truques simbióticos entre um réptil e uma retroescavadora foram solucionando as situações e vagarosamente fomos ganhando altitude.
Devido ao razoável risco de deslizamento, reactivámos a segurança efectiva e algumas protecções foram sendo colocadas entre nós. A norma geral das protecções ditou que os pitons de rocha constituíam elementos de segurança à prova de bomba, os parafusos de gelo ofereciam uma segurança psicológica importante e as estacas de neve eram perfeitamente inúteis e tinham o mau hábito de se encaixarem entre as pernas de quem as transportava.
Apesar das dificuldades, os espíritos continuavam em alta. Eu até conseguia desfrutar dos fatigantes troços de trincheira de neve, sempre que pudesse conquistar mais dois metros, à razão de sete ou oito passos.
Um ultimo e esbelto esporão de neve relativamente aceitável (nível mediocre!) com uma inclinação e exposição inspiradores, colocou-nos na aresta final, a tão somente 20 metros do cume.
Esta simpática montanha virgem reservara-nos uma ultima surpresa, uma espécie de cereja no topo do bolo: um cimo rochoso, com uma passagem de sete metros ligeiramente apimentada, que a Daniela negociou afoita, num misto entre as técnicas de dry-tooling e repto-tooling, até ser barrada por um pequeno tecto… a três metros do cimo! Uma passagem de rocha um pouco mais exposta constituia o problema mas, o cume de uma montanha está situado no seu ponto mais alto e não nos arredores, por isso…
Ei, que bela reunião tens aqui montada! Observei espirituoso ao chegar junto da Daniela.
Dois parafusos, artisticamente enroscados num troço de gelo protegido pelo tecto de rocha, exibiam mais de metade do seu comprimento do lado de fora. Estavam, ao menos, perfeitamente equalizados!
Minutos depois, abraçamo-nos felizes.
Pela primeira vez na historia, seres humanos pisavam este troço do nosso planeta, uma cúspide mineral de um pico elegante e isolado.
Não experimentámos sensações esotéricas no cume, este não era um pico principal, nem a nossa ascensão constituía um feito de relevância extraordinária mas, ao nível pessoal, sentíamos ter concretizado algo.
A aventura ainda não tinha terminado. Faltava-nos ultrapassar aquele lugar comum proferido pela boca de todo o alpinista: a descida.
Agora, a neve encontrava-se nas piores condições possíveis e imaginárias.
As estacas eram inúteis e o único recurso de segurança consistia nas ilhas de rocha que afloravam ocasionalmente. Evidentemente, esses pequenos oásis de rocha raramente se encontravam nos locais ideais da vertente, ou seja, ao fim de cada 50 metros de corda. Resolvemos unir a cordeleta de apoio à corda principal. Desta forma, um de nós podia destrepar cerca de 100 metros com segurança de cima e assim aumentavam-se as hipóteses de encontrar um pedaço de rocha passível de aceitar um sólido piton de rocha. De seguida, o segundo de cordada destrepava a pêlo seguindo cuidadosamente as escadas abertas pelo predecessor.
Entre destrepes e ocasionais rapeis lá fomos perdendo altura.
Humm, talvez nesta fissura consiga colocar um bom piton! No final de um rapel, examinava o seguinte local de reunião quando, de repente, por cima da minha cabeça ouvi um ruído assustadoramente familiar. Levanto a vista para ver uma torrente de neve húmida a deslizar exactamente em minha direcção. Sentia-me como um animal encurralado, sem lugar para fugir. Agarrei-me o melhor que pude ao pedaço de rocha disponível, enquanto a neve jorrava para cima de mim querendo empurrar-me ao vazio. A Daniela, um pouco mais acima e desviada do curso da torrente, gritava-me qualquer coisa que naquele momento não ouvia. Estava demasiado ocupado a entrar em pânico para entender o que me queria comunicar.
Tão depressa tudo começou como terminou.
Ainda a recompor-me do golpe de adrenalina provocado pela pequena avalanche, lá percebi o que a Daniela me estava a querer dizer. É que eu estava atado à ponta da corda! Mesmo que a força da neve me tivesse arrastado, não iria muito longe, de facto, nem sequer sairia do lugar. Naquele momento senti-me ridículo.
Com todos os sentidos em alerta máximo continuamos a nossa descida e a aventura terminou sem mais percalços.
Na caminhada de regresso ao campo base discutíamos o nome com que iríamos baptizar o pico.
No dia seguinte, a mastigar qualquer coisa, fruto da arte de cozinha de Indira, surgiu uma ideia
KARTIK.
Os nomes:
A tradução literal do nome EKDANT é : Um dente ou Dente singular.
Este nome retrata um acontecimento da mitologia Hindu que conta como Ganesha, um deus com a cabeça de elefante, perdeu um dos seus dentes passando, a partir desse momento, a ser também conhecido como Ekdant.
O deus Shiva e a deusa Parvati, tinham dois filhos: Ekdant e Kartik, este ultimo, mais jovem que o seu irmão, tratava-se de um semi-deus guerreiro.
No vale que visitámos, já estavam representados três membros da familia de deuses: Neelkanth (outro nome de Shiva, que também representa um acontecimento lendário) com 6596 m, Parvati Parvat (a mulher de Shiva) – O nome Parvat, significa: montanha com 6257 m e Ekdant com 6100 m.
Faltava o irmão mais novo para reunir toda a familia na mesma área. Assim, surgiu a inspiração para baptizar o pico virgem que acabáramos de escalar de KARTIK com 5115 m.
Desta forma, respeitávamos também a tradição local.
Paulo Roxo