Mapa do PN Los Glaciares, Argentina
Visitei Los Glaciares num impulso, valendo-me do período de Carnaval no Brasil. No mês anterior, tinha retornado de uma esplêndida caminhada pelo Paine, parque vizinho localizado no Chile.
Mas o clima no sul da Patagônia é instável, um mês depois já havia muita chuva e neve. Mas isto não nos impediu de uma visita muito especial, e num certo sentido mais emocionante. Los Glaciares é diferente do Paine: tem uma natureza mais dura e sofrida, uma certa aspereza que valoriza suas poucas visões encantadoras.
Vista de los glaciares
Depois de atravessar as regiões florestadas e arenosas do parque, encontramos um israelense ao cruzar o caudal do Rio Eléctrico. O rio se encontrava turbulento e ameaçador devido à forte chuva. O rapaz era grande e jovem, mas se resguardou atrás, numa posição que nos obrigou a atravessar o vau na frente.
Mal equilibrado com a
mochila cargueira, quase fui levado pela correnteza, sem que o moço egoísta se dispusesse a qualquer ajuda. Dias depois, quando abandonava emocionado o parque, voltei a encontrá-lo numa matinha. Tenho certeza de que ele não entendeu minhas lágrimas – infelizes são os homens que nunca choram.
Los Glaciares termina de forma estranha, confinado por uma enorme montanha rochosa numa esquina acanhada. A montanha se chama Cerro Eléctrico, um perigoso conjunto de lajes, fendas, abismos e matacões, que comecei a escalar com meu filho.
A luz fechou, veio a tarde e começou uma nevasca – mas continuamos avançando, com uma energia que se esgotou, quando percebemos que a neblina poderia nos ameaçar a volta. Esta foi uma daquelas situações em que você descobre que escapou mais por sorte do que por mérito – chegamos sem acidentes, porém já no escuro gelado.
Nevasca no Cerro Electrico, Los Glaciares, Argentina
Estávamos alojados numa construção esquisita, feita de descartes: folhas de papelão, chapas de zinco, peças de compensado, restos de pedras e de tijolos. Fora construída por um argentino silencioso, que morava numa pitoresca choupana ao lado.
Um dia fui visitá-lo e encontrei sua sala cheia de bibelôs, parecia um local de memórias de uma infância perdida. Imaginei que retornava àquele local porque não tinha outro em sua vida.
Você é prisioneiro daqui, não? eu perguntei. Sim – venho de carro pela borda do lago, é bem mais fácil do que o caminho que vocês fizeram – retorno para a cidade mas não posso, todo o mês tenho de voltar, ele respondeu com tristeza.
Retornamos para a vila de El Chaltén, de onde saía o único ônibus de volta. A sala do bar que servia de rodoviária estava cheia, até que, após muita demora, chegou o transporte.
Cerro Fitz Roy, Los Glaciares, Argentina
Um rapaz barbudo e eu (também algo barbudo na ocasião) fomos abordar o motorista e descobrimos alarmados que ele teria de resgatar um grupo de chilenos atolados no lago de divisa com o Chile. Era exatamente por este lago que o argentino solitário chegava.
Se ele fosse até o lago, não haveria lugar para mais ninguém, pois esta era sua prioridade. Lembrei-me da rivalidade entre os dois povos e disse-lhe ser inaceitável ele se humilhar diante de chilenos de mierda.
E ele concordou enfurecido comigo, ligou o motor e chamou os passageiros. O barbudo e eu fomos os primeiros a embarcar, dois turistas solidários com a sofrida profissão do motorista.
Querendo agradá-lo, acabei comprando na viagem de volta um pacote de barco para o dia seguinte. Exceto pelos adoráveis pinguins, foi um grande mico.
Aprendi ao longo dos anos que, se você sai de barco, nunca acontece nada, a menos que – se você tiver sorte – ele acabe naufragando. Aí sim, você terá uma história bacana para contar.
Soube por amigos que El Chaltén, a vila de entrada do parque, não é mais horrenda e acanhada, como me parecia quando a conheci. É percebida agora como bonita e acolhedora. O turismo tornou o mundo dos homens mais ameno, mas lá o mundo da natureza continuou áspero e difícil.
Cerro Electrico à Frente do Fitz Roy, Los Glaciares, Argentina