Com o sol rapidamente se pondo no horizonte mergulhamos outra vez na mata fechada, onde , perdemos altura considerável no q parecia ser , a íngreme encosta sul do Tapapuí. Com a luminosidade esvaindo-se e o olhar ainda não habituado à penumbra redobramos o cuidado no avanço, tateando bem o terreno antes de estender o braço ou de esticar a perna, nos firmando bem na vegetação em volta. Breve pausa pra colocar as headlamps ao atingir as nascentes do Rio do Meio, já no escuro, pois vagalumes já pipocavam naquele negrume anunciado. No entanto, eu, Vivi e Fabio não contávamos q haveria caminhada noturna, deixando as lanternas (e pilhas) nos fundos da mochila. Resultado: fomos sendo “guiados” pelo prestativo e paciente Moises, q iluminava o restante do caminho pra gente. Báh &, Elcio pra variar despirocaram na dianteira. Verdade seja dita: é dureza acompanhar o ritmo do Elcio, e não é a toa q é considerado um dos maiores montanhistas do país.
Se descer rios já é algo perigoso de dia imagine então à noite no escuro, sob fachos de lanterna? Pois é, e não havia escolha, pois agora teríamos q acompanhar o curso d´água rio abaixo até a altura do selado, onde o terreno da encosta suavizava na base do Farinha Seca. Olha, essa descida de rio foi tensa e nervosa não somente pelo fato de ser quase q às cegas - , sob risco de fratura num piscar de olhos, despencando, escorregando ou apenas pisando numa pedra solta – mas foi tb mto desgastante devido ao cansaço acumulado. Lembrar q Vivi e Fabio ao menos dormiram enqto eu permaneci acordado pra manter o Mamute atento ao volante durante td viagem madrugada adentro. A falta de sono decente somado à pernada daquele dia tava cobrando seu tributo e eu não via a hora daquele perrengue angustiante terminar pra desabar no meu saco de dormir. Nessas horas fico na minha, concentrado e não falo com ninguém, apenas me focando no q to fazendo. E ai de alguém se me encher o saco q solto imediatamente os cachorros pra cima do infeliz.
Depois de uma meia hr rio abaixo q pareceu interminável, tateando o chão q parecia mais firme, alcançamos um trecho onde coletamos água pro pernoite. Na seqüência, subindo um pouco a encosta e desviando do arvoredo no caminho, em quase 10min alcançamos então o tal lugar de pernoite. O local era pequeno, mas era o único trecho plano da encosta, entre o Tapapuí e o Farinha Seca. Não q isso fosse problema. O inconveniente era q ali tava repleto de um cipózinho infernal apropriadamente chamado de “unha-de-gato”, pois alem de flexível dilacera e perfura a pele com facilidade, alem de agarrar em qq saliência sem mta dificuldade. Logicamente q tivemos q abrir espaço na raça pra td mundo se espremer naquele exíguo local, uma vez q a Báh e o Elcio já haviam se apropriado dos “melhores” espaços pra bivake. Resultado: eu, Moisés e Fiori acomodamos nossos sacos-de-dormir no chão, mocozados do jeito q deu, enqto a Vivi e Fabio se espremeram de modo a montar a única barraca no espaço q sobrou, as 19:30.
Na seqüência os fogareiros ronronaram anunciando uma fartura de comilanças. Sopas, salames, queijos, risoto e até uma feijuca esteve à disposição em nosso buffet improvisado, comida esta q nunca esteve tão deliciosa. Apenas engoli o suficiente pra matar a larica com tiros de trezoitão, pois o cansaço tava pegando com força total e assim afundei no meu saco-de-dormir pra não arredar pé dele ate a manha sgte. O povo até tentou contato com a galera no outro extremo da travessia pra saber do progresso no avanço. Nada. O sinal de celular era precário, senão nulo, mas ainda assim confiávamos no cacife da tigrada.
Mas ao q parece não fui o único acabado, uma vez q a barulheira só perdurou ate uma hora depois pra finalmente um silencio sepulcral tomar conta da Serra da Farinha Seca. A noite, por sua vez, nos brindou com zilhões de estrelas cintilando no céu, brilho este q iluminava parcialmente nosso local de pernoite, filtrado maravilhosamente pela copa do arvoredo. A mata remexendo constantemente em virtude das fortes rajadas de vento cunhara de razão nossa decisão de não pernoitar no cume do Tapapuí. E assim tivemos uma agradável e revigorante noite de sono profundo.
A manha sgte irrompeu conforme nossas previsões, isto é, a atmosfera transparente indicava q o dia seria esplendido. Sentia o corpo td dolorido e ralado do dia anterior, mas nada q cartelas de Dorflex não resolvessem. Pois bem, embora tivéssemos a mto despertos, o friozinho matinal nos segurou aos nossos casulos por mais tempo, ate mais precisamente as 7:30. Tomamos um desjejum reforçado e beeem demorado, com direito até a cappuccino por parte do Moises. Pra variar, o “Trio Ligeirinho” disparou na frente enqto ainda nem terminávamos de mastigar as bolachas q trazia a tiracolo. “Deixa eles irem primeiro, Jorge!”, disse o Fiori, “Assim eles vão abrindo caminho pra gente!”. De fato, a partir daqui o terreno era desconhecido e incerto. Então vamos lá.
Com cargueiras novamente nas costas, iniciamos a pernada daquele dia ganhando as íngremes encostas do Farinha Seca, onde ainda dava pra transitar em meio ao arvoredo. A passagem do “Trio Ligeirinho” era visível pela “trilha” formada pela mata abaixada no caminho, devidamente demarcada com fitas amarelas pela Vivi, feliz da vida com a sua nova função. Mas assim q a piramba apertou o bosque deu lugar a td tipo de vegetação agreste. A picada morro acima nos brindou com muita taquara, quiçaça, bambuzinhos, unha-de-gato e bromélias imensas foi nos dando passagem até despontarmos numa pequena clareira forrada de capim na extremidade norte da crista q abriga o cume. Uma vista fantástica do Tapapuí e dos imensos precipícios q despencam em direção da centenária Estrada da Graciosa serpenteando mil metros abaixo foi merecedora de vários cliques. O , tapete alvo de nuvens represado pela serra tomando conta de td quadrante leste idem.
Prosseguimos pela crista ascendente abrindo penosamente um rasgo na macega densa, dura, retorcida e ressequida até reencontrar o “Trio Ligeirinho” descansando no alto dos 1372m do Farinha Seca, as 10:30. Em tempo, Farinha-seca é uma árvore da família das Leguminosas (Mimosaceae) e seu nome científico é Albizia polycephala. Em suma, é a tal macega q aqui abunda no cume. Mas após prosseguir arduamente quiçaça adentro pro outro lado da encosta da montanha desembocamos num pequeno descampado onde nos empoleiramos no capim, maravilhados pela visão q se descortinou à nossa frente, as 12hrs. A atmosfera transparente daquela manha radiante nos proporcionou uma vista incrível de td quadrante sul, isto é, de td q nos restava da travessia: um íngreme e fundo vale nos separava do Morro dos Macacos, cuja crista se perdia nos 3 cumes do Mojuel e Jurapê. O Balança surgia minúsculo como um imponente domo rochoso de 1116m verticalizado no outro extremo da cadeia, onde supostamente o resto do povo deveria estar. E ao sul, emergindo num mar de nuvens, reluzia a crista azulada do Marumbi.
Pois bem, , ao mesmo tempo incrível e amedrontadora, aquela paisagem colocou em cheque nossas pretensões de travessia. Foi ali q tivemos uma verdadeira noção das nossas audaciosas pretensões. Chegar ate ali já havia sido um sufoco e ainda faltava muuuuito ate o Balança. Portanto, tínhamos q torcer pra galera avançando pela outra extremidade ter progredido consideravelmente de modo a no dia sgte nos encontrar, e findar a pernada dentro do prazo.
Tentamos contato novamente por celular e foi ai, com sinal, q ficamos sabendo q o Natan, Michele, Otaviano e Carol nem chegaram a base do Balança. Haviam batido o carro na Estrada da Graciosa logo após nosso encontro pela manhã, felizmente nada de grave. “Fudeu! A travessia já era!”, pensei. De fato, mão-de-obra pra rasgar mato era fundamental pra terminar a pernada proposta dentro do prazo. Sem isso, pelos nossos cálculos de avanço ate aquele lugar terminaríamos a pernada somente dentro de 3 ou 4 dias avulsos, tempo q não dispúnhamos. Sem contar com provisões e da nossa responsabilidade de labuta na segunda-feira. Foi ai q decidimos em comum acordo abortar a travessia, sob protestos do decidido Elcio, q jurava de pé junto q dava pra terminá-la dentro do prazo. Mas foi voto vencido, claro. Tínhamos q ser bem realistas, repensando os objetivos e sacrifícios daquele dia.
Após descansar ao sol nas encostas do Farinha Seca, brincar com mais aranhas cabeludas q as meninas encontraram e almoçar sandubas, frutas e salgados entre goles de suco, iniciamos o caminho de volta. Voltaríamos pelo Rio do Meio e dali desceríamos o curso d´água ate a Velha Graciosa, embora o Elcio , (sim, sempre ele!) esbravejasse para voltar ate o Mãe Catira pelo mesmo caminho. Foi voto vencido novamente.
Mochilas novamente nas costas, voltamos então pelo caminho aberto td q havíamos percorrido naquela manhã ate alcançar o local onde pernoitamos. Era incrível reparar o quão fácil era transitar pela trilha, agora aberta, q nos dera tanto trabalho na ida. Penetramos então na floresta morro abaixo e num piscar de olhos caímos nas nascentes do Rio do Meio, as 13hrs, q ganha este nome por se situar entre os rios Taquari e o Capivari-Mirim. Ali encontramos uma enorme bosta fresquinha q gerou algumas acusações entre integrantes do grupo qto ao esfíncter de sua origem, mas nada indicava como humana a sua procedência.
Agora tinha inicio uma legitima descida de rio, inicialmente foi bem tranqüila, pois bastava pular de pedra em pedra cuidadosamente, de modo a não patinar nos trechos besuntados de limo liso. E assim fomos avançando aos poucos, descendo o rio suavemente e às vezes desviando da mata tombada no caminho. Mas de repente a declividade apertou, as 14hrs, anunciando a bonita Cachu dos Degraus, onde tivemos uma breve parada pra cliques e descanso. A queda nada mais é uma sucessão de blocos verticais de pedras sobrepostos por onde o rio despeja sua água em vários níveis. Isso iluminado pelo sol da tarde filtrado pela vegetação confere ao local um quê de místico.
Reiniciamos a descida de rio e desta vez com declividade bem mais acentuada no q pareceu ser um cânion com a particularidade de ter visível apenas a parede vertical esquerda. Começou então uma tensa desescalaminhada de rio, o q por si já é bem adrenante. Mãos e pés são igualmente solicitados assim como atenção redobrada na busca de ptos de apoio secos, evitando rochas sebosas. Isso exige demais dos joelhos e com freqüência se usa o “quinto” apoio. , Isso somado as pesadas cargueiras é realmente bem desgastante, mas por sorte nosso avanço era constante e ágil. Sem contar o empenho em desviar de enormes arvores tombadas e atravessar emaranhados de tranqueira arrastada pelas cabeças d´água. Às vezes não tinha jeito e a única forma de avançar era tendo q agachar ou nos espremer entre os troncos de arvores , e o rio de modo a passar por baixo do obstáculo em questão, o q não raramente nos encharcava ate a cintura. No caminho, muitos afluentes à esquerda e a direita, ilhas pluviais e corredeiras. Nosso rosto, claro, vivia encharcado de suor, mas bastava apenas se abaixar pra refrescá-lo com água límpida e revigorante.
Após mais um breve pit-stop noutro bucólico lugar contemplado por uma bela cachu e uma laje a beira de um belo poço, as 15:20, retomamos a pernada agora por terreno mais suave e repleto de remansos fluviais. A vegetação aumenta em porte anunciando estarmos quase no sopé da montanha, e era hora de deixar o rio, ate pq no meio da mata sempre escurece mais cedo. Mas é justamente o q fazemos as 16:40, saindo através de uma íngreme encosta ate ganhar um terreno mais plano adiante.
Varamos um pouco de mato ate dar numa precária estrada de terra, repleta de atoleiros enlameados. Mais um pouco e emergimos num descampado gramado, onde havia q desviar a td hora das bostas de búfalos, cada vez nos afastando mais do murmúrio das águas do Rio do Meio, q agora corre mansamente. Ganhando uma estrada secundária repleta de araucárias não demorou a alcançar a pacata Comunidade do Rio do Meio e, as 17:50, desembocar na Velha Graciosa com a penumbra no nosso encalço. De longe conseguíamos avistar a silhueta dos maciços percorridos e pensar já com alguma saudade, “Ainda voltaremos lá!”.
Sob fina garoa aguardamos pacientemente nosso resgatista, ninguém menos q o filho do Moises, e após pegar os veículos rumamos pra sua casa onde comemoramos com 3 deliciosas pizzas, um revigorante banho quente e muita conversa fiada do perrengue pelo qual havíamos passado. Ali, com sinal de celular, ficamos sabendo q somente o Pedro Hauck e o Jurandir Constantino haviam encarado subir o Balança de modo a nos encontrar. Mas mesmo assim fora insuficiente. Uma frente fria estava chegando naquela mesma noite desabando em temporal pelos próximos dias, o q fez a corajosa dupla também retornar no dia sgte depois de uma noite úmida. Pois é, a Travessia da Farinha Seca não era pra ser mesmo naquela ocasião e ainda há de ser feita. Stand by, por assim dizer. Mas ate ali a aventurinha pra mim já havia valido a pena, pois aquela era uma serra q desconhecia e promete vindouras pernadas.
O próprio Fiori já havia dito em mais de uma ocasião, coberto de razão diga-se de passagem, q o filé mignon da serras paranaenses, isto é, Marumbi e Ibitiraquire, já estava feito e agora é pura carne de pescoço. Puro osso! Sendo assim restavam as pernadas obscuras, longe dos holofotes da mídia e q ninguém conhece. Estas são de fato as melhores travessias. E a da Serra da Farinha Seca certamente há de ser uma delas, q ainda está aguardando o momento propicio de ser realizada. É uma serra q até agora ninguém se atreveu a enfrentar suas cristas e aquela linha é totalmente desconhecida. Quem sabe no próximo inverno. Mato, campo, frio, calor, solidão, quiçaça, macega, unha-de-gato e muita aventura num lugar onde poucos conseguem ir. Eis uma travessia q com suas variantes rio abaixo resgata o melhor estilo do montanhismo brasileiro.
Texto de Jorge Soto e fotos de Jorge Soto e Moisés Lima
http://www.brasilvertical.com.br/antigo/l_trek.html
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