Uma travessia é quando, numa caminhada, se começa num local e termina em outro. Uma travessia em montanha é quando além de começar e sair em locais diferentes, realiza-se em uma só investida diversos cumes. Em termos esportivos, isso significa um aumento grande da dificuldade por conta do tempo em que se gasta para realizar todas estas escaladas e todo o problema que isso envolve na parte logística.
Em um artigo de revisão, mas incompleto, o colunista do AltaMontanha, Pedro Hauck, relatou no site da revista Go Outside, quais seriam as travessias de montanha mais difíceis do Brasil. Relatando as pernadas mais famosas nas montanhas brasileiras, e rompendo com o mito de que a travessia da Serra Fina, na Serra da Mantiqueira, entre São Paulo e Minas, seria a mais difícil do país, ele introduziu ao leitor e contou a história de três travessias paranaenses pouco conhecidas pelo público em geral, mas que apresentam grande dificuldade física e de orientação. Estas travessias são as que cortam os três principais blocos montanhosos da Serra do Mar do Paraná: Serra do Ibitiraquire, Serra da Farinha Seca e Serra do Marumbi.
Além de introduzir a existência destas travessias e contar suas histórias, ele ainda fez uma previsão de que quem conseguisse prolongar todas estas travessias, estaria realizando a pernada em montanha mais difícil do Brasil. Dito e feito, a dupla Elcio Douglas Ferreira e Jurandir Constantino acabam de realizar tal proeza.
Elcio Douglas Ferreira é uma figura folclórica no montanhismo paranaense. É famoso por ser muito rápido na trilha e por ser, talvez, o maior recordista em ascensões em algumas montanhas da Serra do Mar, se orgulhando de ter chego ao topo do Pico Paraná em 71 ocasiões, 34 vezes no Ferraria e apenas para exemplo, 12 no Agudo da Cotia, a montanha com trilha mais distante da Serra. Ele já fez a difícil travessia Siririca x Graciosa 17 vezes, a recém reaberta Farinha Seca 4. Fora do Brasil, escalou o Illimani 2 vezes e fez o cume do Aconcagua em 3 dias, sem se aclimatar e ainda esnobou, chegando ao topo das Américas de camiseta.
Já o Jurandir Constantino é uma pessoa mais reservada. Entretanto é também um montanhista experiente, sendo um verdadeiro nativo do Marumbi, pois morou bastante tempo naquela vila, quando a Serra nem parque era. Seu pai trabalhava na RFFSA e eles moravam na casa onde hoje é a sede do parque. Jurandir conhece a Serra do Mar como ninguém, tendo inclusive um cume batizado em homenagem à ele.
A dupla de montanhistas começou a caminhada no Bairro Alto de Antonina junto com mais um integrante Ivon “Sexta Feira” Sales. Eles subiram a Picada do Cristóvão e o primeiro cume que alcançaram foi o Guaricana. Descendo desta montanha, após o primeiro pernoite, eles atingiram o topo do Ferreiro e na seqüência abriram a trilha até o cume do Ferraria, onde passaram a segunda noite. No terceiro dia, alcançaram o cume do Taipabuçu, Caratuva, Pico Paraná, Tupipiá, novamente PP, União e Ibitirati, indo bivacar no Itapiroca. Na próxima manhã, desceram até o Cerro Verde, passando pelo Luar, Siri, Siririca, Agudo do Lontra e pernoite na base do Aguda da Cotia.
No dia seguinte, o quinto da travessia, fizeram um ataque até o Agudo da Cotia para depois retornar e finalizar a travessia do Ibitiraquire no marco 22 da Estrada da Graciosa. Neste momento, o terceiro participante “Sexta Feira”, teve que deixar o grupo para voltar ao trabalho. Elcio e Jurandir acampam no quintal do Senhor “Espalha Brasa” do Sitio da Casa Garbes.
Neste ponto a dupla começa a travessia da Farinha Seca, ascendendo o Mãe Catira, Sete, Pequeno Polegar, Casfrei , Tapapuí, Farinha Seca, chegando meia noite no cume do Morro dos Macacos.
No dia 7, Partem do Macacos de manhã cedo, atingindo o Mojuel, Jurapê Açu, Jurapê Mirim, e Balança, descendo os mais de mil metros de desnível desta montanha, onde há 15 anos faleceu o montanhista “Black”, amigo pessoal de Elcio, que se foi tentando realizar a travessia da Farinha Seca.
A dupla dormiu na casa de um amigo na Vila do Marumbi, recompondo energias para subirem a Esfinge, Ponta do Tigre, Gigante, Olimpo e Boa Vista. Eles desceram as encostas desta ultima montanha, atingindo a “Free Way”, uma trilha que no passado foi palco das primeiras corridas de montanha do Brasil, mas hoje não tem nada de “Free”, estando completamente fechada. Ali eles começaram a sofrer com a vegetação fechada.
Após pernoite no Pelado, foram crentes que iam finalizar a travessia, varando mato no Espinhento, Chapelzinho, Alvoradas 2,3,4, Mesa, Sem Nome, Carvalho, Ferradura, Torre do Vigia e Canal. A vegetação, no entanto, jogou balde de água fria na dupla, nas palavras de Elcio:
“fomos surpreendidos por uma vegetação diabólica que fechou toda a trilha praticamente. Tivemos muito trabalho e perdemos muito tempo nisso, além do cansaço acumulado. Chegamos com a última claridade do dia no Sem Nome, e um imenso vendaval que nos acompanhava desde os Alvoradas. Os problemas com a trilha continuaram. E exatamente no vale xexelento entre Sem nome e Carvalho, desabou um imensa tempestade sobre nós, com ventos fortíssimos, chuva torrencial e muito frio. Não tínhamos nada com que se abrigar a não ser um tenda de bivac de 1,4m x 2m. Dormimos ensopados, a noite foi eterna, e nos fez sentir saudades de outras que considerávamos péssimas. Na manhã seguinte, apresentávamos alguns sintomas de hipotermia”.
Morinbundos, a dupla saiu de seu bivaque e debaixo de chuva e nevoeiro para finalizar esta pernada na fazenda do Sr. Zezinho, que dá acesso ao Morro do Canal. De acordo com Elcio, foi a coisa mais extrema que ele realizou em sua vida. Mesma opinião compartilhada por Jurandir. Elcio Douglas finaliza contando como foram as ultimas horas da pernada:
“Depois do bivaque mortal, entre Sem Nome e Carvalho, amanhecemos com vontade de permanecer por ali pra sempre, e tive algumas alucinações ou sonhos talvez, de que estava em casa, bem, e aquecido. Mas então tive um lapso de consciência e percebi que se ficássemos ali, iríamos morrer. Então chamei o Jurandir, que também estava gelado e imóvel, e não queria se mexer. Desmontamos as coisas meio de qualquer jeito, e partimos encharcados até os ossos rumo ao Carvalho, aonde já chegamos mais aquecidos, e com animo para ir aos destroços do avião. Depois disso seguimos pro Ferradura, Torre do Vigia, e finalmente canal, onde ficamos expostos a um clima ainda mais hostil. A fazenda do Zezinho estava deserta. Pedimos informações sobre onde tomar ônibus. Nos disse pra ir até capoeira, mas no caminho fomos informados que o ônibus na operava nos finais de semana. Então demos uma volta gigante pelos labirintos de estradinhas margeando represas. Andamos por mais de 4 horas por elas, e fomos sair na trincheira de borda do campo, onde meu irmão nos resgatou.”
Foram 132.5 Km, destes, 102 de trilha no meio da Serra. A travessia mais longa e difícil entre montanhas no Brasil, a Alpha Crucis, idealizada por Paulo Henrique “Vitamina” Schmidlin nos anos 1960, enfim foi realizada.
Leia mais:
:: Alfa Crucis, uma baita travessia – Coluna Pedro Hauck
:: O DNA das travessias – Coluna Julio Fiori