Por Pedro Hauck
Marcelo, ao invés de seguir esta estratégia, prefere realizar incursões rápidas e certeiras nas montanhas, apostando na agilidade e pouco peso para não sofrer as consequências fisiológicas de permanecer em altitude. Para muitos, a estratégia de Marcelo é considerada perigosa e até errada. Para ele, no entanto, tem sido uma estratégia certeira e mais segura.
Conheça um pouco a história deste montanhista mineiro que nos últimos anos tem, sozinho, aumentado significativamente suas ascensões e já se tornou um dos brasileiros com mais experiência em altitude. Sua história é impressionante!
Altamontanha.com: Marcelo, quando e porque você começou a fazer ascensões em montanhas de altitude de maneira tão rápida?
Marcelo Delvaux: Sempre fui favorável a um processo de aclimatação tradicional e, apesar de já ter feito algumas montanhas de forma mais “rápida” que os padrões convencionais, foi somente a partir de 2010 que adotei como estilo de ascensão a filosofia do “rápido e leve”. Desde minhas primeiras experiências na altitude eu já havia percebido minha facilidade de aclimatação. Mas, como até 2008 a maioria de minhas expedições contava com a participação de outros montanhistas, acabei por manter um estilo mais conservador, visando uma aclimatação adequada para todo o grupo.
A partir de 2009 passei a realizar muitas ascensões em solitário (com exceção do Cho Oyu), o que me trouxe a possibilidade de arriscar mais e poder confirmar, na prática, se minha aclimatação era mesmo tão rápida como eu imaginava. A primeira experiência significativa nesse sentido foi no ano passado, no Cerro Mercedario, na Argentina. Esta é a quarta montanha mais alta dos Andes (conforme os dados “oficiais” vigentes), uns duzentos e poucos metros mais baixa que o Aconcagua. Eu preparei minha mochila otimizando seu peso ao máximo, de modo que eu não necessitasse fazer porteios, subindo em estilo “alpino”. Subi em 3 dias até o acampamento Pirca de Indios, a uns 5200 m de altitude, de onde resolvi atacar o cume. Normalmente, as expedições ao Mercedario montam um acampamento superior no local conhecido como La Hoyada, uns 600 metros mais alto. Eu fiz um ataque mais longo, de uns 1500 m de desnível a partir de Pirca de Indios, e cheguei ao cume em apenas 4 dias, sem sentir nenhum problema com a altitude. Esse resultado me serviu de base para o planejamento das próximas expedições, confirmando a especificidade de meu processo de aclimatação.
Desde então, passei a explorar esta especificidade visando estender um pouco mais meus limites e estabelecendo alguns desafios interessantes. Por exemplo, no ano passado subi o Huayna Potosí, na Bolívia, no feriadão de Corpus Christi. Saí do Brasil na quarta-feira à noite, cheguei quinta-feira em La Paz e fiz cume de sábado para domingo, pegando um voo de volta no domingo à noite. Em outubro ousei um pouco mais: no feriado de 12 de outubro fui para Arequipa, no Peru. Após dormir uma noite nessa cidade, situada a 2800 m de altitude, fui direto para o acampamento avançado do Nevado Ampato, a uns 5200 m, chegando ao cume norte desta montanha, de 6100 m, no dia seguinte.
Descrevendo assim, tudo isso pode parecer meio louco e sem propósito. Mas, ao contrário do que muitos imaginam, esta filosofia do “rápido e leve”, que tem muitos adeptos pelo mundo afora, é muito mais segura do que a forma tradicional adotada na alta montanha. Quanto mais tempo nós passamos em uma montanha, maior será nosso desgaste e nossa exposição aos perigos inerentes a esse meio natural. E mais tempo significa mais peso (mais comida, mais gás, mais equipamentos, etc.), dificultando uma evacuação rápida em caso de emergência. É claro que, na altitude, a capacidade de aclimatação é o que determina a velocidade de subida. Por isso, não custa lembrar que ascensões rápidas requerem experiência e um bom conhecimento do próprio organismo. Já faz vários anos que eu monitoro minhas condições nas mais diversas altitudes, medindo batimento cardíaco e nível de oxigenação, por exemplo. Assim, ficaria bastante claro para mim caso houvesse algum problema grave me afetando repentinamente em minhas escaladas.
Outro motivo para estas minhas ascensões “relâmpago” é minha preparação para voltar ao Himalaia. Quando estivemos no Cho Oyu não pudemos aproveitar a fantástica janela de bom tempo que a montanha nos ofereceu, já que a mesma fechou (e não abriu mais) antes do término do nosso período de aclimatação. Estudando o relato de muitas expedições nas mais diversas montanhas percebi que a não adequação do processo de aclimatação aos períodos de bom tempo é um fator relevante para não se chegar ao cume. Também já vi muitas expedições arriscando um ataque ao cume, e obtendo sucesso, com uma aclimatação insuficiente pelos padrões tradicionais. Aí vem a grande questão: o que é melhor, estar bem aclimatado e tentar o cume com tempo ruim ou aproveitar uma janela de tempo bom sem estar tão bem aclimatado quanto se gostaria? Minha experiência tem mostrado que a segunda opção, muitas vezes, pode ser melhor e mais segura, já que, na pior das hipóteses, caso uma aclimatação supostamente insuficiente traga algum problema na subida, pelo menos teremos tempo bom para sair da montanha. Mas vou enfatizar novamente: não é um método de ascensão que deve ser usado por qualquer um, inadvertidamente, nem estou sugerindo isso! É melhor ser conservador na aclimatação, quando não se conhece bem os efeitos da altitude em seu organismo, do que correr o risco de um edema ou outro problema qualquer, que pode ser fatal.
No Himalaia a questão do clima é importantíssima. Nos Andes também é, mas quando se está subindo um 8000 m, os problemas típicos de uma escalada de alta montanha ganham uma amplitude ainda maior. Por isso estou focando meus treinos nessas ascensões rápidas, visando preparar meu corpo para este tipo de situação e buscando um conhecimento de como meu organismo reage em condições extremas. Estou planejando minha volta ao Himalaia para o próximo ano. Ainda não decidi o que vou fazer em 2012, mas a meta é tentar o Everest sem oxigênio no ano seguinte, em 2013. E quero estar preparado para situações que exijam uma subida mais rápida, se for o caso.
AM: Você já sentiu algum problema relacionado à aclimatação em uma destas ascensões relâmpago em altitude? Se sim, o que sentiu, se não, a que você que se deve o fato de mesmo subindo tanto, tão rápido, nunca teve problemas com altitude.
MD: Por incrível que pareça, nunca tive nenhum tipo de problema. Em todo meu histórico na alta montanha eu senti, no máximo, uma ou outra dorzinha de cabeça tratada com uma aspirina “básica”. , Porém, não saberia explicar os motivos desta facilidade de aclimatação, isso é algo que eu também gostaria de conhecer melhor.
Provavelmente, uma boa aclimatação está ligada a muitos fatores e não existiria uma explicação simples para isso. No meu caso específico, talvez meu histórico de prática de esportes ajude bastante, já que faço atividades esportivas regularmente desde os 10 anos de idade e meus esportes preferidos sempre foram aeróbicos, com exceção da escalada. Se existe alguma certeza em relação à performance na altitude, talvez esteja na relação entre desempenho e capacidade aeróbica. Em um ambiente marcado pela escassez de oxigênio, uma boa capacidade respiratória é fundamental para uma oxigenação adequada do organismo. Mas a coisa não é tão simples assim: recentemente, ouvi a explicação de um médico especializado em alta montanha sobre a performance ruim em altitude dos maratonistas, devido às características peculiares do metabolismo deste tipo de atleta. Ou seja, não basta ter um bom condicionamento aeróbico, é preciso ter algo a mais.
Mas o que seria esse algo a mais? Alguma predisposição genética? Não sei. A existência de uma espécie de “memória” adaptativa em nosso organismo me parece uma hipótese bem interessante, apesar de não haver comprovação científica para isso. Segundo esta hipótese (acho até que já li algum texto do Reinhold Messner defendendo isso), nosso organismo aprende com a experiência a se adaptar ao ar rarefeito e, quando retornamos à altitude, ele consegue desencadear mais rapidamente os mecanismos que levam à nossa aclimatação.
AM: Quando você está em Belo Horizonte, segue uma rotina de treinos pra poder ter uma boa performance em altitude?
MD: Confesso que não sou dos mais disciplinados para treinar, mas procuro estabelecer uma rotina para manter meu preparo. Na verdade, meu treinamento é mais “extensivo” do que “intensivo”. Eu não treino muitas horas por dia, mas pratico algum esporte 5 ou 6 dias na semana. Para mim, o que funciona bem é a manutenção do meu condicionamento físico ao longo do tempo, ao invés de fazer treinamentos específicos em determinadas épocas do ano visando objetivos também específicos. Em outras palavras, eu estou sempre fazendo alguma atividade física durante todo o ano, é algo que já faz parte de meu estilo de vida. Aliás, é assim que eu vejo o montanhismo e a escalada: um estilo de vida, saudável por sinal, que acaba por influenciar hábitos e diversos outros aspectos de nosso cotidiano.
Minha rotina de treinamentos é bem simples. Durante a semana treino escalada esportiva indoor e corrida. São dois dias de escalada e dois de corrida, normalmente correndo uns 10 km por treino. Quando estou com tempo e paciência, o que é raro (me refiro ao tempo e não à paciência, hehehe), complemento isso com umas 2 ou 3 sessões de musculação básica (que eu odeio) e spinning. Nos finais de semana procuro diversificar: ou vou para a rocha escalar (escalada esportiva, na maioria das vezes), ou faço longas travessias de mochila, de 1 ou 2 dias. Eventualmente, também pratico um pouco de mountain biking. Costumo, ainda, complementar as atividades do final de semana com uma ou duas sessões de corrida, quando dá tempo. Ultimamente, tenho procurado participar de competições de corrida de rua e, às vezes, sigo alguma planilha de treino específica, visando uma meia-maratona, por exemplo.
Em suma, minha rotina não é bem uma rotina, procuro variar bastante para não ficar monótono. O fundamental é não ficar parado…
AM: O que você das montanhas de oito mil metros do Himalaia? Você voltaria lá de novo?
MD: O grande problema do Himalaia são as rotas comerciais de montanhas como o Everest e o Cho Oyu. Não tenho absolutamente nada contra as expedições comerciais, pelo contrário. Acho interessante que pessoas “comuns”, sem ou com pouca experiência em escalada, se interessem em subir uma grande montanha. Não concordo que as grandes montanhas do mundo devessem permanecer acessíveis somente à elite do montanhismo, como alguns defendem. Quando digo que as rotas comerciais são um grande problema, me refiro ao modelo atual de expedição comercial utilizado no Himalaia. Se, por um lado, a questão da segurança dos clientes melhorou muito, por outro vejo que as empresas que organizam as expedições ainda não respeitam devidamente nem a montanha, nem os povos que ali vivem.
Quando fui ao Cho Oyu fiquei horrorizado com a quantidade de lixo na montanha. E não era somente lixo acumulado de muitos anos de expedições não, era lixo deixado propositalmente pelas expedições comerciais que tinham acabado de ir embora. Eu fui uma das últimas pessoas a deixar a montanha. Quando desci do C1 (acampamento avançado 1) para o acampamento base avançado, praticamente não tinha ninguém lá e, no lugar daquela “quase cidade” de barracas coloridas me depararei com um verdadeiro lixão, uma cena digna (ou melhor, indigna) dos lixões das grandes cidades brasileiras, com os corvos fazendo a vez de nossos urubus.
Não estou exagerando não, fotografei e filmei isso tudo. Eu tive a impressão que nenhuma das empresas que esteve por lá levou seu lixo embora. Comprovei isso quando deixei a montanha. Apesar de termos ido de forma independente, havíamos contratado uma empresa para agilizar os trâmites burocráticos e ficamos acampados na base junto com os demais clientes desta empresa. Para sair da montanha tive que esperar que eles finalizassem suas atividades, já que meus iaques iriam chegar junto com os deles. Antes de partir deixei nossos barris de equipamentos junto com uma bolsa imensa de lixo para que fossem carregados nos iaques. Quando cheguei ao acampamento chinês, onde um caminhão militar nos levaria até uma vila tibetana, percebi que os caras haviam deixado nosso lixo para trás. Não somente nosso lixo, mas todo o lixo! Somente foram entregues às autoridades chinesas, como contrapartida para receber de volta a “taxa de lixo” de 500 dólares, paga no início da expedição, os cartuchos de gás vazios. Ou seja, essa é a prática usual de todas as expedições comerciais no lado tibetano!
Também vi um desrespeito muito grande com os trabalhadores tibetanos que fazem o serviço pesado, principalmente com os carregadores que transportam os equipamentos do acampamento base avançado até o C1. Nenhuma empresa fornece roupas adequadas e, ao contrário dos sherpas que já possuem condições melhores de trabalho, além de serem mais valorizados, os tibetanos passam toda a temporada em condições precárias e degradantes. Creio que todos os ocidentais que ali estão têm culpa nessa situação, tanto pela ganância das empresas, quanto pela indiferença de seus clientes, que só têm olhos para o cume e não se preocupam com o que acontece ao seu redor.
E ainda tem a questão do desrespeito à ética do montanhismo enquanto esporte. Os métodos usados por lá ignoram totalmente o Código de Ética da UIAA (Union Internationale des Associations D’Alpinisme) e a Declaração de Tirol sobre a Boa Prática nos Esportes de Montanha. Não vou levantar a polêmica sobre o uso de oxigênio suplementar que, justamente por ser uma questão polêmica, gera muita discussão acalorada. Os deslizes éticos, nesse caso, estão na confusão gerada, quando se usa oxigênio em uma ascensão no Himalaia, entre mérito pessoal e mérito esportivo. Eu vejo as expedições comerciais como uma possibilidade das pessoas viabilizarem seus projetos pessoais, cujos objetivos, por serem pessoais, não deveriam ser discutidos nem contestados. Ninguém deveria duvidar do mérito pessoal de quem alcança um cume, com ou sem oxigênio. O problema é quando as pessoas tentam auferir um mérito esportivo que vai muito além dos méritos pessoais, aproveitando-se do desconhecimento da mídia não especializada e do grande público…
Tudo isso me desanima um pouco a voltar em rotas tão exploradas comercialmente, prefiro montanhas mais isoladas e desertas. Mas acho que estes problemas não são tão difíceis de resolver, bastaria mais respeito e menos ganância. E também existem outros 8000 m menos frequentados, além do Himalaia apresentar infinitas possibilidades, só é preciso pesquisar e ter criatividade para buscar novos desafios. Se eu pudesse estaria todos os anos por lá.
AM: , Com aparentemente uma aclimatação tão rápida em montanhas andinas, você acha que conseguiria subir o Everest sem oxigênio?
MD: O Everest sem oxigênio é um assunto sério, muito sério mesmo e, sinceramente, não sei se estou à altura de tamanho desafio. Mas só vou saber disso tentando e quero fazer a tentativa da melhor maneira possível. Por isso devo fazer alguma coisa no Himalaia antes, para testar algumas estratégias. A aclimatação rápida ajuda, mas não sei se será suficiente. O princípio básico por trás da estratégia geral que estou elaborando para o Himalaia é agilizar a montagem dos acampamentos avançados, aproveitando minha facilidade para atingir altitudes superiores a 6500 m em pouco tempo. Isso me permitiria, seguindo os padrões convencionais de aclimatação, passar, o quanto antes, algumas noites em altitudes elevadas (o Anatoli Boukreev defendia, por exemplo, que quem vai fazer o Everest sem oxigênio tem que dormir pelo menos uma noite acima dos 8000 m), e ter tempo suficiente para descansar no acampamento base, aguardando uma janela de bom tempo para tentar o cume.
AM: , Qual será sua próxima escalada?
MD: Bem, atualmente estou fazendo um curso na Escuela de Guías de Alta Montaña de Mendoza e, nos próximos três meses, já temos algumas práticas agendadas por lá, mas não sei ao certo quais montanhas iremos subir, provavelmente alguns cerros na região de Vallecitos e no chamado Corredor Andino que leva até o Chile. E em janeiro estarei no Aconcagua guiando uma expedição comercial.
Estou decidindo sobre minha volta ao Himalaia em 2012, que ocorrerá, provavelmente, na pós-monção (em setembro e outubro). Entre fevereiro e agosto, portanto, deverei fazer alguma outra montanha no estilo “rápido e leve”, espero ter novidades em breve.