2ª parte: Chegando aos pés do gigante
Desse ponto em diante o trajeto muda drasticamente, e para pior: a inclinação aumenta significativamente e os zigue-zagues praticamente desaparecem, sendo substituídos por rampas de pedras soltas e areia fofa que fazem da subida um verdadeiro martírio. As pedras estavam molhadas e começou a acumular um pouco de neve, dificultando ainda mais o que já era bastante duro. A trilha sonora ajudava a realçar o lado sinistro do cenário, com o barulho de seguidas avalanches ecoando pelos vales.
Fui ganhando terreno lentamente e percebi que estava me encaminhando para a parte mais estreita da aresta que me levaria ao passo. Eu comecei a subir à direita da aresta e, em mais uma hora de esforço extremo, a trilha passou para o lado esquerdo. As nuvens baixas sempre me davam a impressão de que estava chegando ao passo, mas era pura ilusão: o topo de uma rampa me levava a outra tão inclinada quanto à anterior. A nevasca não dava sinais de melhora e, finalmente, avistei uma passagem estreita mais acima que parecia ser o topo da aresta. Já era cinco horas da tarde e, apesar de ter mais 4 horas de luz, estava preocupado se encontraria um lugar plano para armar a barraca. Queria fazer isso o quanto antes, pois estava muito cansado e o tempo bastante feio. O ideal seria acampar próximo do passo e não ter que entrar na outra aresta, que me conduziria até o glaciar do Marmolejo, pois isso significaria novas subidas sem a certeza de quando encontraria um lugar plano. Quando alcancei a passagem que havia avistado, respirei aliviado: estava no passo. Incrível como alguém conseguiu descobrir essa brecha na montanha para cruzá-la para o outro lado! No meio das nuvens um grande abismo se anunciou na vertente oposta e percebi a trilha descendo para o norte em direção ao vale do rio Yeso. Mas o melhor de tudo foi ter avistado, uns 20 ou 30 m mais abaixo, na encosta, uma pequena plataforma. Já tinha onde colocar minha barraca.
Desci no meio das pedras cobertas de neve e alcancei a plataforma. Parecia feita sob medida, totalmente plana e do tamanho exato da barraca. As pedras me ofereciam um suporte perfeito e, rapidamente, já estava com o acampamento armado. O problema foi entrar na barraca e colocar as coisas lá dentro. Nevava e ventava bastante e foi difícil não molhar o interior. Pelo menos lá dentro estava bem quente e abrigado, é o que eu chamo de minha “ilha de conforto”, onde tenho roupas limpas e secas, um saco de dormir convidativo, comida, telefone (satelital) para falar com quem quiser e diversão (música e um livro), isolando-me das forças da natureza que imperam do lado de fora. Tirei minha toalha da
mochila, sequei tudo como pude e fui providenciar a água. Buscar neve não seria problema, já que havia muitos centímetros acumulados ao redor da barraca e das pedras. Com pouco esforço, enchi um saco plástico com neve suficiente para uns 3 litros de água.
Após uma refeição liofilizada que me pareceu excelente e de me hidratar bastante, peguei o telefone satelital e resolvi ligar para a Giselle no Brasil, para tentar obter uma previsão de tempo atualizada. Estávamos na segunda-feira e o prognóstico que eu havia conseguido uns dias antes dizia que na quarta-feira haveria uma boa janela para tentar o cume, com céu aberto e ventos suaves. A partir de quinta-feira o tempo, supostamente, permaneceria estável, mas os ventos aumentariam progressivamente. O problema seria me posicionar na montanha em um ponto adequado para poder fazer o ataque ao cume na quarta. Do jeito que estava nevando havia o risco de não conseguir desmontar o acampamento para continuar subindo, no dia seguinte. A neve acumulada também poderia ser um problema sério.
Aproveitando-me do conforto tecnológico trazido pela comunicação satelital, conversei com a Giselle e ela ficou de buscar a previsão. Meia hora depois liguei novamente e ela já tinha o prognóstico em mãos: teríamos mais um dia de nevasca (era esperado mais uns 21 cm de precipitação) e, no final da tarde de terça-feira, o tempo iria melhorar, sendo que a quarta-feira seria de sol e sem ventos. Era pagar para ver! Li por algum tempo e dormi com o barulho da neve caindo no teto da barraca.
O dia amanheceu coberto por uma fina camada de nuvens que deixava, de tempos em tempos, o céu azul mostrar sua cara. Talvez a previsão de nevasca não se concretizasse, pensei otimista. Aproveitei a melhora aparente do clima para desmontar minha barraca e preparar minha
mochila para subir em direção ao glaciar. Mas foi uma pequena e pouco duradoura trégua: quando coloquei a mochila nas costas, nuvens densas e baixas já tomavam conta da montanha e a trilha que subia pela aresta desaparecia envolta no branco da paisagem. Subi pelas pedras, alcancei a trilha e fui em direção da aresta. Com a visibilidade bastante prejudicada, esse trecho dava a impressão de ser bastante exposto, com alguns passos de escalada se anunciando por debaixo da neblina. Somente na volta, com o tempo aberto, pude perceber que o grau de exposição não era assim tão alto, bastando apenas certo cuidado para vencer alguns degraus de pedra que me levaram até uma área plana e com bastante neve. Se no dia anterior eu tivesse continuado a subir por mais vinte minutos, teria encontrado um lugar muito mais adequado para acampar, mas não havia como adivinhar!
Nesse ponto começou novamente a nevar e não havia nenhum sinal de trilha, já que estava tudo coberto de branco. Deixei minha mochila em uma pedra e fui investigar o caminho, encontrando os totens que me indicavam a direção a seguir. Continuei a subir e vislumbrei, à direita, quando as nuvens aos meus pés se abriam momentaneamente, alguns abismos profundos. Percebi que estava caminhando por cima dos imensos paredões de rocha da quebrada do Estero Marmolejo, pelos quais eu havia passado antes de chegar ao acampamento base. Esses paredões eram formados por várias fendas verticais de onde, ocasionalmente, se precipitavam finas cascatas de gelo. Chegando a uns 4400 m de altitude encontrei água corrente por debaixo das pedras e da neve: seguramente a nascente de um daqueles afluentes do Estero Marmolejo que eu havia cruzado no dia anterior, lá embaixo no vale, e que descia as encostas da montanha escavando essas impressionantes fendas na rocha. Nas imediações havia excelentes pontos para acampar, mas eu queria atingir um ponto mais alto, para diminuir o desnível do ataque ao cume. Quando cheguei a 4600 m encontrei outra área plana bastante abrigada atrás de uma pedra, com espaço para pelo menos duas barracas. Logo à frente uma forte subida se anunciava e desconfiei que esse talvez fosse o último local adequado para se acampar, antes de chegar ao acampamento avançado localizado na base do glaciar, a aproximadamente 5000 m.
A nevasca havia parado e resolvi deixar a mochila nesse local para investigar a área. Subi por uma morena coberta de neve e, à minha direita, surgiu um imenso campo de penitentes, que formava a parte baixa do glaciar do Marmolejo. Continuei subindo, atravessei um canal congelado por entre os penitentes e cheguei à base da parede que havia avistado de longe. Era uma subida bastante forte e íngreme e pensei que não valeria a pena levar todo o peso para cima. O ideal era acampar por ali mesmo, aproveitando o restante do dia para derreter neve, me hidratar e fazer os preparativos para tentar o cume no dia seguinte. Ainda era cedo, pouco mais de 14:00, e teria bastante tempo para descansar. Gastei uns quinze minutos para regressar onde havia deixado minha mochila e foi só pegar a barraca que começou a nevar novamente. Nevar e ventar… E como eu estava próximo do glaciar, o vento rapidamente se converteu em um “viento blanco”, me jogando pedaços de gelo que doíam como pequenas agulhas espetadas por cima da roupa. Mais uma vez tive que armar a barraca em condições precárias. Fiz tudo o mais rápido possível, tomando a precaução de deixar a barraca bem firme para resistir à ventania. Mais uma vez minha “ilha de conforto” estava montada e me meti em seu interior, para relaxar um pouco.
O restante do dia nevou muito e a neve, rapidamente, se acumulou ao redor da barraca. Se por um lado isso facilitava o trabalho de produzir água, por outro me deixava preocupado em relação às condições que eu encontraria no glaciar, já que teria que vencer 1500 m de desnível até o cume, tarefa nada fácil se houvesse muita neve fresca depositada. Por volta das 19:00 liguei para a Giselle que, após consultar a previsão do tempo, me disse que à noite realmente iria parar de nevar e que o dia seguinte seria ensolarado e com ventos fracos. A princípio não acreditei e, enquanto fazia algumas piadinhas em relação ao clima, senti um mormaço aquecendo a barraca. Abri a porta dianteira e, para minha surpresa, o céu estava se abrindo e o sol começando a se impor. Incrível, o prognóstico da Giselle havia se confirmado enquanto eu ainda estava com ela ao telefone.
Logo depois preparei minha refeição e algo terrível aconteceu: fui ligar meu MP3 enquanto arrumava a mochila que usaria no ataque ao cume e o mesmo não funcionou. Constatei que o botão de “lock” havia emperrado. O bendito botão se movia, mas provavelmente havia se desconectado do circuito e não conseguia destravar o aparelho, que com o “lock” ativado não funciona. Ficar sem música na barraca, para mim, é pior do que ficar sem água. Interrompi os preparativos, peguei meu canivete, abri o MP3 e “passei a faca” no circuito integrado, no local onde imaginei que ficava o travamento do aparelho. E não é que funcionou, depois de várias tentativas? Terminei de separar tudo o que necessitaria no dia seguinte ao som de Victor Jara, coloquei o relógio para despertar às 03:45 e entrei no saco de dormir, sentindo não mais o barulho da chuva ou da neve, mas o leve calor do sol do fim do dia que, finalmente, havia vencido a batalha contra o mau tempo. Além, é claro, das notas musicais do MP3 ressuscitado. Mal sabia o que o dia seguinte reservaria para mim. Mas isso é outra história, até a próxima e um grande abraço…