Mera Peak – Parte 2

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Terça- feira é meu último dia em Kathmandu. Assim, quase tenho um piti quando acordo e observo que as pilhas, que comprara no dia anterior e pusera no carregador de bateria ontem à noite, continuam descarregadas.


Veja a parte 1 do relato

Veja o Mera Peak no Google Earth atraés do Rumos!

Entro numa loja da Fuji e peço pra fazer um teste com um carregador. Quero descartar a possibilidade de o meu estar com defeito. Está bom. Devem então ser as pilhas. Um dos balconistas diz que as que comprei são ruins. Fico danada. Era só o que me faltava ter comprado pilhas (e comprei um monte delas!!) defeituosas na véspera de meu trekking cuja duração será de 14 dias!! Saio dali em disparada, zanzando pelas vielas da Thamel, na tentativa de localizar a loja onde comprara as pilhas.

Depois de muita procura, suando por todos os poros, finalmente, localizo-a. O vendedor se lembra de mim, ainda bem! Sou, então, obrigada a discutir um pouco com ele, só um pouquinho, conseguindo, graças a deus, trocá-las por outras duma marca melhor. Mas pensam vocês que as coisas se acalmaram? Só não! O problema agora é com meus dois cartões de crédito. Ambos são recusados nos caixas eletrônicos. Em todos os que há no bairro!! Como ainda tenho umas rupias, resolvo enfrentar o problema após minha visita a Swayambhunath, conhecida, vulgarmente, como Monkey Temple, em razão da quantidade de símios que vivem nos jardins desse santuário budista.

Pego um riquixá não sem antes barganhar com o motora que pede 1.000 rps. Faço que vou embora, ele vem atrás de mim e pergunta quanto eu quero pagar. Digo que só tenho 500 rps. Ele faz uma pausa rápida e aceita. Graças ao intenso exercício de pedaladas diárias, o homem, baixinho e forte, exibe uma bunda arrebitada de meter inveja em muita mulata brasileira. Extremamente ágil, conduz-me através das apinhadas ruas. Entrevejo açougues que expõem seus produtos – pedaços vermelhos de carne – sobre mesas nas calçadas. Meu motorista buzina frequentemente. Sua buzina é uma gambiarra das mais tri: na boca dum frasco de plástico foi colocada a ponta duma corneta infantil. E seu fom fom abre alas mesmo, alertando veículos e pessoas que nós queremos passar.

Atravessamos o rio Bagmati de cujo leito, mirrado de água, exsurge uma quantidade de dejetos de toda espécie. À beira duma avenida, um lixão exala um fedor insuportável. Não à-toa, vejo muito nepaleses usando máscaras cirúrgicas que os protegem não só dos altos índices de poluição como também do mau cheiro.

O movimento do tráfego assemelha-se aos fluxos das marés: há momentos em que as ruas estão tranquilas, fáceis de transitar. Em outros, pintam congestionamentos aparentemente insolúveis. De repente, o que parece impossível acontece: os carros andam e as ruas adquirem uma feição pacata de cidade interiorana. Ao final da breve viagem, uma lomba acentuada, que conduz à colina onde se situa Swayambhunath, faz com que o motora desça da bicicleta levando o riquixá no muque. Aqui, riquixá não têm marcha, não! Avisto, sobressaindo contra o azul do céu uma enorme cúpula dourada assentada sobre um gigantesco domo branco. Quando chegamos na entrada do templo, o condutor do riquixá resolve ir junto. Como mal fala ou entende inglês, sua atuação limita-se apenas em apontar a direção por onde devo seguir. Já dentro dos jardins do santuário, um grupo de macacos quase pula em cima de mim, tentando afanar os amendoins que trago na mão. O guia, pra quem eu comprara também um saquinho, oferece alguns grãos que os macacos comem avidamente. Não tarda muito, avança, majestoso, escorraçando o bando o macho alfa. Guinchos dramáticos ecoam no ar. A impressão que se tem é que a macacada está sendo cruelmente atacada, e não espoliada de restos de comida.

Tenho pela frente uma escadaria com 365 degraus cuja inclinação me surpreende. Acentuadíssima, é bem fatigante. Além da stupa principal onde foram gravados os olhos de Buda na parte cúbica de sua colossal estrutura, espalham-se na grande área arborizada dezenas de outros templos de variados tamanhos e formatos. Swayambhunath localiza-se no topo duma colina, ensejando uma excelente visão de Kathmandu. Abraçada por montanhas verdejantes que formam um cordão circular ao seu redor, a cidade encontra-se encravada num vale situado a 1.400 m acima do nível do mar. Velas acesas diante de rodas metálicas de oração e tilintar de sininhos. É um mundo de crença e fé deveras mais autêntico do que aquele professado no ocidente. A atmosfera exala uma energia impressionante, sem sombra de dúvida.

Num pequeno lago, moedas são jogadas na base de cimento onde jaz a estátua duma deidade feminina. Para tanto, compram-se moedas, já em desuso, de vendedores especializados neste tipo de comércio. Quando as moedas não caem no lago, e sim na base de cimento, espoucam aplausos saudando a boa mira do indivíduo. E como não podia deixar de ser, muito artesanato à venda. Depois de três dias de contínua oferta de mercadorias, começo a cansar. Embora sejam muito bonitos, coloridos e cheios de detalhes exuberantes, os objetos são sempre os mesmos, exibindo apenas ligeiras variações. É muita coisa pra ver, se bobear dá pra ficar uma manhã ou tarde, curtindo não só os templos como as pessoas que por aqui transitam. Afora a presença constante dos macacos que mais uma vez me surpreendem com outra cena muito legal. Recostada numa árvore, uma macaca cata piolhos num filhote enquanto um outro mama numa tetinha vermelha que mais parece uma verruguinha de tão pequena que é. Meu guia-motora resolve dar por encerrado nosso tour e me conduz até a saída sem maiores delongas.

De volta à Thamel, escolho pra almoçar, embora já sejam 4 da tarde, um restaurante com um amplo páteo cheio de árvores frondosas e mesas ao ar livre. Escolho momo de espinafre com cogumelos. Essa comida típica nepalesa consiste numa trouxinha de massa cozida no vapor ou frita, recheada com verduras ou carne. Come-se o petisco mergulhando-o num molho vermelho bem picante. Dum modo geral, a comida nepalesa é muiiitooo apimentada. Quando retorno ao hotel, tento novamente retirar dinheiro e nada. Todos os caixas eletrônicos continuam recusando meu cartão. Telefono pro Brasil. Linha ocupada. Um dos recepcionistas, homem deveras solícito, me leva de moto até um caixa eletrônico distante do hotel onde, segundo ele, eu conseguirei sacar dinheiro. E lá vamos nós pelas ruas de Kathmandu, enfrentando o rush das 7 da noite. Ali na boleia da moto, encaro o trânsito, mais uma vez, não na condição de pedestre, mas de passageira. Dessa feita, na carona duma moto. Constato mais uma vez quão hábeis são os motoristas nepaleses. Com segurança, agilidade e muita paciência, avançam, abrindo caminho na maré de carros, motos e bicis. De nada adianta a boa vontade do empregado do hotel. Ambos os cartões são mais uma vez rejeitados. Nem esquento a cabeça. Resolvo que amanhã vou pedir a Sunir dinheiro emprestado. E já curtindo a pequena aventura noturna, lamento que o retorno seja tão rápido. Descubro mais tarde, conversando com outra hóspede, uma norueguesa, que meus cartões tinham de ser desbloqueados pra transações no exterior. Mas, bah, como sou pateta!!

Sobrevoando o Himalaia

Acordo na quarta-feira, lépida e fagueira. Hoje tem início minha pernada de 14 dias até o Mera Peak. Acho legal, depois do Huayna Potosí, tentar outro seis mil, ao invés dos tradicionais trekkings até os acampamentos-base do Everest e Annapurna, embora essas caminhadas contemplem cenários espetaculares.

A bem da verdade, eu queria mesmo fazer – quando comecei a planejar minhas férias – o trekking até o Kangchenjunga, o terceiro maior oito mil do planeta. Mais precisamente, queria conhecer os dois acampamentos-bases, localizados nas suas faces norte e sul. Contudo, o tempo exigido superava em muito o período de 20 dias que desfruto de férias. Assim estou indo agora de manhã pro aeroporto pegar um avião até Lukla. Considerada pelos padrões nepaleses uma town, finca-se esta minicidade num platô, a 2.800 m acima do nível do mar, distante 135 km de Kathmandu.

É porta de entrada não só pro Mera Peak como pra famosa pernada ao campo-base do Everest. Duas são as opções pra se alcançá-la: seja sobrevoando o Himalaia, num vôo que dura 45 minutos, seja sacolejando num ônibus durante 10 horas até Jiri. E a partir desse vilarejo, encarar uma pernada de 7 dias, num sobe e desce encostas de montanhas e vales profundos. Quem fez, garante que é ISO 10.000, ou seja, megasupertri. Opto – infelizmente, não disponho do luxo de tanto tempo – pelo avião. O pequeno aeroporto de onde partem os vôos domésticos localiza-se ao lado do Aeroporto Internacional de Tribhuvan.

A sala de espera está lotada com dezenas de expedições de trekkers e escaladores. Uma excitação gostosa paira no ar. Pra galera montanhista as perspectivas que o Himalaia oferece são estonteantes. Embarcamos num bimotor com assentos pra 20 passageiros, todos ocupados. Essa época do ano, conhecida como pós-monção, é também muito procurada pelos turistas. Vou sentada no lado esquerdo da pequena aeronave, o que me garante uma estupenda visão daquela enfiada de montanhas nevadas que é o Himalaia. Dia lindo. Nuvens fofas pairam sobre os picos sem contudo obnubilá-los de todo. O nuvaredo é mais um adereço no soberbo cenário.

Embaixo, lá embaixo, sulcam os verdejantes vales estreitos e sinuosos rios de águas azuis. Próximas às vilas, uma sucessão de terraços exibe caprichadas plantações de cereais e verduras. Estradinhas ziguezagueantes riscam cristas e flancos de montanhas. Meus deus, o Himalaia alberga centenas de Pequeños Alpamayos e dezenas de Aconcáguas!! Nenhuma montanha igual à outra. Devido à baixa altura em que voa o aeroplano, distingo, nos arredores dos vilarejos, cúpulas douradas de brancas stupas. Lukla já é visível com suas casas de pedra e jardins floridos. O vôo é emocionante. Peninha que tenha durado apenas 45 minutos!!

Voar no Nepal é uma roleta russa. Ainda mais quando se trata de aterrissagens em Lukla. Considerando que a pista do aeroporto Tenzing-Hillary tem uma inclinação de 12º e extensão de apenas 500 m, com uma cabeceira de pista quase tocando a encosta de uma montanha, chegar incólume aqui deve-se à habilidade do piloto, às boas condições atmosféricas e a um tantinho de sorte. Não há só motoristas braços no Nepal, pilotos, também, o são, e como! E o que é aquela saída quando o avião decola? Acho até mais perigosa que a aterrissagem porque a curta pista desemboca num precipício. Pode crer, voar, no Nepal, exige certo sangue frio. Nosso vôo, contudo, foi tranqüilo.

Desembarco em Lukla, incólume e feliz. Na frente do aeroporto, uma área de camping. Ocupando algumas barracas, turistas esperam seus vôos pra Kathmandu, enquanto outros aguardam o momento de partirem rumo aos roteiros de suas preferências. Kongde Peak impera na paisagem com seu cume nevado. Não tem como não prestar atenção nesse cinco mil. É emblemático em Lukla. Almoço, no Himalaya Lodge, lugar limpo e aconchegante, um caldo com legumes e verduras, bem apimentado. Uma delícia. Enfeitam os parapeitos das janelas do restaurante vasos com gerânios. Panelas de cobre com frisos dourados ao estilo sherpa ocupam toda uma estante em frente às mesas.

Entrevejo a impecável cozinha que, segundo Carol, é uma exceção ao desleixo geral. Forram os compridos bancos grossos tapetes coloridos. Pregadas nas paredes bandeiras de diversos países e fotografias de montanhas e pessoas. Saímos de Lukla logo após o almoço, enveredando numa direção contrária à da trilha que leva ao acampamento-base do Everest, ou seja, perseguindo o rumo leste. Embora o desnível a ser percorrido não ultrapasse 160 m, a trilha é uma subida puxada em meio a um bosque de rododendros. De sua opulência estival, uma herança modesta: apenas folhas secas forram o chão. Das prímulas restam algumas murchas e amarelecidas folhas. Convenhamos, não dá pra exigir muito quando se está em pleno outono nepalês. Mas que deve ser lindo na primavera com tudo florido, deve!

Embora seja o país crivado de altas montanhas, predomina, em uma larga extensão de seu território, uma generosa vegetação. Ah, conheço além dos yaks cuja fêmea atende pelo nome de nak (nhac, hehe) um bando de dzopkyos (cruza de bovino com yak). Mascam com aquela indiferença típica da raça os últimos pastos verdejantes da estação. Cruzo duas vezes um rio de águas verdes e límpidas. Na primeira travessia, a ponte são as próprias pedras que atulham seu leito. Já na seguinte, tenho que me equilibrar sobre duas toras de madeira dispostas paralelamente.

Ao longo da estradinha, crianças de carinha suja espiam curiosas através dos batentes das portas a nossa passagem. Basta eu saudá-las com o tradicional namastê pra escutar em resposta um coro infantil de namastê. Tudo de bom esse povo!! Identifico-me com eles. São alegres. E gentis. Chegamos em Thukding às 16 e 10. Nem se pode dizer que as quatro casas ali existentes formam uma vila. É um lugar de passagem pra quem quer evitar o pernoite em Chutanga, outro paradouro distante 20 minutos. Belas montanhas rodeiam o lugar, destacando-se Charpate Himal e Kalo Himal, infelizmente encobertas por nuvens.

Ao anoitecer, como num passe de mágica, o nevoeiro dispersa e os dois picos, desnudos de glaciares, revelam a neutra coloração acinzentada de suas rochas sedimentares. Na frente de minha barraca, a oeste, vários sete mil cobertos de neve. Destaca-se dentre eles o lindo Numbur Himal. Servem o jantar, à francesa, dois sherpas. No menu, sopa, galinha refogada, arroz, couve-flor com curry e brócolis. Não dou nota 10 porque a sobremesa é uma decepcionante salada de frutas……enlatada. Durante a refeição explico que o fato de não dominar o idioma inglês faz com que eu me sinta num mundo paralelo. Eu aqui, vocês aí. Sei lá por que os nepaleses se dobram de tanto rir. Deve ser porque eles também se identificam comigo. Faz parte do staff oito porters, responsáveis pelo carregamento de 250 kg entre equipamentos e comida, um cozinheiro, um assistente de cozinheiro (sua função é cozinhar pro staff), um climbing guide e o trekking guide, líder do grupo.

Só o trekking guide come com os clientes. É tudo muito hierarquizado, putz grila!! Quando saio da cozinha, uma tosca construção de pedra coberta por um toldo azul de lona, um festival de estrelas ilumina o céu. Já deitada na barraca, escuto risadas vindas da tea house além da conversa de dois porters enquanto lavam a louça. E o rumorejar forte daquele rio que eu cruzara durante a vinda até aqui. Ah, sabe o que significa Himal? Mon-ta-nha, meu caro Watson!!

Continua…

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