Leia a segunda parte do relato
Veja o Mera Peak no Google Earth atraés do Rumos!
Pego meu kit de remédios e ingiro algumas pílulas além de pingar soro em ambas narinas. Porém depois que pego no sono só acordo às 6 da manhã. Quando o porter me entrega a xícara de chá às 6 e 30 (antes do café da manhã, servem um chá e trazem uma bacia com água quente pra lavar o rosto), vejo um céu azul clarinho sem quaisquer pingos de nuvens. E posso, então, curtir, à esquerda de Kalo Himal ontem era impossível a visualização devido ao espesso nevoeiro -, a presença de outras duas montanhas, igualmente, despidas de glaciares.
Os sintomas de resfriada são claros: garganta arranhada e cabeça latejando um pouco. Do nariz, agora, desentupido escorre um muco clarinho e ralo. Carol diz que são coisas da altitude e me oferece uma cartela com pastilhas de limão. Chupo uma e sinto a garganta mais aliviada da sensação de dor. Impossível comer o café da manhã. Não por causa da garganta, absolutamente! É porque servem um pequeno almoço onde panquecas e omeletes (até aí tudo bem) convivem com alfaces, vagens, tomates e batatas….só não! Escolho uma panqueca que recheio com geléia. E bebo leite com chocolate Cadbury. Tudo de bom!
Deixamos Thukding às 9 e 45. Muito íngreme, a trilha atravessa os mesmos bosques de rododendros do dia anterior. À medida que nos aproximamos de Kharki Tanga, situada a 3.850 m, a exuberante e verde feição da paisagem é substituída por um cenário mais circunspecto. Charpate e Kalo Himal, onipresentes durante todo o caminho, mostram outras de suas faces quando chegamos à pequena vila Kharki Tanga às 12 e 30. Em cada vila, há, no mínimo, uma tea house. E o uso desse estabelecimento varia conforme a opção de trekking contratado. A nossa expedição usa o espaço apenas como refeitório, já que a comida é preparada por Nara, o cozinheiro da expedição, uma segunda modalidade fornece refeições ao passo que a terceira inclui não só refeições como hospedagem.
A proprietária da tea house, onde serão feitas nossas refeições, é uma sherpa de 53 anos, mãe duma guria de 12 anos com acentuado retardo mental. Bonitinha, não diz coisa com coisa. Adora repetir uma palavra que, pra mim, soa como terabou. Pergunto a Nima o que significa em nepali. Sua resposta: nothing. Coisa de doidinhos nepaleses! Durante o almoço essa guria faz tanto, tanto gritaredo (de nada adiantam as admoestações fracas – da mãe) que debandamos da tea house e vamos comer ao ar livre. Muito melhor saborear sem berros o excelente almoço preparado por Nara: salsichas, deliciosas batatas fritas (previamente cozidas), além duma torrada com queijo de yak e duas fatias de tomate. Do acampamento, vislumbro o Naulakh La, primeiro passo a ser cruzado, situado a 4.500m. Dá até pra enxergar as coloridas bandeirolas de oração budista tremulando ao vento.
Bandos de nuvens deslizam no azulão do céu pra lá e pra cá. Após o almoço, vou pra barraca escrever e ler um pouco. Tão quente aqui dentro que sou obrigada a ficar apenas de camiseta de manga curta. Às 3 da tarde, Nima me chama pra subirmos a íngreme e larga encosta de montanha que conduz ao Naulakh La. Vamos fazer uma caminhada de aclimatação até 4.100 m. Durante a subida, três mocinhas sherpas (nesta região predomina esta etnia) descem do passo com uma agilidade de cabritas. Segundo Nima, trabalham em outras vilas, retornando vez por outra a suas casas.
Sentados numa pedra, permanecemos no local durante 30 minutos, espaço de tempo suficiente pra que a cerração envolva o acampamento até então perfeitamente visível. Quando retornamos à vila, Nara avisa que está na hora do chá das cinco – servido, contudo, às 4 da tarde, hehe. A partir dessa hora, o sol vai sendo escondido pelas altas montanhas. E o frio começa a pegar motivo por que tomo o rumo de casa (minha barraca). Quero mais me abrigar no quentinho de meu saco de dormir. Agora, 17 horas, após um revigorante chocolate com biscoitos, já bem aquecidinha no interior de minha tenda, descanso e penso na vida. Tá tanto frio que desanimo de ler o livro do Ian Rankin antes da janta e visto minha jaqueta azul de plumas.
A maluquinha da aldeia, que veio atrás de mim, desfere chutinhos contra a lona da barraca. Quer entrar. Bem chatonilda essa guria! Ignoro-a até que ela se cansa e vai incomodar Nima e Carol na barraca deles. Ainda bem! Não há como não notar a quantidade de corvos que voam dum lado pro outro, numa busca diligente por restos de comida. Em contraponto ao seu coro desafinado, um trinar delicado de pequenos pássaros ecoa no ar. Ponho minha cara pra fora da barraca e constato que a neblina se escafedeu. Um realce só a paisagem. Em alguns picos, os reflexos dos últimos raios de sol poente os tingem duma cálida tonalidade amarelada, enquanto em outros incide uma discrição rosácea. Observo que as montanhas exibem, em regra, coloração acinzentada. Poucas são as rochas cuja cor é avermelhada. Há, entretanto, rochas bem escuras, roçando o preto. Reflito, no aconchego da barraca, que as trilhas são deveras árduas. De tirar o fôlego.
O ácido lático não dá moleza pros músculos, continuamente provocados durante a pesada atividade física. Este trekking nem se compara àqueles já percorridos nos Andes chilenos, argentinos, peruanos e bolivianos. Ah, que droga, começa a dar pinta uma leve dor de cabeça. Percebo que esta não é do resfriado e sim da altitude. Nem hesito em tomar um Tylenol DC. Quando saio da barraca pra jantar, um pouco mais de 18 horas, o cenário é de quase escuridão. Resta, pra não faltar com a verdade, um fugaz vestígio de claridade pros lados do ocidente. Durante a ceia escutamos música do aparelho de som que Carol trouxe.
Casada, três filhos adolescentes, marido 20 anos mais velho. Segundo ela, é seu melhor amigo. Contudo, o best friend não sabe que ela está tendo um caso com o trekking guide Nima. Ele, mais que apaixonado, está envaidecido por transar com uma mulher rica, loura e de olhos azuis. É um tampinha com dentes de coelho…..pufff. Quando retorno pra barraca após o jantar, o céu parece um coador, tão repleto se encontra de estrelas. Nem crocitar ou pipilar de aves ecoa no ar geladésimo e límpido da noite. Com certeza, estão recolhidos em seus ninhos. E eu também!!
Primeira visão do Mera Peak!
Hoje será um dia duro, o mais longo de todos, conforme o roteiro. Quatro passos serão enfrentados. Nenhum, porém, acima de 5.000. Saída de Kharki Tanga às 8 e 15. Embora belíssima a manhã, exibindo um céu azul imaculado, o frio faz doer mãos e pés. A encosta da montanha que conduz aos 4.500 m de Naulakh La, primeiro passo a ser cruzado, é deveras íngreme. Como nevou muito no final de outubro, o solo apresenta-se coberto por uma maciça quantidade de neve, inspirando cuidados especiais na caminhada. Tanto assim que perto do passo, os sherpas ancoraram, numa pedra, larga extensão de corda, pra servir de corrimão, já que o terreno se encontra bem escorregadio devido ao gelo. Apesar de pequenos degraus escavados na terra, a aclividade é acentuada. Pra mim e outros tantos turistas que levam mochilas leves nem tão perigoso é o ascenso. Já para os porters que carregam seus dokos (cestas feitas de bambu onde carregam os equipamentos e comidas das expedições) pejados de tralharedo, tanto o esforço de subida quanto o de descida envolve riscos. Um passo em falso, um escorregão, a queda será inevitável. E o sujeito rolará umas boas dezenas de metros ladeira abaixo com consequências provavelmente severas.
Vejo próximas, bem próximas, as coloridas bandeirolas de orações budistas sacudidas pelo vento. Escuto claramente vozes de turistas que me antecederam na chegada ao passo. Em pouco mais duma hora – o relógio marca 9 e 40 – estou apreciando a bela paisagem de cima do Naulakh La. Ao norte, a esplêndida paisagem nevada da fronteira com o Tibet permite avistar o sexto maior pico do planeta, o Cho Oyu, enquanto ao sul a paisagem é mais modesta com montanhas cobertas duma penugem verde. Embora o tempo de demora ao segundo passo seja mais curto que o do primeiro, o trajeto é enganador. Isso porque, quando se deixa Naulakh La, a pernada, inicialmente, é feita descendo um suave declive, sucedido daí sim, por outra subida bem puxada.
Após uma hora, sou novamente saudada por aquele extenso colar de bandeirolas budistas que sinalizam que já estou no topo dos 4.800 m do Chheter La. Ultrapassado este passo, há outro que nem se sente, tão fácil alcançá-lo. Só se sabe que se cruzou um passo por causa das indefectíveis bandeirolas budistas. E, então, a pernada prossegue lomba abaixo numa trilha de terra batida, pouco arenosa, e sem muito cascalho até a vila Chheterbu, já visível na metade da descida. Com não mais que meia dúzia de casinhotas de pedra, o lugarejo tem um único hotel, o Rocky Himalayan, cujas facilidades são anunciadas orgulhosamente numa placa colocada no lado externo do estabelecimento: Double rooms &, single rooms, dinning room with heater &, hot shower. Entro pra especular e observo que é o interior é limpo.
Encontro Nima e Carol já sentados sobre um plástico azul descansando. Almoçamos ao ar livre sob um céu poderosamente azul, desembaraçado de qualquer sombra de nuvens. Durante a refeição, avisto, Chheter Danda, este sim um passo de 5.100 m, situado a leste. Pra cruzá-lo teria sido necessário usar uma rota alternativa, preterida, no entanto, por Nima. Após Chheterbu, uma descida e nova subida até o 4º passo do dia. Nima e Carol, que largam sempre na frente, estão sentados no chão. Também descansando, uma loira grandalhona que almoçara também em Chheterbu. Curiosa, não resisto e lasco o clássico approach where are you from? Simpática, a mulher, cujo nome é Daniela, revela ser alemã. Refeitos, prosseguimos a caminhada, enveredando por uma trilha cuja profusão de pequenos arbustos vermelho-fogo dão um toque vivaz à paisagem monocromática das encostas escuras das montanhas. Dentre as flores, destacam-se as azuladas gencianas himalaias. E duma flor com pétalas rígidas, cuja coloração tende ao marrom-avermelhado, exala um perfume agradabilíssimo.
Nova parada, dessa feita num mirador que permite avistar a face sudoeste do Mera Peak. Uma pena que haja uma névoa encobrindo parcialmente seus três cumes, o norte, o central e o sul. Nima explica que vamos proceder ao ataque por sua face nordeste, ou seja, até alcancá-la, daremos uma volta de praticamente 180º ao redor da montanha. Do outro lado do vale, visível uma trilha alternativa que conduz também ao Mera Peak. É um trajeto mais longo, usado pra quem prefere uma melhor aclimatação já que inclui 4 dias a mais. Percebo, ainda, algumas vilas espalhadas tanto nas encostas das montanhas quanto nos fundos vales situados abaixo de onde estamos. Do mirador até Thaktor, lugar onde será montado nosso acampamento, uma descida que dura uma hora, percorrendo um bosque de rododendros. Nara diz que na primavera tudo se colore de branco, rosa e vermelho. Deve ser deslumbrante! Muito lixo jogado na trilha cujos principais responsáveis são os próprios trabalhadores nepaleses, segundo comenta Nima. No Paquistão, observei idêntica situação: porters jogando toda a espécie de detritos ao longo da trilha até o Baltoro Glaciar. Lamentável a ausência de educação ambiental de que carece essa gente. Afinal, é gol contra a bela natureza de seus países.
Foi realmente um longo dia de pernada. Meu relógio marca 16 e 40 quando chego em Thaktor, situada a 3.500 m. Duas tea houses e três ou quatro casas fazem parte desta comunidade. O lugar é lindo. Encravado num bosque de pinheiros, tem à frente o Mera Peak (uma pena que continue encoberto!) e outras montanhas ao redor. Audível o rumorejar do Chheter Khola (khola significa rio em nepalês), que flui 20 m abaixo do terraço onde foi montada minha barraca. A janta é tudo de bom: sopa com pipocas (bem legal essa de colocar pipoca dentro da sopa, fica trilegal), pizza, momo e um pão bem fininho, feito de farinha de abóbora, apimentado, chamado papardom (de origem indiana). Tudo muito calórico mas necessário. Quando saio do refeitório, sou brindada com um céu pra lá de estrelado.
E me ponho a refletir que, durante esses três dias de trekking, tenho sido assaltada por sentimentos conflitantes. Se não sou velha demais pro montanhismo. Tipo forçando a barra, numa trip de reviver a juventude perdida, à época, bem mal aproveitada. Ontem, primeira vez desde que iniciei a viajar e minhas viagens começaram em 2003 senti falta dalgumas pessoas. Poxa, saudades depois duma semana longe de casa soa deveras piegas. Detesto sentimentalismo barato, sem causa forte! Tais pensamentos desconfortáveis surgem, entretanto, quando estou sozinha, antes de dormir. De muito mal gosto esse modo de contar carneirinhos pra embalar o sono! É sinal de que estou ficando velha mesmo? Quero dizer, de cabeça, porque é evidente que, fisicamente, não sou mais nenhuma garotinha. Já ultrapassei os cinqüenta há muito! E uma estrela cadente risca o céu perdendo-se atrás das copas frondosas das árvores. É o que basta pra me distrair e me por em outra vibe!