Veja o Mera Peak no Google Earth atraés do Rumos!
Agasalho-me adequadamente pois, sem sombra de dúvida, quando ingressarmos no glaciar Mera, enfrentarei temperaturas negativas. Pasang será meu companheiro, ao passo que Nima guiará Carol. Ultrapassado o breve trecho rochoso que liga o acampamento-base ao glaciar, calço os crampons, e, ligada umbilicalmente a Pasang, agora, sim, guiando adiante de mim, iniciamos, às 2 e 15, o ataque ao cume do Mera Peak. Trata-se duma ladeira suave, se comparada à do último passo, cuja inclinação não ultrapassa os 20º.
Na neve bem consolidada, distingo perfeitamente o trilho formado pelos pés de trocentos turistas e porters que aqui já estiveram. Dessa vez, Nima e Carol seguem atrás. Sei lá por que meti na cabeça que pararíamos no acampamento-alto e lá descansaríamos, motivo pelo qual fico cuidando as tais rochas desnudas de neve que avistei de Khare, atrás das quais o acampamento-alto se localiza. Caminhamos, caminhamos, e nada de chegarmos aos 5.800 do high camp. Há muito as tais rochas, aliás as únicas rochas não cobertas de neve num raio de 5 km, ficaram pra trás. E nada de pararmos. Questiono Pasang e o sherpa informa que iremos direto pro cume do Mera. Suspiro de desânimo. Vez por outra, piscam luzes na escuridão da noite: são de montanhistas que preferiram dormir no acampamento-alto de modo que devem estar uns 200 m à nossa frente. Paro a cada 20 metros percorridos a fim de retomar o fôlego. Começo a me sentir deveras cansada. Meus pés, geladésimos, me fazem entrar numa nóia de que vou ter frostbite nos membros inferiores. Por segundos, surge a abominável imagem do resultado implacável do que o frio extremo faz dos dedos dos pés e das mãos: inúteis frangalhos pretos e necrosados. E afasto tão fúnebre e virtual imagem.
O fato é que isso vai enfraquecendo meu ânimo, alterando meu psicológico duma forma tal que o cansaço que vinha sentindo se transforma em esgotamento físico. Respiro fundo e dou mais um passo, outro e mais outro. É grande o esforço. Quando atinjo os 6.100 m, percebo que não conseguirei mais avançar. Só se fizer um esforço sobre humano. E, francamente, não tenho vocação pra suportar o que esse dispêndio de energia implicará de sofrimento. Só de imaginar, quase surto!! Toda minha gana de alcançar o cume do Mera se esfumou na noite escura que nem breu e gelada que nem câmara fria de açougue. Tenho apenas uma aspiração: retornar ao acampamento-base, pro conforto de minha barraca e entrar dentro de meu maravilhosamente aquecido saco de dormir. E tal desejo não pára de martelar continuamente minha cabeça.
A pernada agora assume feição de pesadelo. Es-tou e- xaus- ta, es-go-ta-da!! Grito pra chamar a atenção de Pasang e digo-lhe que não quero continuar. Nima e Carol, que já nos alcançaram, tentam me dissuadir a seguir adiante. Eu, entretanto, de dente trincado de frio, só sei repetir “I want to come back, I don’t want go on”, como se fosse um mantra. E assim damos meia-volta, volver, percorrendo em uma hora e meia os 700 metros que custamos 3 horas pra subir. Já perto do acampamento, a luz do alvorecer permite visualizar as montanhas ao redor, dentre elas o Everest e o Lhotse. Tão pequenos desta distância se mostram esses dois 8.000! Desapontadores!! Os 6.000 que lhes estão à frente, estes sim, parecem ser os 8.000!! Um leve tom róseo tinge a barra do horizonte. Nem ânimo tenho de fotografar coisa alguma. Só quero chegar, chegar e chegar na minha barraca. Só deus e meus músculos sabem o esforço que estou fazendo, tanto que caio duas vezes. Exaurida, entro na barraca e desabo que nem um peso morto no colchonete.
O relógio marca exatas 6 horas e 30 minutos. Passo quase o dia inteiro deitada. Tão, mas tão cansada estou que nem consigo relaxar o suficiente pra entrar num sono profundo. Apenas dormito. O calor dentro da barraca é tão forte que saio do interior do saco de dormir e fico apenas de camiseta de manga curta e short. Ao meio-dia, quando saio pra fazer xixi, o sol, a milhão no céu, machuca meus olhos que começam a lacrimejar. Pasang, Nara e mais três porters, escorados nas rochas, conversam. Junto-me a eles. Contam que ninguém fez cume. O vento, fortíssimo, impediu o acesso ao cume do Mera. Impossível crer nisso!! O dia está perfeito tanto que, no céu, nenhuma nuvem mancha de branco seu azul anil. É, então, após observação mais atenta, que percebo um penacho de neve, que só vento muito forte desloca e espalha no ar, envolvendo o cume do Mera Central, tal qual uma echarpe caprichosa. Conta Carol – após atingirem 6.300 m, o casal descansou um bom bocado no acampamento-alto, chegando aqui passadas as 15 horas – que o vento era tão forte que cortava a pele do rosto duma forma muito dolorosa. Mesmo abrigada no interior da barraca, a lona amarela não filtra adequadamente os raios solares. Daí porque meus olhos não cessam de lacrimejar, a ponto de eu ter a visão meio embaçada, o que turva minha leitura dos Ressuscitados.
Afora isso, sintomas do resfriado, que nunca largou do meu pé, retornam. Mantenho os olhos cerrados devido à compressa de camomila neles colocados, e, como não posso fazer nada, dou início a certas reflexões sobre o dia mais longo de minha vida. Puxa vida, quando fiz os 6.088 m do Huayna Potosi, não senti tanto cansaço quanto o dessa madrugada. Sei lá se meu corpo ou minha cabeça, ou os dois juntos, impuseram um stop ao meu corpo. Meu corpitcho, não resta dúvida, os sinais foram claríssimos, deu sinal vermelho de "por favor, pare agora!" (lembram daquele verso autoritário duma canção da Wanderlea na época do Jovem Guarda? Pois foi bem assim!). Não tive outra alternativa a não ser me render à impossibilidade de continuar a jornada até o cume. Na hora, nem frustrada fiquei. A exaustão e o medo de sofrer congelamento espantaram qualquer resquício de força de vontade que, por ventura, me restavam. Agora, aqui, no aconchego de "minha casa" pinta uma sensação de derrota, ou melhor, de não ter sido mais estóica, mais audaciosa e enfrentado o frio, o cansaço e a altitude. Conversando com meus botões, vou mais fundo: e se eu não tivesse sido intimidada pelas minhas limitações físicas e psíquicas, e prosseguido, agora, eu poderia indicar como único responsável pelo meu fracasso o vento! E, será que, apesar disso, não estaria me cobrando porque não desafiara o vento de modo a seguir adiante? Pois é…..
Bate boca no BC do Mera Peak
Como Nima e Carol se separam do grupo amanhã, já que farão outro trekking até o acampamento-base de Ama Dablam, resolvi, ontem à noite, passar a limpo minha “relação” com Nima. Eu sei, eu sei, tipicamente feminino esse tipo de bate-boca, eu sei. Acontece que ainda estava engasgada com o tratamento desinteressado que o dentuço me dispensara durante o trekking. Claro que o meu ânimo um tanto quanto depressivo, magoado, eu diria até, se devia 70/% ao cansaço e abatimento. em decorrência do malogro em não fazer cume no Mera Peak. Não que eu seja do tipo “não levo desaforo pra casa, bem capaz”. Não gosto é de ficar remoendo ressentimentos e, pra mim, o melhor jeito de desfazer rancores, mágoas e demais melindres, é cuspir o osso que me engasga. E foi o que fiz durante a janta quando nos reunimos na barraca-refeitório.
Em voz pausada, recitei a minha fala, previamente decorada e ensaiada, em alto e bom tom: “You are working, Nima, not in honeymoon, you have eyes only to Carol, you forgot me”. Sabe o que o tampinha respondeu? “I am not understanding your English.” Francamente, é muita cara de pau falar que não está entendendo o meu inglês! Mais básico impossível, até débil mental entenderia meu pequeno discurso. Os porters, que mal sabem articular uma frase com 20 palavras no idioma de Shakespeare, entenderam tão bem que, imediatamente, guardaram um silêncio atento, aguardando o desenrolar dos acontecimentos. Pois não é que a topetuda da inglesa, uma assanhada como há muito eu não via, resolvei interferir na discussão, vindo em defesa de seu dentuço amante? Ah, isso foi demais pra minha paciência. Dois contra um!! É muita covardia, convenhamos!!
Contra a minha vontade, juro por deus, fui obrigada a apelar e, usando um tom um tanto quanto ríspido, cortei, rapidinho, a abusada: “Carol don’t be nosy, please! (sem esquecer os bons modos, evidentemente, comigo é sempre assim: por favor, obrigada, seja qual for o idioma. Varia, apenas, a entonação, conforme a situação enfrentada). E dou por encerrado o fleumático bate-boca. Nima teve o que merecia: ser repreendido na frente de seus subordinados. E a abelhuda da Carol levou um pito de lambugem, pra aprender a não se intrometer no andamento da expedição. Se assim o desejar, que abra sua própria agência e pare de dar pitacos na dos outros. Refeita, acordo, hoje, pronta pra outra – não discussão, deus me livre!! – mas nova caminhada. Melhor me sinto, quando vejo todo aquele kit que faz parte dum dia perfeito: um solzão, sem nuvens que o atrapalhe, brilha no esplêndido azulão do céu. Na hora da partida, agora, já de alma lavada, despeço-me do casal sem qualquer ressentimento. Eles agem de idêntica maneira. Carol, não posso deixar de reconhecer, é muito simpática. Ela, de fato, foge do padrão formal de comportamento, exibido em geral por seus conterrâneos.
Às 8 e 30, deixamos o BC do Mera e, descemos o passo em 2 horas, chegando em Khare às 10 e 30 onde paramos pra almoçar. Nos telhados de madeira, aproveitando o ensolarado dia, roupas e cobertores coloridos são postos a arejar. Um nuvaredo espesso vindo de oeste começa a tomar conta de Thuna Valley e rapidinho, Khare está envolta em brumas. E junto com as brumas, baixa um frio Um frio de doer as pontas dos dedos, tanto que entro pra dentro da tea house de Pemba que lava louça numa bacia. Água encanada? Bem capaz! Esse luxo só vi em Kathmandu e em Lukla! Aceso apenas o fogão a lenha onde, sobre uma trempe, ferve, num panelão, uma sopa. A escassez de lenha bem como a mão de obra em trazê-la dos arredores de Khote faz com que o uso das salamandras seja racionado: são acesas apenas à noite quando o frio pega mesmo!! Saída de Khare ao meio-dia e chegada em Tangnag às 13 e 30 sob uma espessa neblina que, durante o trajeto, só permitia avistar 30 m a frente.
Como a paisagem, ao longo do trajeto entre as duas vilas, é pedregosa, com parca vegetação, a sensação de desolação é enorme, aumentada mais ainda pela presença de neve pendendo dos poucos arbustos existentes. E pensar que há quatro dias atrás, o tempo era solarengo, com céu de brigadeiro. É….o inverno já está prematuramente dando pinta de sua presença. Aqui em Tangnag, na mesma sala onde estive há cinco dias, sinto-me diferente.
Mais livre, mais alegre, mais em paz comigo mesma. E olha que nem conquistei o Mera! E se estou assim é porque aceitei as minhas limitações, não me forcei a fazer algo que estaria além de minha capacidade! Sinto-me importante justamente porque estou viva! E porque conheci belos lugares e convivi com pessoas, algumas interessantes, outras nem tanto. Observar brotar dentro de si bons e maus sentimentos, e não se sentir nem culpada nem vaidosa por um ou outro, não deixa de ser um exercício de maturidade emocional. Sem essa de atribuir a fulano, ao resfriado ou ao vento o fracasso de seus sonhos. Não fazer cume é um fracasso e ponto final. Não guento os tais de panos quentes do tipo "o que vale é competir". Ora, ninguém entra em algo pra perder, uai!! Estou orgulhosa em assumir que não pude naquele momento, naquele lugar, fazer meu gol. E se não houvesse o tal de vento que impediu os outros montanhistas de alcançar o cume do Mera, eu não teria CONSEGUIDO porque não tinha MAIS condições físicas. Até que nem doeu muito o meu fracasso. Uma fisgada no ego que já cicatrizou….eeebaaa!! Quando saio da tea house, perceptível através da luz da lanterna, flutuando no ar, diminutos flocos de neve. Deve estar fazendo dois graus abaixo de zero. E pela primeira vez durante o trekking, estrela alguma desponta no céu. Encontra-se o firmamento pesadamente toldado de nuvens, dando uma impressão de rebaixado. Como se isso fosse possível! Na minha cabeça, tudo é possível!