:: Acompanhe este relato no Google Earth através do site Rumos: Navegação em Montanhas!
Veja a primeira parte do relato
Por falar em Luca, o veneziano, radicado no Rio de Janeiro é um capítulo à parte. Carrega na sua mochila pessoal um guarda-chuva, lembrando uma versão masculina de Mary Poppins. Acompanha-o seu sorridente filho, Marquito, piá de 11 anos, super bom de perna. O italiano trouxe na bagagem um eito de guloseimas que vez por outra divide conosco. Assim salamitos, queijos, biscoitos e até um providencial conhaquito surgem do fundo da sacola pra delírio do grupo, submetido a uma dieta de massa e sopão.
No café da manhã, descubro que a cozinheira se chama Maria. Índia, pertence à tribo Pemon. De arrasto traz a família: filhos, marido, noras e genros. Enfim, uma pequena tribo nos acompanha. Maria prepara, além de mingau de aveia, arepa, prato típico indígena, obrigatório nas mesas venezuelanas, colombianas e panamenhas. Trata-se duma espécie de pão de milho, sem fermento na massa, por isso, achatado. Pode-se prepará-lo frito, assado, ou fervido. Os recheios mais comuns são carne, galinha ou queijo. E quando não se tem nada pra recheá-lo, se come purinho. Mesmo sem recheio, é bem bom, pode crer!
Às 8 e 20, deixamos o acampamento-base sob um céu toldado de cinza. E debaixo duma chuvinha miúda, começamos a pernada. Embora o desnível ao topo do Roraima perfaça apenas 850 m, a distância quintuplica e vira 4,5 km. Inicialmente, faremos uma caminhada até a base da big wall, quando então quebraremos à esquerda e passaremos a contorná-la até atingir o topo do grande platô.
Já de cara, tem de se encarar 200 m de degraus, escavados na rocha calcária, resultado da erosão das águas que escorrem continuamente montanha abaixo. O solo de coloração clara exibe aqui e ali tons avermelhados, denunciando a existência de quantidade significativa de ferro nesse tipo de rocha. Superada a escadaria, a ingremidade do aclive continua cada vez mais punk com uma inclinação que deve beirar os 45º. Vários obstáculos obstruem o caminho ao longo da trilha: robustas e avantajadas pedras exigem uma certa escalaminhadazinha básica, além de troncos e raízes de árvores caídos que obrigam a uma contínua ginástica das pernas. Após alcançar a parede o que era super mega íngreme torna-se apenas íngreme e assim continua até o topo.
A chuva não dá arrego: fininha e contínua deixa minhas roupas encharcadas já na metade do caminho. O trajeto dá-se quase o tempo todo dentro duma mata ombrofila cuja vegetação apresenta arbustos de médio e pequeno porte, destacando-se a schifronela rugosos, palmeiras como bacaba e tucumã, além de bromélias, orquídeas e outras espécies de flores. Sem esquecer o espesso musgo que aveluda os troncos das árvores devido ao alto índice de umidade.
Um descanso no Mirador após 1 hora e 30 minutos para um refrigério, dessa feita com fatias de abacaxi. A fruta está bem docinha, uma delícia. Uma pena, mas nada se vê dos campos de savana abaixo porque a névoa esconde completamente a paisagem. Raros e, quando os há, curtíssimos os trechos planos. Em todo o trajeto, apenas rola uma descida, situada entre o Mirador e as Lágrimas. Na passada, ao largo das Lágrimas, duas cachus, duns 150 m, que despencam lado a lado do topo do Roraima, parece que tá chovendo canivete. Tanto assim que a única parte de meu corpo ainda seca – os pés – acabam se molhando devido à água que entra nas botas.
A grande quantidade de pedras soltas, de coloração bem clarinha, evidencia um constante desmoronamento oriundo da parede quebradiça do tepuy. Degraus naturais esculpidos na rocha pela ação da água facilitam a subida mas exigem certo cuidado porque estão resvaladiços da água que verte das Lágrimas. Após as Lágrimas, as pedras tornam-se maiores e, um pouco antes do topo, um monolito rochoso anuncia a presença de Macunaíma, o deus criador do universo, conforme crêem os povos indígenas que habitam tanto a Venezuela quanto o Brasil.
No Roraima, Macunaíma fez sua morada, explica Marcelo, o outro guia, um venezuelano muito tranquilo. Numa boa performance, alcanço o cume em 3 horas e 15 minutos. Assim, às 11 e 35, estou eu empoleirada em cima desse vasto platô, apreciando, nos seus espalhados 34 km² de área, esse mundaréu de rochas a perder de vista. Percebem-se, nitidamente, os vários extratos que as compõem, se sobrepondo uns aos outros. Lembram aqueles castelos que as crianças fazem à beira mar com areia da praia. As pedras exibem formatos os mais variados possíveis: cogumelos, tartarugas, elefantes e o que mais o seu olho conseguir captar.
A caminho do nosso acampamento, um helicóptero caído. O acidente ocorreu há uma semana, causado por um vento na hora da aterrissagem. Felizmente, ninguém se machucou seriamente. Após 40 minutos de pernada, pulando pedras e evitando os charcos onde abundam stegolepis e bonetias sessilis (bromélias), além de droseras roraimae e heliamphoras nutans (plantas carnívoras), chegamos ao acampamento Sucre, chamado curiosamente de hotel.
No almoço, sabem o quê é servido? Massa!! E, de sobremesa, pequenos pedaços de goiabada, dessa feita, cobertos com respingos de creme de leite. Deve ser pra dar uma variada no original cardápio, hehe. A chuva continua e a bruma potencializa a descolorada e sombria paisagem constituída por rochas enegrecidas devido à coloração escura dos líquenes que as recobrem. O verde da escassa vegetação rasteira em nada altera esse tom lúgubre do cenário. Cenário de fim de mundo e não de mundo perdido, isso sim!
Flora Roraimera
Cinco de nós foram alojados numa ala dos fundos do hotel Sucre, úmida a beça. Uma aventura alcançar os nossos quartos. Pra se chegar lá, há de se enfrentar vários obstáculos: um robusto tronco de árvore atravancando uma estreita passagem situada entre dois matacões rochosos, o que demanda altos malabarismos, um pântano de lama pretésima, cujos únicos pontos sólidos são ou tufos de plantas ou minúsculas pedras, onde cabem apenas os dedos dos pés. E, à noite, um pequeno barranco exige um cuidado especial, cuidado esse desnecessário durante o dia. Assim, depois da janta, nós cinco voltamos pras nossas acomodações em bando, um iluminando o outro de modo a evitar que alguém despenque barranco abaixo. De fato, uma peripécia a travessia entre a ala nobre do hotel e a nossa. Pode-se dizer – mal comparando – que, enquanto as nossas acomodações se enquadrariam num padrão standard, as da frente seriam consideradas de luxo.
Compartilham comigo o tugúrio do subúrbio, como apelidei a biboca onde estamos acampados, além de Bárbara e Brigite, o casal Betina e Reinaldo, todos companheiros muito bem humorados. A manhã exibe um clima idêntico ao do dia anterior: um chuvisqueiro manso, céu cinzento e cerração nas bordas do perau. Durante o café da manhã, grudo em Chico. Sou pior que carrapato quando quero informações. Só largo o vivente depois de ter minha curiosidade satisfeita. E, assim, fico sabendo que, no pedaço brasileiro do Roraima, há apenas um hotel, com o sugestivo nome Coati. Já no lado venezuelano, abundam os lugares onde se pode armar acampamento, a saber: Basílio, São Francisco, Jacuzzi, Uno, Bolívar, Arabopô, Principal, Índio e Arenal, sem contar o Sucre, onde estamos hospedados. E além do Kukenan e do Roraima, há nesta área do Parque Canaima mais cinco tepuys cujos nomes são Ilu, Tramen, Karaurin, Wadakapiopué, Yuruani. Contudo esses platôs são pequenos em extensão se comparados àqueles dois.
Hoje vamos enfrentar a pernada mais dura de todo o trekking. Serão 21 km! E a caminhada tem início sobre um terreno, em sua maioria, coberto por uma imensidão de rochas escuras. Vez por outra, apontam trechos de areia cuja coloração se apresenta ora avermelhada ora esbranquiçada. Chico apresenta um encantador sapinho: o minúsculo Oreophrynella, habitante endêmico dos tepuys. Lembra muito aquele outro, o flamenguinho, que conheci no Itatiaia.
A vegetação, escassa, é quase toda ela rasteira, salvo pela existência dos arbustos Schifronela e Bonetia roraimae. Dentre as variedades de bromélias, não há como deixar de reparar nas onipresentes stegolepis, de cuja florescência, formada por pequenos bagos, brotam delicadas flores amarelas pendendo dum longilíneo caule. Eu dou conta só de duas espécies de orquídeas: uma bem delicada, amarela, e outra, mais graúda, de vibrante coloração fúcsia, que recebe o pomposo nome de Utricularia Quelchii….cróissss!! E gencianas e azáleas cujos nomes científicos – que me desculpem os botânicos – não fazem jus à formosura de suas pétalas e pistilos. Porque difíceis de pronunciar, não à-toa, os leigos as apelidam com mais propriedade que os doutos entendidos.
Não sei se por causa da garoa e do céu nublado, não me deslumbro nem um pouco com os decantados pontos turísticos. O primeiro por que passamos é o Ponto Tríplice, onde há um monumento em forma piramidal pra assinalar o encontro das fronteiras brasileira, venezuelana e guianense. Quer saber duma coisa? Se fosse eliminado do passeio não faria falta alguma! Depois conhecemos o Fosso, um baita poço situado a uns cinco metros abaixo do nível do solo, seguido pelo Jardim dos Cristais, assim chamado porque o terreno se apresenta crivado de quartzo branco. E por último atravessamos o desolado brejo onde, confinado entre paredões rochosos, se situa o Vale do Arabopô. Tudo isso foi visto num ritmo frenético, semelhante ao daquelas excursões conheça 15 países europeus em 10 dias.
Ao retornar do passeio, sinto-me exausta. E não sem motivo. Afinal, foram 11 horas de pernada, gente!! Desabo dentro da barraca. Preciso, urgente, descansar, nem que sejam 10 minutos, antes de encarar o lamaçal que leva até o refeitório-cozinha. E, pra finalizar o dia, despenca aquele chuvaral. Sem essa daquela garoinha que nos perseguiu durante o dia todo. É pancadão mesmo! Tanta água chove que nem penso em sair pra jantar fora. Morro de fome mas não molho minha roupa. Até porque não tenho mais nada seco, só aquilo que visto sobre o corpo. Óóó, mas deus é pai, e o eficiente guia Marcelo, sempre ligadão, aparece na porta de minha barraca e faz a pergunta tão sonhada: Vieja (sei lá porque cargas dágua me chama assim…será pelos meus cabelos grisalhos?!), quieres ceñar en la cocina o que tragas tu plato acá?” Sou breve na resposta: Acá y apurate, por favor, estoy hambrienta, Marcelino!.
Rápido que nem um raio, o querido rapaz, auxiliado por dois carregadores, me entrega um PF com arroz, feijão e galinha desfiada. Desvairada de fome,
devoro tudo, nem dando bola pro arroz meio duro e a ausência de sobremesa. Que deve ser…..go-ia-ba-da, hahahaha!!! A fome é o melhor tempero, como dizia minha abuelita, a sábia.
Nosso roteiro, na quarta-feira de cinzas, é convenientemente light. Apenas 6 km de pernada, destinados a conhecer outras atrações turísticas roraimeras. Por isso, saímos do hotel quase 10 da matina. O céu continua nublado e uma leve garoa obriga a vestir capa de chuva, a peça do vestuário mais requisitada durante o trekking. A caminhada, em grande parte sobre o pedrario, exige, vez por outra, que se pule fendas entre as rocha. Divertido. Quando chegamos à primeira ventana, a do Roraima, situada entre a Venezuela e a Guiana, avista-se o enorme paredão que se projeta ao final da parede oeste, apelidado, justamente, de Proa.
Esta big wall foi conquistada após duas tentativas por Eliseu Frechou, no início de 2010. Uma caminhada de 10 minutos, rumo ao sul, conduz à Ventana do Kukenan, onde se enxerga a parede leste deste tepuy, oposta àquela de onde verte a grande queda dágua vista do acampamento Tek. Realmente impressionante o cenário que essas duas Ventanas proporcionam! Imaginem em dia claro, então! E, nas Jacuzzis, piscinas de águas transparentes onde o pessoal se esbalda, fotografando e tomando banho, eu fico só curtindo as estripulias aquáticas do grupo. Água fria e céu sem sol não me apetecem nem um pouco. Eu fora, portanto, das límpidas pocinhas, hehe!!
Após uma demorada pausa nas Jacuzzis, vamos ao encontro das Catedrais, lugar deveras sem graça. As tais rochas que, segundo Chico, guardam semelhança com aqueles templos religiosos são apenas um amontoado disforme de pedras. Por fim, conhecemos o Maverick, maciço rochoso cuja forma alongada remete àquele arrojado sedã americano, sucesso na década de 70. E sem querer nasce a blague o carro onde não se entra, só se sobe no capô, começada por Marcelo não o guia, mas um colega de expedição – e finalizada por mim. Considerado o ponto mais alto do Roraima, com 2.875 m, a subida até o topo deste cerro é bastante íngreme, compensada, entretanto, pela exuberante vegetação ao longo da trilha. Comparado com o que tenho observado durante esses três dias de permanência no topo, pode-se considerar esse enclave, realmente, um opulento jardim. Até musgo clarinho, daquela espécie que lembra espuma do mar, brota no chão encharcado.
O motivo de tanta umidade no solo é o incessante chuvaral que vem castigando, atipicamente, esse setor do parque durante o mês de março. Bárbara, coitada, quase perde uma bota quando, inadvertidamente, afunda o pé no terreno pantanoso. Não resisto e deixo escapar sonoras gargalhadas. E, olha, não sou de rir desse tipo de situação. Mas que foi engraçado, foi! Tudo porque a coitada que, até então, vinha evitando, cuidadosamente, os pontos críticos, de repente, num vacilo, ploft, enfia o pé na lama! Não deu pra resistir, hahaha!!
Pra mim, a subida ao Maverick foi o ponto alto, literalmente, de todo o trekking! A visão lá de cima é esplêndida! Dá pra se avistar, num ângulo de 180º, toda a imensidão e finitude, também, daquele que é o segundo maior tepuy da Venezuela, perdendo em tamanho apenas pro Ayantepuy, onde se situa o Salto Angel, com imbatíveis 90 km² de área. Um tímido sol aparece enquanto estamos aqui em cima. Contudo, alegria de pobre dura pouco, porque não dá 20 minutos, e sobem do paredão ocidental vagarosas e inelutáveis nuvens, que circundam de neblina o tepuy. A garoa, até então intermitente, cai agora, continuamente, durante o trajeto de retorno ao hotel, onde chegamos às 16 e 30.
Durante o almoço, Luca oferece lascas de queijo gran padano, prontamente, aceitas por todos nós. Trato de unir à julieta o romeu. Tudo de bom queijo com goiabada. E, aleluiaaa, surge, enfim, no meio do céu cinzento, por pouco tempo, é claro, uma breve janela de azul, avisando que estamos na lua crescente.