Morro da Pedreira, Uma Trilha Animal

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Embora apareça na carta como “Morro do Tico-Tico”, ele é mesmo conhecido como “Morro da Pedreira” por estar bem do lado duma impressionante cratera aberta pela Mineradora Pedrix. De exatos mil metros, esta modesta elevação é um dos pontos culminantes dos acanhados serrotes domésticos que integram a área gigantesca de reflorestamento da “Cia Melhoramentos”, em Perus.

Sob pretexto de não mofar em casa, tomei então uma manhã apenas pra chegar no alto deste simpático morro, que já despertava minha atenção toda vez que viajava pela Linha Rubi da CPTM. De facílimo acesso, mediante antigas veredas extrativistas e estradas de manutenção desativadas, do alto se descortina uma perspectiva diferenciada desta pacata região de Santana do Parnaiba. De bônus, um inesquecível companheirinho animal nesta trilha que foi, literalmente, o bicho!
 
É incrível como o transporte coletivo paulistano é eficiente quando se encontra isento de obras ou diabo que o valha no caminho. Tanto que, sem necessidade de baldeação obrigatória do Paese, desta vez cheguei ao meu destino bem antes do previsto e olha que sai cedo de casa justamente pra sanar esse contratempo. Á toa, pelo visto. Enfim, após rodar num piscar de olhos o primeiro terço da Linha Rubi da CPTM, saltei as 7hrs da matina na Estação de Perus. Era primeira vez que pisava ali, motivo pelo qual dei uma fuxicada no entorno por pura e simples curiosidade.
 
Perus é um distrito situado na zona noroeste da cidade de Sampa e, a título de curiosidade, seu nome nasceu dos deliciosos perus que uma senhora preparava aos tropeiros que passavam pela região. A beira de caminho bandeirante a região cresceu timidamente, fato que somente ocorreu somente muito tempo depois. Graças a expansão ferroviária e á grande oferta de terras, em 1890 Perus foi escolhida pra abrigar a fábrica de papel “Cia Melhoramentos”, que passou a plantar pinheiros e eucaliptos na região pra atender a sua produção. Plantio este que se estende até Caieiras, como já relatei noutras ocasiões. E em 1914, um ramal da estrada férrea impulsionou a instalação duma fabrica de cimento, outro grande negócio local que será mais detalhado noutro vindouro relato.
 
Pois bem, após uma rápida fuxicada na bela estação de Perus que, inaugurada em 1867 juntamente com a linha férrea “São Paulo Railway”, ainda mantém seus belos traços arquitetônicos passados 140 anos. Da estação basta sempre tocar pra noroeste, e isso se consegue tomando uma estreita passagem que dá acesso aos viadutos sobre a estação. Provavelmente tropece aqui com alguns “noinhas” ou mendigos cochilando nos degraus, mas nada que ofereça grandes riscos. Claro que não recomendo passar aqui no escuro, dai é necessário dar a volta e tomar uma rua logo acima o mesmo acesso.
 
No topo do viaduto o sentido é intuitivo pois basta cruzar a entrada (sempre aberta) duma propriedade que bordeja o pé dum morrote bem baixo. A rua é precariamente asfaltada e naquele horário bem adiantado trombei com tiozinhos em sua caminhada matinal, a quem acenei cordialmente. Logo adiante passará ao lado dum antigo casarão abandonado e, mais a frente, com a entrada duma decrépita fabrica abandonada de cimento, a “Portland-Perus”. Abandonada em termos, ainda há seguranças tomando conta e o latido estridente de cachorros me deixam ressabiado se devo prosseguir ou não. O segurança indica que basta dar a volta pela direita e pronto. Dito e feito, contornando a entrada dou novamente na precária estradinha que bordeja os limites da supracitada fabrica abandonada e toca indefinidamente pra oeste, conforme desejado.
 
A estradinha deixa a fabrica pra trás, passa pelos vestígios duma antiga vila operária (igualmente abandonada) que mais parece um presépio tomado de mato, e finaliza no que parece ser uma residência. Mas não tem problema, ao lado dela percebo uma trilha em meio ao pasto dando continuidade á precária estrada. Logo percebo que a estrada nada mais é o caminho pelo qual passava a antiga linha férrea da Perus-Pirapora, na qual ainda há vestígios de trilhos. Em tempo, durante todo tempo tenho a companhia do Rio Juquery, marulhando suas espumosas águas a minha direita.
 
Sempre pela supracitada vereda em meio ao pasto, termino passando por baixo da Rod. dos Bandeirantes (SP-348) onde também encontro alguns bikers pouco comunicativos dando rolê pela região, aliás parece que a região é point da galera que curte uma magrela porque cruzei com vários ao  largo daquela manhã. Após o viaduto o horizonte se abre e tenho o primeiro vislumbre do Morro da Pedreira, elevando sua elegante corcova forrada de verde a noroeste. O passo é rápido e a navegação, totalmente desimpedida, motivo pelo qual a trip ta mais ágil do que o previsto. O dia que amanhecera ligeiramente encoberto agora reluz o firmamento totalmente limpo, prometendo calor e sol pelo resto do período.
 
A pernada prossegue tranquila pela tranquila vereda, cruza algumas casinhas de alvenaria (onde aparentemente moram algumas famílias) a margem da antiga rodovia e tem continuidade sentido oeste, sempre em nível. O aroma agridoce e intenso de ameixas inunda as narinas e logo percebo voçorocas do pé ornando a bucólica vereda. Mas logo adiante desemboco numa estrada de chão maior, onde abandono os trilhos e toco por aquela via principal, ao norte, pois vai de encontro ao meu objetivo. Olho pro celular e não são nem 7:50hr da matina…
 
Não dá nem 5min por aquela empoeirada estrada de terra e, logo após cruzar uma ponte concretada sobre o Rio Juquery, percebo um som agudo vindo na minha direção. Na verdade era um miado e seu minúsculo dono apareceu dos arbustos a beira de via e, ao me ver passar, resolveu me acompanhar mesmo sem ser convidado. Procurei me desvencilhar do bichano, sem sucesso. Apressei o passo de modo a deixá-lo pra trás, mas ao reparar que o insistente felino ainda me seguia e que pela via trafegavam caminhões em alta velocidade, resolvi adotá-lo provisoriamente. “Saco! Eu e meu coração mole! Agora vou ter que te levar senão você não vai durar muito!”, falei pra ele. De fato, o minúsculo gatinho (devia ter coisa de um mês) havia sido deixado ali pra morrer e, não fosse de fome, fatalmente seria atropelado naquela estrada. Magrinho como ele só, infelizmente não tinha nada pra lhe dar (era bate-volta de menos de meio período, lembra?) a não ser água, que tomou como condenado. Pronto, passei a chamá-lo de “Pinguço”.
 
Com essa nova e improvável companhia, passei a andar com o gatinho junto, e pra que não atrasasse meu rolê carreguei o danado boa parte do tempo, fosse na mão, na mochila ou na pochete. As vezes dava desconto e deixava no chão, mas quando o danado começava a se enroscar nas minhas pernas prejudicando a caminhada, voltava a ser carregado sob inúmeros protestos e miados. Pois bem, assim segui pela estrada até esta interceptar a linha de torres de alta tensão, onde percebe-se uma trilha de manutenção acompanhando as mesmas. 
 
Abandono a estrada em prol desta picada e toco firme por ela, subindo uma crista de morro suavemente através dum chão avermelhado em meio a capim e algum reflorestamento. A subida é tranquila, inclusive pro Pinguço, que quando não mia de insatisfação por não deixa-lo no chão ronrona alto bem na minha orelha. Com posse da carta local, agora abandono a trilha palmilhada em prol duma vereda lateral que, em tese, deve me levar ao outro lado do morro pelo qual perambulo. Dito e feito, após cruzar um aprazível bosque de eucaliptos emirjo no aberto com largas vistas ao norte e, consequentemente, do meu objetivo, cada vez mais próximo. Daqui avalio minha rota e deduzo que devo descer uma vale raso pra depois ladear a encosta do Morro da Pedreira até um selado a nordeste, onde o acesso ao topo supostamente é mais fácil.
 
A descida é meio que intuitiva e é feita num piscar de olhos. No fundo, sopé do morro, me deparo com uma encruzilhada onde o sentido a tomar é mais que óbvio, ou seja, sempre reto! E assim tem inicio a subida de encosta do Morro da Pedreira, sempre suave e bem agradável. A larga vereda, antes de terra ou avermelhada, dá lugar a um precário chão cascalhado que dá trabalho pro Pinguço e gera relativo atraso do rolê. Mas devagar e sempre o bichaninho parece dar conta do recado, a sua maneira, claro. Conforme se ganha altitude as vistas a sudeste vão se alargando, permitindo apreciar todo caminho feito até então. Vale salientar também que a encosta esquerda do morro é composta de pura rocha, mas a vegetação se empenha forte em se levantar pra ver a luz do sol agarrando-se fortemente ás pedras.
 
E assim, por volta das 8:50hr alcanço o tal selado que tinha em vista. “Área de risco. Detonação. Não ultrapasse. Abrigue-se ao toque da sirene.” Alerta uma placa que avisa ao mesmo tempo que estou nos limites da Mineradora Pedrix. Mas um pouco logo a frente percebo que estou bem no topo da pedreira, numa espécie de mirante, onde se tem um “belo” visual de toda aquela intervenção humana no morro apenas pra fornecer material pra construção civil. Pausa pra fotos, descanso, goles de água e pra soltar o bichano um pouco, mas de olho pra ele não despenque penhasco abaixo.
 
Daqui minha suspeita de continuidade de rota se confirma, e me pirulito por uma larga (porém precária) vereda que agora sobe o restante do morro através de seu contraforte menos inclinado. A subida é tranquila e não há motivos pra pressa. Inicialmente suave o caminho se embrenha em meio a vegetação que mescla reflorestamento e mata secundária. O caminho já é bem diferente de todo resto, pois apresenta obstáculos consideráveis como enormes valas erodidas e muitas arvores tombadas. A ausência de marcas no chão confirma de que os bikers aqui já não chegam, só a pé mesmo! No mato do entorno, destacam-se enormes rochedos – os tais matacões – pipocando a superfície do morro a todo momento, recordando a composição geológica dos morros de Biritiba-Mirim.
 
E após um último trecho mais íngreme e que demanda algo mais de fôlego, as 9:15hr alcanço o topo do “Morro da Pedreira” (ou do Tico-Tico, pela carta). Como já era previsto, o topo consiste numa clareira cercada de mata secundária, onde algumas toras amontoadas denunciam a atividade extrativista da “Cia Melhoramentos”. Visu que é bom, nada. Contudo, se você se embrenhar mata adentro pode se empolar nos enormes rochedos a beira do morro e vislumbrar alguma coisa. E foi o que fiz, mergulhei nos lajedos na beirada esquerda da trilha, rasguei um mato fácil e escalaminhei os enormes matacões da encosta sul do morro. O Pinguço penava horrores em me seguir pois se perdia no mato alto, principalmente no meio dos bijus e pequenas bromélias. Do alto destes mirantes naturebas pude finalmente ter um visual panorâmico de todo quadrante sul da região, dominado predominantemente pela verdejante morraria do entorno, de trechos de Perus, da pedreira de Taipas e da Mantiqueira, em primeiro plano; mais ao longe, o espigão espetado do Pico do Jaraguá até pequenos ptos de geometria acizentada de Sampa, a sudeste; além de fragmentos de Santana do Parnaiba, Barueiri e algumas rodovias principais, a sudoeste.
 
Após breve descanso era chegada a hora de descer, mas claro que não o faria pelo mesmo caminho. Resolvi continuar a pernada pela crista sentido oeste, mas daqui em diante o caminho já não era aberto como antes. O desuso fez com que mato alto crescesse tornando imprescindível o uso dum facão, mas ainda assim fui indoate conseguir altitude suficiente pra abandonar essa vereda e descer pela íngreme encosta. Claro que o Pinguço foi mocado na mochila enquanto eu abria mato com ambas mãos e afundava a canela em voçorocas de folhas e galhos tombados do espesso eucaliptal. A sujeira e o calor me fizeram repensar se ter ido por aquele lugar havia sido boa ideia, mas este pensamento se diluiu quando finalmente caí num dos tantos estradões de chão, cerca de meia hora depois.
Dali bastou tocar qualquer bifurcação que tocasse pra sudeste e meu ponto de referência foram as inconfundíveis torres de alta tensão, que não tardaram em ser alcançadas. Uma vez na vereda de manutenção desta bastou voltar todo caminho feito anteriormente, onde reabasteci meu cantil ao passar pelas casinhas rente a antiga rodovia. enquanto voltava pensava comigo mesmo o que faria com o passageiro felino que trazia a tiracolo e agora dormia folgadamente na minha mão, alheio totalmente ao meu perrengue e cansaço. Como não poderia levá-lo pra casa (embora a ideia fosse tentadora) ele não passaria nunca pela catraca desapercebido, diante da barulheira que fazia ao miar. O que fazer com o bichano? Eis a questão.
 
Cheguei em Perus por volta do meio dia e sob um sol escaldante. Não via a hora de encostar e tomar uma gelada, mas antes tinha que me livrar do Pinguço, que ao invés de dormir resolveu abrir o berreiro de vez. Comprei uma coxinha e dei um pedaço, o que o acalmou por poucos minutos. Em seguida fiquei zanzando na área residencial próxima da estação, de modo a deixá-lo nalguma casa que me parecesse segura e confiável. E foi o que fiz. Com um enorme aperto no coração me despedi do simpático bichinho, que deixei no gramado duma residência de grades altas. E enquanto me afastava ouvi seus miados ficando cada vez mais e mais dispersos, pra então mergulhar novamente na barulhenta cacofonia comercial de Perus. 
 
Em tempo, o “Morro da Pedreira” é programa sussa e tranquilo; não é nada excepcional, desafiante e muito menos perrengue selvagem. Foi apenas uma “matada de curiosidade” e salvação prum dia qualquer sem grandes ideias mirabolantes ou vontade de deslocamento maior. Contudo, esta despretensiosa visita a Perus já me animou a breve retorno pra mais rolês (igualmente descompromissados) de meio período pela região. E o Pinguço? Bem, certamente sua algazarra deve ter atraído a atenção de alguém e agora deve estar de boa, curtindo um novo lar. Se bobear deve estar até melhor do que eu. De qualquer maneira, seu atual paradeiro decerto nem se compara ao qual estava fadado quando tropeçou comigo. Fato. São estes valiosos encontros fortuitos e informais que terminam rendendo boas estórias pra contar posteriormente. Sejam eles com companheiros humanos ou até de quatro patas.
 
 
Jorge Soto
http://www.brasilvertical.com.br/antigo/l_trek.html
http://jorgebeer.multiply.com/photos
 
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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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