Este relato parece todo inventado, mas não é. Eu apenas juntei várias passagens, sem exceção todas elas totalmente reais: a vila de Vertigem, o Eremita e sua cabana, o inacessível Rodamundo, o canto da seriema e a cachorra fiel, a moça de olhos claros e o pequeno guia – e é claro o silêncio do mundo.
Mundo
Estava lá há tanto tempo que quase ia esquecendo quando isso tinha começado, isolado naquela casa de troncos que pertencera ao Eremita. Poucos na vila lá embaixo, e mesmo nas encostas da serra, sabiam da real existência do Eremita. Uma das fantasias prediletas do vilarejo, era como uma lenda, como se nunca tivesse de fato existido. Uma fábula simpática para atrair e entreter os turistas.
Mas, com ele, fora diferente, porque tinha o hábito de escalar aquelas alturas, entre mata, cipó, fenda e pedra, durante horas de esforço solitário e silencioso. Como o Eremita. E, um dia, quase na crista da serra, eles se encontraram, e o Eremita lhe mostrou a sua ermida. Um espaço naturalmente rústico, criado a partir do casco das árvores, como uma cápsula feita de assoalho, parede e teto a partir de madeiras imemoriais, acinzentadas pelo tempo, à semelhança de pedras indestrutíveis.
Conversaram sobre as coisas comuns nas suas vidas, que eram muitas, mas com poucas palavras, como era o costume deles. E, sempre a partir de então, quando ele voltava à serra, levava ao Eremita os mantimentos que não lhe era possível obter. A menos que o Eremita descesse para o vilarejo do qual tinha escapado há tanto tempo, por razões que ele nunca soube.
Agora você vai me perguntar por que todo esse mistério, porque afinal ele subia a serra. É que lá existia o Rodamundo, um monte escarpado, só acessível por uma trilha traiçoeira. Esse nome, mundo, antigamente se usava mais do que hoje, e vou lhe explicar. Mundo hoje quer dizer outros espaços no belo globo terrestre, nações estranhas e povos remotos, territórios de raças, geografias e costumes diferentes.
Mas mundo naquela época significava apenas o conjunto da vida, tudo aquilo que você podia percorrer ou representar na sua trajetória, no presente ou na memória, pelo território da sua existência. Mundo era o espaço ao seu alcance, como se fosse o seu horizonte ou destino, e não o relato alheio sobre as maravilhas da terra. Nesta época, o mundo era seu e não dos outros.
Então, o que ele procurava era simplesmente o seu mundo, dentro das suas limitações. Escalar aquelas lonjuras, conviver com a aspereza da rocha e a secura da mata, e descortinar lá de cima aquela paisagem enorme entre os céus, as serras e os vales, e lá no fundo o vilarejo esquisito onde morava. Ele se sentia magnífico, companheiro das aves, próximo ao vento e senhor dos espaços.
A vila se chamava Vertigem, porque era aquilo que as pessoas experimentavam quando viajavam para lá. Você teria de atravessar vales profundos, subir aclives suspeitos, descer por ladeiras sinuosas e vencer os penhascos, até descortinar lá embaixo o modesto casario daquela vila abrupta, que cresceu protegida por sua igrejinha e viveu contemplando o abraço das serranias.
Bem, isso ele fez tantas vezes, e realmente nunca soube por que era impelido a buscar as alturas. Depois que encontrou o Eremita, ele achou que era para trazer-lhe os alimentos, mas desconfiava que isso não era verdade, ou seu amigo não teria nos anos anteriores sobrevivido sem eles. O que ele buscava era alguma coisa diferente – quem sabe, mais um pedaço do seu mundo que precisava conhecer, como um quebra-cabeça da sua vida.
Um dia, o Eremita não mais apareceu. Seu abrigo estava ali, mas não o seu amigo. E ele achou que merecia continuar a habitar aquela morada, e muitas vezes pousou lá depois das ascensões ao Rodamundo. Lembrou-se da vez em que parou na base da montanha e pensou como era estranha sua relação com ela: disputa e esforço, desafio e amizade, prazer e silêncio.
Vertigem tinha uma natureza rica. Não pense que era exuberante, pois não era tropical. Mas o clima temperado e o relevo serrano abrigavam muitos bichos interessantes, à sombra de antigas e enormes florestas de pinheiros. Gambás velhacos, doces capivaras e raposas astutas viviam nelas. Para encantar os turistas, havia muitos relatos de ferozes onças, mas elas há muito tinham sido extintas, naqueles terrenos íngremes de difícil sobrevivência.
Ele talvez fosse mais atraído pelas aves: seus voos e cores aladas que o remetiam à serra, espaço bem-vindo que lhe permitia se afastar da rotina do vilarejo. Embora não fossem comuns em Vertigem, ele tinha especial carinho pelas seriemas pernaltas, aves nervosas e delicadas. Nunca entendeu bem como seu comportamento tímido podia acolher cantos tão expressivos, alegrando o entardecer dos dias.
Essa história que lhe conto aconteceu quando ele era jovem, sem preocupações com o sustento. O vilarejo cresceu e forasteiros começavam a chegar à busca de aventuras, caminhadas, histórias. Melhor do que ninguém, ele conhecia a região, tinha visitado a pé a serra que a abraçava e percorrido a cavalo o vale que o podia levar embora para outras terras.
E ele passou a viver disto, já que tinha poucas aptidões e interesses em outros ofícios, melhor seria conviver com essas curiosas e aflitas gentes de fora. Ele os levava para cachoeiras, trilhas, mirantes, e disso obtinha o seu sustento. Treinara um menino, ele o ajudava com os visitantes, era mais sensível e comunicativo do que ele.
Você vai achar esse relato meio abstrato, então vou lhe contar detalhes. Sim, ele tinha uma casa até decente no vilarejo. Pouco estudara, mas não vivia mal, pois era frugal. Sua família vinha de lá, mas hoje quase não havia mais parentes. Era magro e musculoso e não era feio. Sabia falar, pouco e bem. E tinha uma namorada, uma moça esguia de olhos luminosos, que podia cantar com uma voz aguda e clara. Ele pensava que ela era a sua seriema.
Agora você vai imaginar que tinham planos para o futuro, casar e procriar, uma família simples e perfeita, crianças louras e barulhentas num sítio com leite e mel. Mas está enganado. Ela era inteligente, podia estudar fora, e ele entendeu que devia sair daquele lugar pequeno e limitado, tentar uma profissão. E, assim, ela se foi, sem remorso nem volta. Mas, das duas seriemas, pelo menos ficou com uma.
Você acha que ele ficou triste, e de novo está enganado. Ele já tinha passado por outras relações e nunca ficara arrependido, pois sempre houvera afeição. Tocou a vida com os recursos que tinha – os lugares e pessoas que conhecia, os talentos que possuía, os visitantes que o procuravam, a rotina que o ocupava.
Quando veio toda aquela ameaça de fora, de vírus e de conflito, ele resolveu partir. Enquanto a moléstia que se espalhava como uma peste não passasse, ninguém mais visitaria o vilarejo, perdido naquelas serras e caminhos sem nome. Sua companheira tinha ido embora e o chamado das alturas não fora esquecido. Subiu a serra e foi viver na ermida.
Você vai me perguntar como ele pôde sobreviver. Não foi nada realmente trágico, o pequeno guia lhe trazia os mantimentos, como ele antes trouxera ao Eremita. Era curioso quando ele o via chegar, com aquelas roupas rústicas em xadrez colorido, o olhar obediente e assustado, e a mochila carregada que o fazia sofrer. Agora, era como se ele fosse o Eremita e o menino fosse ele.
E assim ele passou tanto tempo que lhe pareceu todo o tempo do mundo, esperando por algum sinal que o fizesse voltar. Era um lugar estranho onde vivia. O clima era quase sempre enevoado, devido ao perfil alcantilado do Rodamundo, que fazia os ventos girarem e inverterem. Assim fria e nebulosa era sua vida.
E o que ele fazia? Nada extraordinário, cuidava da fiel cachorra que o acompanhava, recolhia os frutos das árvores nebulares, ouvia por horas os uivos dos ventos, dos galhos e dos lobos, e devagar pensava na vida. Era o que havia e não se sentia tão mal – tinha abrigo, água, comida e tinha tempo.
Um dia, acordou sentindo que o vento mudara. Mais calor, outra direção, uma força diferente, uma nova luz. Olhou para cima e depois de tanto tempo reviu o sol. Era o tempo de voltar, a vez de descer, o momento de buscar um novo mundo.