Síndrome da noite anterior
As maiores dúvidas surgem durante a noite.
Imagino cada detalhe da escalada, tento adivinhar cada passo.
Quando tento dormir, os maiores perigos da montanha parecem ganhar forma, tomam uma proporção quase real, palpável. Vejo-me a cair, a ser alcançado por algum objecto vindo das alturas, a ser alcançado por uma avalanche. A Daniela encontra-se deitada ao meu lado. A ideia de se poder magoar é insuportável. Quanto mais tento afastar os pensamentos negativos, mais estes me invadem o cérebro, obsessivamente. O livro que atirei para um dos lados da tenda, não serviu de nada.
Os anos já me deviam ter ensinado a lidar com o “síndrome da noite anterior”, quando surgem as reflexões negativas e os medos irracionais. É sempre a mesma coisa. Antes de cada ascensão mais importante lá aparece o pequeno diabinho, o gnomo invisível do pessimismo, o arauto da desgraça, para me infernizar o espírito.
Viro a cabeça encafuada no saco-cama. “Será que a Daniela sente o mesmo?” Deixo de respirar durante um momento para tentar ouvir o silêncio. A Daniela dorme. Lá fora, tudo está tranquilo. O vento não se sente. Dentro de poucas horas vamos dar início a uma tentativa definitiva de escalada do Kapura, com mais de 6000 metros de altitude, jamais tentado através do vale do Nangma.
Em casa tudo é mais simples. Por mais técnica que pareça, qualquer ascensão se torna muito mais fácil e possível. Depois, a diferença temporal que divide o real do imaginário vai encurtando cada vez mais e, as coisas começam a ganhar novas proporções. As certezas dos planos iniciais começam a ser questionadas. Até que chega a hora da verdade, quando nos colocamos frente a frente com o objectivo. Nesse instante, algo muda drasticamente. A montanha bela, perfeita, possível, abstracta, torna-se num ogro, duro, inclemente, agreste, real. Esse é o momento para recuperar aquele truque da manga, a cartada que somente os anos podem providenciar. É o momento da análise objectiva, da questão definitiva: “Sou, ou não sou capaz de subir isto?”
A meio da noite, lá decido sacar a tal carta da manga. Objectivamente, digo a mim próprio: “Tu és capaz de subir aquilo!” Quase de imediato, o “gnomo do pessimismo”, voa para longe, açoitado pelo vento de um pensamento.
Minutos depois… adormeci.
Deixámos o campo base no dia 5 de Setembro. Atravessámos as primeiras rampas de prados de um verde intenso, usando pequenos trilhos que o gado foi formando com o decorrer de muitos anos de utilização. A paisagem era de cortar a respiração. Gigantescas muralhas de granito erguiam-se dos glaciares e a grande mole maciça do K6, dominava o fundo do vale. Este colosso majestoso com mais de 7200 metros, fora escalado apenas uma vez, em toda a sua existência.
Desfrutávamos das vistas e da nossa posição privilegiada. Poucos ocidentais tiveram a sorte de conhecer e sentir estes lugares belos e selvagens. Mesmo os locais, na sua maioria habitantes de Kande, raramente sobem a cotas superiores às dos prados de pastagens, como nos revelou Altaf, nos primeiros dias de aclimatação, quando resolveu acompanhar-nos até ao sopé do glaciar: “It´s the first time here!” Dizia, com os olhos perdidos nas montanhas. Sentimo-nos surpreendidos e honrados por poder apresentar um novo local a um autóctone.
Junto ao início do glaciar sem nome, aos 5000 metros, fizemos uma pausa para colocar o arnês e os crampons. Estava um dia magnífico, com o raios de sol a irromper por entre bojudas nuvens que se intrometiam no meio das arestas escarpadas. Sentíamo-nos com energia e, os pequenos diabinhos da noite anterior desvaneceram-se, levando com eles os pensamentos negativos.
A neve fresca depositada pelo mau tempo dos dias anteriores, tapou muitas fendas do glaciar, tornando a travessia numa “gincana” mais nervosa, com zigues e zagues entre crevasses, bem mais amplos que nas ocasiões anteriores.
Uma hora e meia mais tarde, encontrámos a pequena tenda vermelha, que tínhamos deixado montada a pouca distância da base do Kapura. O aspecto sudeste do Kapura dominava toda a visão da montanha, uma impressionante muralha vertical de rocha, um bigwall tremendo, com mais de 1000 metros de desnível. “O sonho de qualquer base-jumper.”
O despertador soou às 1.30 da madrugada. Era o dia 6 de Setembro. Ligámos as lanternas frontais para descobrir uma miríade de pontinhos brilhantes a cobrir o tecto da tenda, cristais de gelo produzidos pela condensação da humidade da nossa própria respiração.
Preguiçosamente, começámos a emergir do torpor. Ainda com os olhos empedernidos pelas poucas horas de sono e os lábios ressequidos pela desidratação nocturna, inclinei-me o mais que pude, esticando o braço, tentando alcançar o fundo do saco de dormir. Apalpei às cegas, tentando localizar a botija de gás, entre os vários utensílios armazenados no interior do saco, como uma das cameras fotográficas, o telefone satélite, as luvas molhadas no dia anterior, as meias húmidas, as botas interiores e outros objectos menores. Durante a noite, com os valores do termómetro a caírem a pique, esquecer algum deste itens no exterior do saco, podia traduzir-se num desagradável inconveniente que, dependendo das circunstâncias, podia descambar para um problema grave.
Repetimos o ritual ao qual já nos acostumámos nas madrugadas incómodas de alta montanha. A Daniela começou imediatamente a aquecer a água para o capuccino e o fogão não mais parou.
Há tarefas que dentro do silêncio da cordada já me estão atribuídas… assim como outras fazem parte das lides do Paulo. “Cozinhar” o pequeno-almoço, toca-me a mim. Acendi o fogão e aqueci água para os nossos típicos capuccinos matinais (desta feita, nocturnos). Aproveitei o calor da tampa da panela para aquecer uns troços de chapata seca, a que juntei uns triângulos de queijo e uns quadrados de marmelada. A geometria alimentar do Paulo é sempre mais ligeira que a minha. Umas bolachas rectangulares da marca “Tuc”, um quadradinho de marmelada e… ar, servem-lhe de pequeno-almoço. À força e entre tarefas, lá bebemos perto de um litro de líquidos cada um, como mandam as regras de bom comportamento em altitude.
Após o frugal pequeno almoço, colocámos as botas e saímos para o exterior da tenda, para o frio e noite escura.
Às 3.30 da madrugada, abandonámos o local, com todo o equipamento às costas. Uma meia hora depois, reiniciámos a primeira parte da nossa via. Entrámos oficialmente nos domínios do Kapura. Quando amanheceu, já estávamos num ponto elevado da vertente e aproximámo-nos rapidamente da primeira travessia exposta à queda de pedras. Desta vez, toda a muralha sobranceira vertical e ameaçadora descansava num silêncio gelado. Fazia mais frio que da ultima vez que ali tínhamos estado e, o mundo em nosso redor encontrava-se em modo de pausa. Os únicos ruídos que nos chegavam aos ouvidos eram os dos crampons e piolets, produzidos pelos nossos próprios movimentos. Todo um contraste relativamente aos dias da aclimatação.
Por volta das 7.30 da manhã, chegámos ao colo Alam. Imediatamente, reconhecemos o local para procurar um cantinho adequado para plantar a pequena tenda de bivaque, apenas para descobrir que… não havia nada para reconhecer. O colo era afiado e as vertentes caíam a pique para ambos lados da montanha. Um dos precipícios despenhava-se para o vale do Charakusa, o outro para o “nosso” lado, o vale do Nangma. Naquele lugar, separava-nos menos de um metro de largura de aresta. Encontrávamo-nos literalmente, no gume da navalha. Descortinámos o único cantinho possível para um bivaque mais ou menos decente.
– Um bivaque “Fowleresco”! – exclamei, aludindo a Mick Fowler (um alpinista britânico, considerado como um especialista em bivaques grotescos, em lugares horríveis). A Daniela concordou, com um acenar de cabeça.
Numa tentativa de aplanar um pouco o lugar, colocámos algumas lajes de rocha, colmatadas com neve compactada, de forma a dissimular, os blocos pontiagudos. Algumas horas depois, terminámos uma pequena mas, orgulhosa plataforma, onde depositámos a tenda, com os bordos a escorregar para cada vertente mas, com espaço suficiente para albergar duas pessoas deitadas.
Planeámos despertar muito cedo, ainda no dia anterior, imediatamente antes do dia posterior.
Mais uma vez, não conseguia dormir. Os gnomos voltavam para me atormentar a alma. Mais uma vez, tentava escalar a parede com a mente. Tentava adivinhar os perigos. “E se?…”, “O tempo está mais que bom, não há desculpas!…”, “E se?…”, “Tens experiência mais que suficiente para escalar isto!…”, “E se?…” No entanto, mesmo com todos os “se`s” a bater e rebater, como bolas de bilhar, nas paredes do meu cérebro, a decisão estava tomada e íamos para cima. Com esta certeza em mente, a ansiedade tomava uma nova dimensão, desta vez vinha acompanhada por uma impressão de inevitabilidade. Mas, em lugar de uma inevitabilidade trágica, esta era positiva. Crescia um sentimento de que os dados estavam lançados e de que não existia nenhuma razão lógica para não tentar. Na verdade, a ansiedade nocturna traduzia-se num nervoso miudinho de excitação. Desejava que as horas passassem depressa para enfrentar aquele desconhecido vertical, para mais uma vez, enfrentar os meus próprios fantasmas, desta vez, numa montanha esquecida, numa terra longínqua. Ao meu lado, a Daniela parecia dormir tranquilamente. Será que lhe passavam coisas semelhantes pela cabeça? Não consegui pregar olho nessa noite.
Cumes ilusórios
23:30 do dia 6 de Setembro, toca o despertador. As horas que antecedem a saída para o cume são tendencialmente de ansiedade, mas desta vez, sentia-me calma, tranquila. Na verdade, apesar de não ter dormido profundamente, resultado da altitude e do chão ondulado e duro da nossa minúscula tenda, sentia-me confortável no quentinho do saco-cama e tinha a perfeita noção de que o corpo estava descansado, perfeitamente preparado para um longo dia em altitude. Tinha aquela doce sensação que nos impele a adiar o despertador mais dez minutos. A solução que encontrei para combater aquela inércia gostosa foi levantar-me de rompante. Vestir-me rapidamente e iniciar todo o longo processo que separa o despertar do sair da tenda.
Enchemos a garrafa térmica com chá, outra com café e dois cantis com sumo energético de laranja. À última hora,ao contrário do que tínhamos combinado inicialmente, decidimos não levar o fogão connosco. Poupávamos assim cerca de 600g ao lombo. Estimámos que a ascensão e retorno à tenda nos deviam levar cerca de 15 horas, período que aguentaríamos bem, com dois litros de líquidos para cada um.
O vento pouco soprava. Encordámo-nos, trocámos um beijo, um abraço de boa sorte, e pelas 1:30 do dia 7 de Setembro, iniciámos a ascensão.
Cuidadosamente, para evitar as cornijas, cruzámos a aresta do “Colo Alam” para aceder à face do Kapura. A noite estava escura e não havia lua que nos iluminasse. Ao meu lado direito a brilhar no céu, estavam as 3 Marias. Sorri. Achei que aquelas três estrelas alinhadas nos trariam boa sorte.
Cravei pela primeira vez os piolets na vertente empinada. Encostei o capacete à pendente e fechei os olhos. Inspirei profundamente. Era uma espécie de ritual simbólico muito pessoal.
Durante meses, imaginámos aquele momento. O momento do frente a frente com o monstro. Agora, o monstro não era a montanha mas sim, a nossa vontade. O pequeno ponto geográfico que buscávamos estava lá em cima mas, o verdadeiro desafio estava dentro de nós e, tinha chegado o momento exacto de lutar pelos dois.
Sentia que a Daniela pensava o mesmo. A corda unia-nos num laço tal, que nos transformava num único ser. O espírito da “cordada” é mesmo esse!
Tudo, toda a envolvência do lugar me fazia acreditar que iríamos conseguir chegar ao cume. Sentia que toda a ascensão iria ser um verdadeiro desfrute, uma bonita escalada numa soberba montanha, numa via intocada, com a melhor companhia do mundo, o Paulo. Vi cruzarem o céu duas estrelas cadentes e o desejo que formulei não podia ser mais previsível: chegar ao cume e regressar em segurança.
Abri os olhos, olhei para cima esquadrinhando a escuridão. Ergui o braço e, numa estocada decidida, cravei o piolet no gelo.
O que estás disposto a sacrificar pelos teus sonhos?
Foi sem surpresa que encontrámos a parede formada por gelo puro e duro, coberto por uma fina camada de neve. Desde os primeiros passos, entendemos que a única opção seria escalar um lance de corda de cada vez. A técnica mais rápida de “ensamble” em que os elementos da cordada avançam ao mesmo tempo sem pontos de reunião intermédios era, neste caso, inviável, pelos perigos que comportava. Este era um mundo que não perdoava qualquer queda.
A escalar à noite, deixei-me embalar pelo típico barulho dos piolets e dos crampons a penetrarem o gelo. Nos primeiros 40 metros de cada largo avançava sempre com uma cadência confortável, controlando a respiração, deixando os movimentos do meu corpo fluírem. Fazíamos parte da vertente, a face sul do Kapura acolhia-nos hospitaleira. Os cerca de 20 metros antes de chegar às reuniões eram sempre mais sofridos, com a respiração mais ofegante, mais profunda. Por vezes, o Paulo desligava o frontal para poupar as baterias e ganhar uma melhor percepção das formas da montanha.
Para poupar energia, de vez em quando, desligava a lanterna frontal. Não necessitava da luz para assegurar a Daniela. Ao fim de alguns segundos, os olhos acostumavam-se ao breu da noite. A Via Láctea delineava-se como uma auto-estrada de asteriscos brilhantes, por entre outras nebulosas de estrelas longínquas. A fraca luz emitida pelo enxame galáctico de pequenas luzinhas era suficiente para iluminar a cordilheira do Karakorum.
Ainda em Portugal, sabíamos que iríamos ser uma das últimas equipas da época a escalar no Paquistão. O período normal de alpinismo, nestas latitudes, encontra-se entre os meses de Junho e Agosto. Quando chegámos aquele país asiático, a meados de Agosto, a grande maioria das equipas estavam já de saída. De todos modos, este ano, ninguém visitou o vale do Nangma, ou seja, na prática, não nos iríamos cruzar com nenhum ocidental.
Com o frontal apagado, conseguia observar as silhuetas sem cor que os gigantes de gelo e rocha insinuavam. Muito provavelmente, naquele momento, seriamos as únicas pessoas metidas numa escalada, num raio de muitos e muitos quilómetros de montanhas selvagens. A sensação de isolamento e exposição esmagavam-me e isso deixava-me fascinado.
Horas depois, encontrámos os primeiros afloramentos de rocha e com eles os primeiros passos de escalada mista. A banda de rocha que cortava a parede numa grande diagonal ascendente para a direita, obrigou-nos a realizar uma larga travessia. De súbito, o gelo desapareceu e, em seu lugar, encontrámos uma neve fina e inconsistente, sobre placas lisas de granito. Um tipo de terreno que obrigava a uma concentração especial.
As pontas dos crampons seguravam-se precariamente em algo que não conseguia distinguir muito bem. Um dos piolets encontrava-se gancheado num troço de rocha. Utilizei o outro piolet para procurar outra presa decente, ora raspando a neve, ora golpeando, tentando encontrar algum troço de gelo escondido. O desagradável som do metal na rocha não revelava grandes possibilidades. Por fim, lá consegui ultrapassar o obstáculo. Um a menos. “Vamos ao próximo!” Um último lance de 60 metros em travessia, protegido por um entalador martelado numa pequena fissura, depositou-nos na rampa final… pelo menos, parecia-nos a rampa final.
O tempo passou a voar e ainda parecia faltar bastante.
As dúvidas retornaram. Já passava do meio-dia e o trajecto do Sol conduzia ao inexorável ocaso e à indesejável perspectiva de uma descida nocturna.
– Como te sentes? – perguntou a Daniela.
– Já estou cansado mas, sinto-me bem. E tu, que tal?
– Estou bem. A única coisa que me preocupa é a descida nocturna. Pelo menos, a descida da banda de rocha.
A Daniela tinha razão. A partir daquele momento, retornar pelo mesmo itinerário estava fora de questão. A grande travessia tinha eliminado essa possibilidade. Restava-nos rapelar a direito, por terreno desconhecido. Olhámos para cima durante algum tempo tentando calcular a distância que nos separava do topo. Parecia relativamente perto mas, sabíamos estar a ser ludibriados por um erro de perspectiva.
– Que tal apontarmos para aquele ombro? – de braço esticado, a Daniela indicava uma espécie de aresta que parecia tombar.
– Com sorte, a inclinação irá permitir continuar em “ensambe”.
– Sim. Desde ali deve faltar apenas mais um lance até ao cume. – concordei.
Continuámos. O meu ânimo… os meus sentimentos estavam confusos, creio que pela primeira vez me senti enganada por não conseguir calcular as distâncias. A montanha enganou-nos, parecia já ali, tão perto… tão difícil era arriscar como voltar para trás. Tive um medo inconsciente da noite, de não saber medir as minhas forças com as forças da montanha. Tentei racionalizar, fisicamente sentia-me bem, o tempo continuaria bom, o gelo estava em perfeitas condições… se o corpo não me atraiçoasse seria apenas uma questão de tempo. Pensava também no Paulo, no rosto tinha escrita a vontade de querer continuar. O único senão era mesmo a pouca quantidade de líquidos e de comida que nos restava… o combustível que racionávamos há já algumas horas. Tentei novamente racionalizar, pensei no Cho Oyu. “Subi aquele 8000 com apenas meio litro de água, certamente não seria ali, aos 6000m, que o corpo me atraiçoaria por falta de líquidos!” Ponderei todas as variáveis.
Para ganhar o “ombro”, escalei um último muro de gelo com cerca de 70º. Ao chegar ao bordo da parede, a realidade esbofeteou-me com violência.
– Nããão! – gritei ao vento e deixei cair a cabeça entre os piolets. O capacete fez um som oco. Por cima de mim, ali estava a dolorosa evidência de que faltariam muito mais que 60 metros para terminar a escalada.
Naquele momento, desfaleci psicologicamente.
– Não pode ser!
Era já muito tarde e a parede parecia não ter fim. O resultado estava à vista, o fracasso era evidente. Dobrado sobre mim próprio, deixei as lágrimas correrem pela face.
Vi o Paulo chegar a essa linha, gritar de raiva e baixar a cabeça. Percebi que mais uma vez a montanha nos enganava. Separavam-nos 50 metros. Não o podia abraçar, senti raiva, frustração. Aquela era a quarta visita ao Paquistão e, mais uma vez, não faríamos cume. Decidi não mais voltar àquele país. Não nos trazia sorte.
Anunciei as más notícias à Daniela, que me observava com atenção, desde a reunião de baixo. Devolveu-me um grito de desânimo.
Com lentidão hipnótica, enrosquei um parafuso no gelo e preparei-me para assegurar a minha companheira. Pelo menos, iríamos decidir juntos o que fazer a seguir. Para cima, ou para baixo? A Daniela escalava devagar, num misto entre o cansaço e o desalento. Notava-se no ar, o ambiente da derrota.
Comecei a escalar sem pensar na respiração, nas costas direitas, no cansaço físico… o mental já me tinha dominado. Queria apenas chegar rapidamente perto do Paulo, ver o que ele via.
O dia seguia magnifico.
Enquanto recuperava as cordas com lentidão, comecei a analisar os arredores. Notei que a aresta que divide a face sul da parede sudeste, não estava assim tão longe. Olhando com mais atenção apercebi-me que estava muito perto do topo do grande bigwall que dispara directamente do glaciar, quase até ao cume do Kapura. Voltei a cabeça para o lado oposto e, reparei que a aresta do lado esquerdo também não parecia nada longe. Um novo júbilo invadiu-me a alma.
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– Não podemos estar longe! Quiçá um lance e meio mais. No máximo, 80 metros mais. – comuniquei o meu optimismo à Daniela.
– Ok! Mas, tens a noção que vamos alcançar a banda rochosa de noite, não?!
– Neste ponto, vamos ser apanhados pela noite, de uma forma ou de outra. – concluí. A Daniela concordou.
A inevitabilidade conduziu à decisão final.
Algum tempo depois, alcançámos a aresta rochosa. À nossa esquerda, caía a vertiginosa face Oeste da montanha. Finalmente, conseguíamos avistar as agulhas rochosas que constituem os cumes centrais do Kapura. O cume principal escondia-se atrás das agulhas mas, a sua calote de gelo era visível, desde aquele ponto. Abandonámos as mochilas, suspensas em dois pitons de rocha, que seriam posteriormente aproveitados para o rapel. Faltavam apenas uns 30 metros para terminar a escalada. O relógio marcava as 18 horas quando alcançámos o cume sul do Kapura, com cerca de 6350 metros de altitude, dezasseis horas e meia depois de iniciarmos a escalada.
Éramos os primeiros seres humanos a pisar aquele pedaço estreito do planeta. Abraçámo-nos. A celebração ficaria para depois. Naquele momento, estávamos vazios de emoções. Apesar do cansaço, o instinto mantinha-nos atentos, tensos. Apenas queríamos descer o quanto antes. Esperavam-nos ainda muitos rapeis, até alcançar a segurança do colo Alam.
Epilogo para um dia infinito
O sol afundou-se no horizonte durante o segundo rapel. Agora a velocidade da descida já era indiferente, pelo que pela primeira vez, decidimos fazer uma pausa para comer e beber algo, 20 minutos de pausa, todo um luxo! No meio da escuridão, distinguimos lá em baixo no vale, uma luz intermitente. De imediato percebemos que era o nosso cozinheiro, Altaf. Respondi-lhe, fazendo também sinais de luz.
– Não faças isso! Ele ainda pode pensar que não estamos bem! – alertou o Paulo.
– Que mau! Não trouxemos o rádio como combinado, ele deve estar em pânico! Mais ainda a ver-nos cá em cima a estas horas! Coitado…
O que pensava Altaf era fácil de adivinhar, mas naquele momento não havia nada que pudéssemos fazer para o tranquilizar.
Uns quantos rapeis depositaram-nos no topo da banda de rocha. Sabíamos que depois de ultrapassar aquele trecho, o resto seria uma questão de tempo.
O Paulo desceu, vi a luz do seu frontal desaparecer nas profundezas. Restou-me esperar. Sabia que não seria fácil encontrar no escuro fissuras que lhe permitissem montar reunião. De quando em vez sentia a corda baloiçar e percebia que ainda estaria à procura. Momentos mais tarde a minha ansiedade foi quebrada.
– Podes viiiiiiiir! – um grito, vindo dos confins da escuridão, quebrou o silêncio.
Coloquei a corda no descensor e rapelei.
– Bom trabalho. És um espectáculo! – disse-lhe, quando vi o lugar que encontrou para montar a reunião.
– Desculpa lá a seca! – respondeu-me.
O processo repetiu-se por mais três rapeis e horas depois chegávamos ao gelo. Deviam ser cerca das onze da noite e ainda tínhamos mais uns 500 metros para descer (cerca de 10 rapeis!), mas agora sentíamos segurança. Sabíamos que seria apenas uma questão de tempo até atingirmos o conforto da nossa pequena tenda.
A coisa tornou-se mecânica, o Paulo rapelava até ao fim das cordas e colocava um parafuso no gelo. Eu iniciava a descida. Quando terminava o rapel, estava ele a preparar o “Abalakov” para o rapel seguinte. Eu limpava os parafusos de gelo e puxava as cordas. Colocávamos as cordas no “Abalakov”, o Paulo colocava-as no seu descensor, descia e o processo repetia-se.
Vigiávamo-nos mutuamente para que nada corresse mal por vias do cansaço. Naquela altura a sede era o pior. O conteúdo dos cantis já estava gelado e inconsumível. Para poder aproveitar tudo o que tínhamos, tivemos que misturar o sumo dos cantis, com o chá e o café que estavam nas garrafas térmicas. Daquela forma, acabámos a inventar duas novas bebidas energéticas de altitude (café de laranja e laranjada de Lúcia-lima!).
As horas seguiram-se, os rapeis repetiram-se e tudo era igual na escuridão, nem as silhuetas das montanhas se desenhavam. A monotonia era imensa e, a certa altura: – Olha, acabei de adormecer! – anunciou o Paulo. Por momentos, passou-me pela cabeça que algo podia ainda correr mal, tão perto do final.
– Mal por mal, se for preciso, deixamo-nos ficar aqui pendurados e descansamos um bocado! Vê lá! – disse-lhe.
– Não. Eu estou bem, foi só um segundo. É melhor continuar a descer.
O tempo passava cada vez mais devagar até que a certa altura, pareceu-me ver a silhueta familiar do colo Alam.
– Estamos quase! Está ali! São só mais um ou dois rapeis!
– Achas? Não sei! – o Paulo mantinha-se reservado quanto ao cálculo das distâncias.
Nessa altura apetecia-me chegar à tenda e descansar, mas sabia que ainda teríamos tarefas obrigatórias pela frente. Hidratar, comer, ligar o rádio para tentar falar com o Altaf, que devia estar preocupadíssimo.
Após um ultimo rapel, chegámos ao colo Alam e, pelas 3:15 da madrugada de 8 de Setembro voltámos a reptar para o interior do nosso pequeno refúgio de tecido vermelho, 25 horas e 45 minutos depois de o deixar-mos.
Aí sim, senti-me em segurança e desfrutei em pleno da aventura que tínhamos acabado de viver, da linha que tínhamos aberto, do cume intocado que tínhamos escalado. Aí sim, abraçámo-nos com força e felicidade e a noite brindou connosco e ficou mais bela.
– Já está! – exclamei.
– Calma, ainda falta sairmos daqui amanhã! – respondeu o Paulo, conservador.
Mas naquele momento, eu já tinha a certeza que tudo iria correr bem.
A minúscula tenda parecia-nos um palácio. Derretemos neve, bebemos sopas e entrámos nos nossos sacos-cama aconchegantes. O chão estava ainda mais irregular que no dia anterior, resultado de alguma neve que tinha derretido, mas naquela altura, isso era um detalhe insignificante.
Ainda ligámos o rádio, mas o Altaf não estava do outro lado.
Adormecemos sem ansiedade.
Eu, com um sorriso gigante.
Paulo Roxo e Daniela Teixeira