Vou lhe falar da Bahia, mas não vou mencionar nem suas praias sedutoras e tampouco a sua famosa chapada. Como um estado grande e diverso, a Bahia conta com uma dezena de Parques Nacionais, entre os quais, fora a Chapada Diamantina, a deslumbrante reserva marinha de Abrolhos e aqueles ligados ao litoral do nosso descobrimento. Os demais são pouco conhecidos e visitados.
E quanto às unidades estaduais? Lembro que, estranhamente, o Estado não dispõe de terras públicas. A Bahia ainda está criando uma cultura de conservação da natureza e opera apenas quatro unidades. Nenhuma delas tem estrutura e visitação, exceto uma, que é por sinal a menor delas: o Parque Estadual das Sete Passagens. É sobre ele e o seu criador que quero lhe falar.
Ele é recente, fundado no exato início do século, com menos de 3 mil hectares. Pertence a uma região muito especial, a Serra de Jacobina.
É uma formação enorme, com mais de 200 km, e de geologia importante, contendo sofridos quartzitos imemoriais, que mergulham no passado proterozoico, cerca de 2 bilhões de anos atrás. Junto com a Serra do Tombador, à qual é paralela, representa a principal expressão local do Espinhaço, quase ao terminar seu longo trajeto rumo ao norte.

Mapa do Parque Estadual das Sete Passagens.
A cidade é única e impressionante. Como revela Zeneide de Jesus (adaptado), o visitante que decidir conhecer Jacobina observará o caminho sinuoso por entre as rochas e certamente ficará encantado no cair da tarde com o colorido avermelhado que o sol poente pinta por detrás da cordilheira. Verá também que a cidade está localizada numa espécie de vale, como quem busca a proteção das formações rochosas que a circundam. Verá que a cidade lembra um presépio, com várias casas construídas nas encostas.
O PESP pertence ao modesto município de Miguel Calmon. A cidade orbita à volta de Jacobina, da qual dista menos de 40 km. O acesso à reserva é feito por uma estradinha mediana de terra que sobe rapidamente a serra. As terras baixas que você atravessará são recobertas por uma caatinga um tanto árida.
Mas não é isso o que você verá ao chegar lá em cima. O pequeno platô sob o qual a reserva se assenta é como um refúgio biológico, e por várias razões: a flora exuberante, as inúmeras nascentes, a fauna variada e os mirantes panorâmicos. O ambiente é uma transição entre a mata atlântica e o semiárido, com muitas fisionomias distintas.

Campo alto no PE Sete Passagens, Miguel Calmon, BA. Abriga moitas de bromélias, samambaias e cambucis.
Veja que esta é uma região semiárida e todas as nascentes da caatinga lá embaixo se encontram aqui em cima. Mais de uma dezena de cachoeiras vertem da serra e há uma diversidade de mamíferos, principalmente carnívoros e roedores, como a suçuarana e o gato do mato, o veado mateiro e o tamanduá mirim, a paca, a cutia, o quati e a raposa.

As câmeras instaladas no PESP (Fonte: Divulgação).
Assim como com a vegetação, existe um interessante endemismo animal nas espécies menores. O PESP conta com populações sortidas de répteis e aves. Estas últimas pertencem a diferentes habitats: ambientes abertos, florestais e variados. Há um interessante fluxo de pássaros entre as regiões do entorno e do platô, seja numa frequência diária ou sazonal.
Mas, na minha visão, o aspecto mais surpreendente é a vegetação, que evolui desde a caatinga e o cerrado até o campo e a mata. A primeira ocorre principalmente na área de entorno e o segundo aparece consorciado embaixo com ela ou nos campos de cima. Gramíneas e ervas, palmeiras e cactos convivem com orquídeas, epífitas e bromélias.

Mirante do Dandá, PE Sete Passagens, Miguel Calmon, BA.
Os campos rupestres, de rochas intercaladas com plantas herbáceas ou lenhosas, são muito formosos e apresentam aqui elevado endemismo. Canelas de ema, sempre vivas, alecrins e mandacarus aparecem nesses altos.
As florestas de arvoretas e árvores ocorrem com certa surpresa na altitude do platô. Contêm variedades das matas atlântica e amazônica, formando-se em capões ou galerias – candeias, vinháticos, pinhos bravos, angicos, perobas, aroeiras e também fruteiras como o umbu, o sapoti e o araticum. Os estudos feitos apontaram quase 550 espécies distintas.
O PESP tem um desenho interessante, com vales altos contidos entre três serras, o que permite a formação de mirantes e cachoeiras. Seu ponto culminante está a 1.270 metros. O local mais conhecido é o lindo Mirante do Dandá e as quedas mais visitadas são as Cachoeiras do Jajai e do Bico do Urubu. A trilha mais longa, do Capão Grande, cruza todo o Parque no sentido norte e chega à enorme Cachoeira do Sinvaldo.

A Cachoeira do Sinvaldo fica na extremidade norte e é a maior do Parque.
É ainda possível visitar por baixo a Cachoeira Araponga, uma oportunidade de conhecer toda a parede leste da serra que contém o Parque no seu interior. O visual é deslumbrante, com o desenho agitado da crista, as paredes ora rochosas ora verdejantes e os campos e vilas no entorno do Parque. A borda oposta, a oeste, tem o mesmo interessante aspecto escarpado.

Serra Leste do PE Sete Passagens, Miguel Calmon, BA.
O Parque contém as nascentes que abastecem as bacias dos Rios Salitre e Itapicuru, o primeiro correndo para o norte até o São Francisco e o segundo, para o leste até o mar. Este último é intermitente, percorrendo regiões pobres do semiárido baiano, desde os campos rupestres da Chapada até a mata atlântica do litoral, ao longo de mais de 350 km. O Salitre é ainda um curso jovem no local, pois sua nascente é próxima. Atravessa um território semiárido de aspecto muito sofrido e é parcialmente seco, desaguando no São Francisco depois de 330 km.
Quero agora lhe contar como surgiu esta reserva primorosa, uma história mais surpreendente do que sua existência especial.
O baiano José Manoel (Zélis) Pereira tinha servido na Marinha e trabalhava num banco comercial em Salvador. Tinha algo mais de trinta anos quando resolveu retornar à sua região natal, próxima à Serra de Jacobina.
Quando criança, levava o gado na seca para um pequeno platô verdejante, para que tivesse alimento. Assim fazia a população da região, composta por dez pequenas comunidades, atravessando sete passagens para chegar a esta rica região de nascentes.
Nesta época, ele passou a operar uma academia de ginástica na cidade de Miguel Calmon, no sopé da serra. Juntou-se à ONG que seu pai tinha fundado para defender a preservação do platô, ameaçado pela ação dos garimpeiros e dos caçadores. E retornou a Salvador para pleitear a criação no local de algum tipo de reserva natural.

José Manoel (Zélis) Pereira, primeiro gestor do Parque.
Quatro anos depois, foi lá estabelecido um Parque Estadual e ele foi nomeado seu gestor. Zélis viajou até a reserva paranaense do Salto Morato para aprender as técnicas de gestão. E visitou outras unidades para conhecer suas diferentes realidades.
Hoje está terminando um doutorado em Auditoria e Perícia Ambiental. Este artigo é chamado de O Ambientalista por que é nesta qualidade que Zélis se identifica em seu correio eletrônico.
Devo explicar que existe na Bahia a prática secular das comunidades de Fundo de Pasto, que exploram as terras coletivas. O pastoreio extensivo e a agricultura de subsistência são feitos desde sempre de forma comunitária nas terras de uso comum. Pois o planalto contido pelas Serras do Cavalo e da Jaqueira do Parque tinha então esta destinação.
Mas Zélis fez algo então único no Estado: conseguiu expulsar os pecuaristas e garimpeiros da região. Renovou uma construção para que servisse de sede, montou um camping bem equipado e estabeleceu uma sinalização para as trilhas.
E pediu às comunidades do entorno que elegessem candidatos a monitores, que foram treinados para que funcionassem como guias dos cinco caminhos lá implantados. A visitação hoje é o triplo de quando conheci o Parque, de 20 mil pessoas por ano.
Impactos e Conflitos no Parque Estadual das Sete Passagens
|
Grupos de Interesse |
Impactos |
Conflitos |
| Proprietários | Desmatamento, queima, uso de adubos químicos e pesticidas, erosão do solo, compactação das nascentes | Limitações para as atividades agropecuárias e ampliação das áreas agrícolas |
| Trabalhadores Rurais | Desmatamento, queima, caça, erosão do solo | Ausência de terras e de trabalho, com falta de alternativas econômicas |
| Moradores | Casas sem saneamento, geração de lixo, desmatamento, queima | Caça, contaminação das barragens e chafarizes, proibições do Parque |
| Mineradoras | Barragem de rejeitos, uso de explosivos, contaminação de rios por resíduos da mineração, abertura de estradas | Busca de áreas para pesquisa e exploração mineral |
| Garimpeiros | Contaminação por mercúrio e erosão das margens dos rios | Invasão de áreas para garimpagem |
| Turistas | Lixo, retirada de espécies naturais e erosão das trilhas | Demandas sobre a gestão do Parque |
Fonte: Levantamentos de campo para Plano Manejo do PESP/ NUCLEAR / UFBA (adaptados).
Porém os cinco anos iniciais foram duros. As reações dos garimpeiro e as ameaças da mineradora local reduziram os 60 membros da ONG a apenas 4.
Ocorre com o Parque uma situação bastante comum no Brasil: seus benefícios econômicos (grandemente futuros) parecem menores do que o usufruto anteriormente praticado em suas terras. Foi necessário um trabalho junto às comunidades, associações, quilombolas e prefeituras para que o Parque fosse por fim aceito e apoiado.
Embora as agressões à natureza na área de entorno continuem, o PESP virou um modelo para a Bahia. Existe nas imediações o enorme e impressionante PE do Morro do Chapéu, atravessado por um rio seco, dotado de um raso solo arenoso e recoberto por uma caatinga seca e espinhenta. Zélis foi encarregado de sua gestão – em meio às dificuldades da gestão ambiental pública, tem mapeado no arenito local as locas e paredes decoradas por inesperadas pinturas rupestres.

A rocha arenítica e o campo de gramíneas do PE Morro do Chapéu na Bahia.
Zélis costuma dizer que hoje a sua atuação principal é o gerenciamento de conflitos. É até possível que eles aumentem, se a proposta de concessão da exploração turística do PESP à iniciativa privada for implementada. Estão previstos grandes investimentos, inclusive de construção de hospedagem e refeitório – o que poderá alterar a utilização e o funcionamento do PESP.
Há 25 anos envolvido no refúgio que ele ajudou a criar, em memória do sonho de seu pai e da sua terra natal, Zélis talvez se pergunte se essa será a derradeira passagem de sua vida.















