O Arquiteto: Clayton Lino e a Mata Atlântica

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O mais conhecido conjunto de cavernas do Brasil fica no PETAR. Esta sigla com aspecto militar representa Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira, um nome realmente nada usual para um parque natural. Esta que é uma das mais antigas reservas de São Paulo, é também uma das mais belas do Brasil.

O Parque resultou das pesquisas pioneiras de Richard Krone (1861-1917) na virada do século XIX. Esse alemão naturalizado brasileiro se estabeleceu como farmacêutico em Iguape, onde viveu os últimos trinta anos de sua vida. Além de farmacêutico, foi, entre outros, engenheiro, naturalista e arqueólogo. Krone chegou a percorrer a região junto com Peter Lund, o fundador da arqueologia brasileira.

Mapa esquemático do PETAR, com os quatro núcleos e a área de entorno.

Krone pesquisou durante dez anos as formações do sul do Estado, tendo descoberto as impressionantes Cavernas do Diabo e Casa de Pedra, bem como o sambaqui do Morro Grande. Catalogou 41 cavidades, a última das quais tendo sido Santana, hoje a mais visitada (e talvez a mais bela) caverna turística do PETAR.

Em 1910 o Estado de São Paulo adquiriu dez cavernas, que foram o embrião para a formação do Parque. Ele foi fundado em 1958, mas permaneceu incrivelmente esquecido pelo ¼ de século seguinte.

Seus grandes atrativos são as cavidades calcárias, das quais existem cerca de 350. Com consideráveis 36 mil hectares, é distribuído pelos municípios de Iporanga e Apiaí, no sul de São Paulo.

O Parque é dividido em quatro núcleos, sendo Santana o principal deles. Os demais são Caboclos, Ouro Grosso e o menos visitado Casa de Pedra. No momento em que escrevi este artigo, eram no total quinze cavernas visitáveis. O número de cavernas varia de acordo com os humores das autoridades. Além delas, apresenta uma dezena de belas cachoeiras, nem tão altas mas bastante volumosas.

O PETAR abriga uma floresta densa sobre solo calcáreo. É o principal representante desse tipo de vegetação no país, com uma mata madura de espécies emergentes. A sua fauna é muito abundante, com variedade de mamíferos, aves e répteis. É uma região úmida e baixa, com relevo acidentado e solo pobre.

Centro histórico de Iporanga, no Vale do Ribeira, SP.

Iporanga é uma vila antiga, ainda com uma população de 5 mil habitantes, com casario que remonta à sua fundação no século XVI, motivada pela busca do ouro. Apiaí teve a mesma origem, porém dois séculos depois, e cresceu para 25 mil pessoas. São vilas modestas, cercadas por uma região carente.

Como é comum em lugares isolados, o Vale do Ribeira onde estão localizadas contém comunidades quilombolas, caipiras e caiçaras. Ele é um tanto estagnado, devido à dificuldade de explorar a acidentada Mata Atlântica que o recobre e ao seu solo pouco fértil. Nos seus 30 mil km² e talvez 500 km, não conta com nenhuma cidade de porte – a maior delas é Registro, com pouco além de 50 mil pessoas.

Clayton Lino nasceu em 1953 em Franca, uma cidade próspera e fabril de porte médio no noroeste paulista. Sua família possuía uma fazenda e ele comenta que o contato com a natureza marcou desde então a sua vida.

Mudou-se adolescente para São Paulo, onde morou em diversos bairros paulistanos: Primeiro morei na Aclimação, aí me aclimatei. Depois fui para a Consolação, me consolei. Enfim, ganhei o Paraíso. Aí comprei um apartamento no Jardim da Glória, mas deixei para a minha mãe. O Paraíso é melhor do que a Glória.

Clayton cursou Física no Mackenzie, mas acabou se formando em Arquitetura, e depois se graduando em Antropologia. Mas, na verdade, eu não sou nem físico, nem arquiteto, nem antropólogo. A minha profissão veio a partir do meu hobby, que foi a espeleologia, ele conta. Logo você saberá do seu envolvimento profissional com as cavernas.

Caverna Alambari de Baixo. No alto do vale fica a Alambari de Cima, primeira caverna visitada por Clayton Lino. A minha foi Água Suja. A primeira gruta a gente nunca esquece (Fonte – Sema S Paulo).

No início de sua formação, houve duas experiências que o influenciaram de forma definitiva. A primeira foi a visita em 1972 às cavernas de uma certa reserva no sul do Estado que então só existia no papel. Alambari de Cima foi sua gruta inaugural.

Lá ele visitou pela primeira vez a Mata Atlântica (em Franca a vegetação é de  Cerrado), conheceu as comunidades tradicionais e descobriu que não são as cavernas que se assemelham a catedrais e sim as catedrais que parecem cavernas.

Quer dizer, tudo que eu faço hoje, tudo o que eu faço nos últimos trinta e poucos anos (hoje já são cinquenta), foi porque um dia eu entrei numa caverna nesta região. Tudo. Mais tarde, Clayton foi por dois anos presidente da SBE – Sociedade Brasileira de Espeleologia.

Logo depois, conheceu pelo Projeto Rondon a gigantesca Gruta dos Brejões na Bahia. De novo, sentiu o apelo dessas catedrais de pedra e aprendeu como a natureza e a população convivem juntas e, nesta, a importância da cultura regional.

Note que, ao longo de sua carreira, Clayton procurou integrar assuntos como a criação de áreas protegidas, a informação científica, a mobilização da sociedade.

Clayton Lino é fotógrafo profissional, tendo publicado livro de fotos sobre a Mata Atlântica. Foi também fotógrafo da Expedição à Antártida de 1982-83.

O envolvimento de Clayton Lino com as cavernas paulistas continuou intenso e ele passou a residir em Iporanga. Bom, eu sei projetar casa, mas eu não sei construir casa, ele pensou. E então aprendeu a fazer uma casa de pau a pique.

Realizou um levantamento arquitetônico das construções em todo o Vale da Ribeira e lutou pelo tombamento do Centro Histórico da cidade. Foi ele quem restaurou uma bela construção e lá criou o Museu da Cidade. Assim como neste caso, a ação dele sempre pareceu orientada para projetos ou programas – por isto dei a este capítulo o título de O Arquiteto.

No início da década de 1980 Clayton trabalhava na SUDELPA (órgão estadual para o desenvolvimento da região sul) e lutava pela instalação do Parque das Cavernas, junto com muitos outros naturalistas.

Núcleo de Santana, o mais visitado no PETAR (Fonte – Viva o Vale).

Além de órgãos do governo paulista, havia o envolvimento da SBE, a sociedade de espeleologia; do CEU, o centro de excursionismo universitário; da SAS, a sociedade da comunidade local e do CAP, o clube paulista de alpinismo. Aliás, foi numa expedição do CAP que conheci minha primeira caverna – e a primeira vez a gente nunca esquece.

Em 1983 foi indicado como gestor do PETAR – sem sede ou funcionário. Começou então a sua ação profissional no meio ambiente. Na época, 80% da área era ocupada por mineradoras e madeireiras.

Cavernas eram dinamitadas e usadas como depósitos de lixo. Acessos eram criados com devastação da natureza. Assustados pela instalação do Parque, moradores destruíam as primeiras estruturas construídas. Havia conflitos, ameaças e agressões.

Os limites da reserva foram demarcados, as empresas exploradoras foram desalojadas, os quatro atuais núcleos foram criados nas bocas dos vales, os conflitos fundiários foram contornados e as cavernas começaram a ser conhecidas e visitadas. Embora ainda de forma precária, o PETAR se tornou uma realidade.

A exuberância da Mata Atlântica do PETAR. Apesar de ser apenas 7% da original, ainda contém 70% das espécies ameaçadas do Brasil – sinal de sua incrível resiliência (Fonte – Daniel de Granville).

Já se escreveu sobre o PETAR: A história da conservação da Mata Atlântica e da devastação da Mata Atlântica. A história da espeleologia no Brasil. A história das comunidades tradicionais. A história do sistema de Unidades de Conservação paulista. A história do esforço, das dificuldades, dos sucessos e dos fracassos na gestão de uma Unidade de Conservação.

Ao longo dos anos, o Parque teve um desenvolvimento desigual, chegando a ficar fechado por anos. É atualmente um destino turístico consolidado, porém a meu ver ainda sem uma estrutura de visitação compatível com seu magnífico ambiente natural.

Houve na Ilha do Cardoso uma reunião histórica em meados da década, quando pessoas das mais diversas ocupações discutiram a necessidade de preservação da exuberante natureza da Serra do Mar.

Deste esforço foram criados ou estruturados os Parques Estaduais e as Áreas de Proteção Ambiental. Foi a partir de então que o movimento ambiental se consolidou no Brasil.

Clayton Lino continuou sendo um ativista ambiental. Foi um dos fundadores da SOS Mata Atlântica em 1986. Ele conta que, no início, sequer havia um conceito estabelecido do que fosse essa floresta.

Aos poucos, foi surgindo a noção de Domínio da Mata Atlântica, incluindo os ecossistemas associados, como as restingas, os campos de altitude, as matas de araucária, as florestas do interior.

A SOS Mata Atlântica foi uma ONG pioneira, envolvida na conservação da natureza, em especial a mata que lhe deu o nome. Ela realiza monitoramentos, estudos e projetos da área, visando a comunicação e o engajamento da sociedade e influenciou a legislação ambiental.

Propaganda da SOS Mata Atlântica. A mais famosa campanha dizia na década de 1980 – ‘Estão tirando o verde da nossa terra’.

Diz Clayton que a SOS é um símbolo de uma luta, de um momento histórico, de um momento de base para a questão ambiental no país.

Além de fundador, ele foi superintendente científico e vice-presidente, sendo hoje conselheiro. Em 1990 coordenou a publicação do Atlas da Mata Atlântica, um banco de dados que permitiu uma grande mobilização em defesa do bioma. Ele ocupa 2/3 dos Estados brasileiros, quase uma outra nação dentro do país, que vai do RN ao RS.

Durante a década, surgiram os conceitos de RPPN (ou reserva particular espontânea, sem desapropriação) e de desenvolvimento sustentável (envolvendo economia e ambiente).

Mapa do domínio da Mata Atlântica – são hoje 200 mil km2, dos 1.300 mil km2 originais.

Clayton Lino diz que a ONG não é organização não-governamental, é organização neo-governamental, é outra forma de governo que a sociedade também criou, governo para si próprio.

Ele vê a SOS hoje como mobilizadora de uma rede de organizações em defesa do ambiente, que respeita e promove a autonomia, que dá caminhos, que dá orientação, que integra, que articula. Na realidade, este sempre foi o modelo da SOS, de desenvolver conhecimento, engajamento e políticas públicas.

A origem do Mosaico de Jacupiranga foi uma reserva natural muito antiga, tornada PE de mesmo nome em 1969, então com 150 mil hectares.

Mas o Parque nunca conseguiu funcionar. Isto ocorreu porque não desenvolveu sua infraestrutura, se sobrepôs a áreas habitadas por antigas comunidades, estimulou conflitos fundiários e foi ocupado por bairros criados a partir da rodovia Régis Bittencourt que o atravessa.

Porém, no início de 2008, foi sancionada a criação do Mosaico Jacupiranga, cujos mais de 240 mil hectares passaram a abrigar cinco Parques, além de uma dezena de reservas. O Mosaico se interliga com as áreas de preservação da Serra do Mar (SP) e Guaraqueçaba (PR), formando um gigantesco contínuo natural que é um dos mais importantes do Brasil.

Mapa do Mosaico de Jacupiranga, com as localizações das reservas.

Clayton Lino coordenou essa negociação. Ela num certo sentido replicou a troca ¼ de século antes de áreas do PETAR com os moradores do Bairro da Serra. Nestas e em outras ocasiões, ele se mostrou um técnico capaz de produzir resultados mais pela negociação do que pela imposição.

Queria fazer um comentário. Quando surgiu no Brasil na década de 1970, o perfil do ambientalismo foi por assim dizer de impacto, com voluntarismo e contestação. Essas foram, por exemplo, as trajetórias cercadas de denúncia e de polêmica de José Lutzenberger no RS e Augusto Ruschi no ES.

A partir de fins de 1990, o ambientalismo se tornou mais institucionalizado e coletivo, com protagonismo de ONGs e de Governos. É nesse contexto mais ameno que Clayton Lino operou – mais coalizão, conversa e política, mais profissionalismo, relatório e patrocínio.

As reservas do Mosaico de Jacupiranga foram criadas exatamente para acolher as atividades existentes, sejam de quilombolas, caiçaras, de caboclos ou indígenas.

Há uma dezena e meia delas, de desenvolvimento sustentável (onde estão as muitas comunidades), de extrativismo (no mangue ou na mata) e de patrimônio particular – neste caso, as primeiras duas RPPNs quilombolas do país.

Foi notável como os meros 5% do Mosaico dedicados às reservas das comunidades tradicionais foram suficientes para aliviar quase meio século de disputas fundiárias e ambientais. E o conceito de mosaico, interligando diferentes áreas de proteção, tem sido crescentemente praticado no Brasil.

A UNESCO é uma agência do ONU fundada logo após a II Grande Guerra para contribuir para a paz através da educação, da ciência e da comunicação.

Desde a década de 1970, a UNESCO vem estabelecendo com diversos países do mundo as Reservas da Biosfera. Elas são áreas onde se pretende (quem sabe utopicamente) que o desenvolvimento humano seja aliado à conservação ambiental.

Mapa mundial das Reservas da Biosfera – são cerca de 700 em mais de uma centena de países.

As Reservas são compostas por três zonas com diferentes funções. O chamado Núcleo abrange o ecossistema protegido, por exemplo, mangues, litorais, savanas ou florestas. A Zona de Amortecimento circunda o Núcleo e é usada para ações de pesquisa ou de educação. A Área de Transição contém as atividades econômicas consideradas social, cultural e ecologicamente sustentáveis – como a agricultura orgânica, a reciclagem de lixo, os viveiros de mudas ou de mariscos, as energias alternativas, a extração florestal e a pesca artesanal.

Devido ao seu tamanho e biodiversidade, o Brasil é um membro fundamental desta rede de reservas. Não realmente pelo número delas, que são apenas sete, mas por sua extensão territorial e variedade de paisagens.

A primeira de nossas Reservas foi a da Mata Atlântica, que é presidida por Clayton Lino – ele é também coordenador da nossa rede nacional de Reservas. A RBMA começou em 1991 e sua mais recente etapa ocorreu em 2019.

O tema do desenvolvimento sustentável não me parece pacífico. Num primeiro momento, parece o melhor dos mundos: a conciliação entre o progresso apaziguado e a natureza conservada. Motivo de ingênuo (ou malicioso) otimismo nos discursos dos políticos, nos pareceres dos burocratas e nas decisões dos governos.

Acusado de hipocrisia de gabinete ou de armadilha retórica, dizem os críticos que este conceito quer conciliar lógicas opostas – a acumulação, a competição, o individualismo, a velocidade  mercantil-capitalista e a dinâmica do mercado, por oposição à cooperação cíclica, lenta e coletiva da natureza.

Seus defensores me parecem utópicos, acreditando num mundo irreal de bondades. Seus críticos costumam ser terrivelmente ideológicos, catastróficos e teóricos. A meu ver, ainda não existe (ou eu não conheço) a análise prática da realidade do desenvolvimento sustentável. Não queria discutir o assunto neste momento, apenas lembrar que o conceito não é unânime.

De volta a nosso personagem, Clayton afirma: Quando se fala em proteger a Mata Atlântica hoje, tenta-se proteger os remanescentes desta floresta. Entretanto, essas áreas protegidas, são pensadas como ilhas isoladas em meio a uma paisagem destruída. Neste contexto ambiental precário, elas não conseguem sobreviver ou conservar a biodiversidade. 

Portanto, para recuperá-las, é preciso criar corredores entre elas, desenvolver atividades que não aumentem a devastação e integrar e conectar estes fragmentos entre si e com áreas protegidas. Precisamos pensar a floresta como um todo, ou seja, em unidades de paisagem a serem conservadas, restauradas e reconectadas. São os mosaicos naturais, dos quais o de Jacupiranga foi um exemplo importante.

O Brasil conta com sete Reservas da Biosfera. A da Mata Atlântica foi a primeira delas. É a maior do mundo, com 900 mil km2.

No início do século XIX, Humboldt percebeu que o ambiente funcionava como uma rede interligada e interdependente de vida e estabeleceu o moderno conceito de natureza. Dois séculos depois, Clayton Lino lutou para ampliar o conceito de ambiente, a fim de nele integrar as atividades econômica, social e cultural.

Clayton Lino parece ser um homem feliz. Entre São Paulo onde reside, Iporanga onde encontrou sua vocação e Paris onde convive com o sistema internacional de reservas naturais – este arquiteto ambiental continua tentando contribuir para um mundo melhor.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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