Embora já tivesse conhecimento sobre os caiapós, quando atravessei suas regiões no Centro-Oeste e na Amazônia, nunca tinha ouvido sobre o Projeto Kayapó ou sobre a vida do destemido norte-americano que o comandou.
Soube disso quando fui meio por acaso a Belém, visitei o Museu Emílio Goeldi e lá encontrei uma bela exposição sobre a obra de Posey.
A História dos Caiapós: O povo que chama a si mesmo de mebêngôkre fala uma língua do tronco Jê e apresenta uma organização social complexa, uma diversificada prática agrícola e uma ativa vida ritual.
São mais conhecidos como caiapós (ou seja, semelhantes aos macacos), pois seus vizinhos notaram as máscaras de macacos que usavam em suas cerimônias. Ao longo do tempo, eles acabaram por adotar esse nome. Eram antes conhecidos como coroados.
O território dos caiapós está hoje situado no Pará, ao longo do médio Xingu e do seu grande afluente Iriri. Existe uma dezena de Terras Indígenas a eles associadas, no incrível tamanho de quase 130 mil km² – imagine, do tamanho da Grécia e maior do que a Bulgária.
Ele abriga o que hoje seriam quase 14 mil indivíduos. Nem sempre foi assim: no início do século XX eram 7 mil, mas sua população caiu à metade durante o século devido às agressões dos colonizadores brancos. Para nos trinta anos seguintes passar por uma notável reversão, devido a uma explosão populacional.
A atual configuração dos caiapós resultou de um longo processo de mobilidade social e espacial. Eles se cindiram do grupo ancestral apinayé no começo do século XVIII e cruzaram o Rio Araguaia, passando a ocupar a bacia do Tocantins, entre planícies e florestas.
No fim do século XIX, os caiapós viviam divididos em três grandes tribos, por eles chamadas de os que passeiam nas planícies, os do verdadeiro grande grupo e os dos pequenos bambus. Mas a violenta chegada do homem branco os afugentou para o interior do país – a oeste, no rumo do Xingu.
Mais tarde, separaram-se em dois grupos: aqueles que quiseram se aproximar dos brancos e os que continuaram fugindo deles. Os primeiros – os que passeiam na floresta e boa parte de os pequenos bambus – foram simplesmente extintos por volta de 1930, seja pelas doenças ou pelas violências.
Devido à ameaça dos colonizadores, os demais caiapós tornaram-se extremamente agressivos. Mas foram aos poucos, durante os avanços dos anos 1960, sendo abordados e atraídos pelos brancos.
Nas décadas de 1980-90, mobilizaram-se com publicidade e sucesso por seus direitos territoriais, conseguindo então a demarcação de uma dezena de reservas indígenas. Nesta época, seus controvertidos líderes Raoni Metuktire e Paulinho Payakã tornaram-se conhecidos.
O caiapós são considerados os mais ricos indígenas do país. Ao mesmo tempo em que lutavam por seus territórios, deles tiravam proveito comercial. Os caiapós negociaram, inicialmente através do cacique Tutu Pombo, com madeireiras e garimpeiros, para a exploração do mogno e a extração do ouro – além de ceder aos castanheiros os seus frutos. De heróis ambientalistas passaram a latifundiários capitalistas.
Mas é preciso fazer duas exceções. O grupo dos mekrãgnoti cindiu-se na década de 1960 e buscou novamente o interior longe dos brancos, ocupando um território de floresta amazônica. E o grupo dos xikrin rescindiu na década de 1990 seus contratos com as madeireiras e desenvolveu uma exploração florestal sustentável.
A Saga das Migrações : Enquanto ocupavam a bacia do Tocantins, as aldeias dos caiapós ficavam sempre perto da floresta, podendo portanto tirar partido dos dois biomas, campo e mata. Quando migraram, eles não ocuparam as margens dos grandes rios navegáveis, como fizeram as tribos amazônicas.
Ao contrário, alojaram-se no interior das florestas, normalmente com grandes aldeias – 200 a 500 índios vs. a prática das outras etnias de até 80 pessoas. Veja que descartaram a fertilidade vegetal e a presença animal encontrada no entorno das grandes águas, talvez para se protegerem dos invasores.
Ao se refugiarem no interior, junto aos cursos menores, a caça foi se tornando mais rara e suas roças, mais distantes. Inicialmente, passaram a construir pequenas aldeias junto às roças afastadas, mas notaram que eram vulneráveis a ataques rivais.
Durante o século XX, os caiapós desenvolveram um outro sistema de ocupação. Construíram grandes aldeias medianamente distantes entre si, que eram habitadas em rotação. Enquanto ocupavam uma delas, por talvez dois anos, a caça e o solo da outra eram regenerados. Então, podiam depois retornar a ela. Assim, conseguiram manter sua organização de grandes aldeias bem abastecidas.
Este novo modelo vigorou por talvez meio século, até que os postos instalados pelo governo e pelos missionários passaram a atraí-los, pela oferta de comunicações, mercadorias e medicamentos. Evidentemente, os postos ficavam na margens de rios navegáveis, o que induziu os caiapós a novamente mudarem sua estratégia de ocupação.
De nômades, tornaram-se então sedentários, com curtas migrações feitas apenas pelos homens. E a pesca, mais do que a caça, tornou-se importante na sua dieta.
Assim, como diz o ISA – Instituto Sócio Ambiental, no curso dos dois últimos séculos a antiga ocupação em um ambiente misto de cerrado e floresta, onde as aldeias eram construídas ao longo de rios menores, cedeu progressivamente lugar à ocupação em um habitat exclusivamente coberto pela floresta, com aldeias situadas na proximidade de grandes rios.
A Cultura Caiapó: Os caiapós praticam a meu ver o mais belo mito da criação. Segundo eles, os caiapós viviam no céu, mas migraram para a terra, descendo pelos fios prateados da deusa aranha. As fogueiras dos que não puderam descer hoje decoram como estrelas o firmamento.
O cosmo caiapó se divide entre a terra e o céu, as águas e o mundo subterrâneo. A terra se separa entre clareira e floresta. A primeira é o lugar do social, do parentesco, da aliança. A segunda abriga o inimigo, a violência e a caça. A água relaciona-se com a solidariedade e a regeneração. No subterrâneo os homens são presa e não predadores. O céu é a origem da humanidade.
O canto, a dança e os ornamentos são reproduzidos nos rituais para encenar a situação da humanidade no cosmo. O centro do mundo é o manacá. Dançando em círculos para acompanhar o sol ao som do manacá, os caiapós retornam à sua origem mítica e recriam a energia que mantém a natureza e suporta a comunidade.
Os caiapós têm uma elaborada organização social e política. Curiosamente, seus chefes não detêm poder absoluto e devem persuadir a tribo. Daí a importância da oratória e da eloquência, que são altamente valorizadas. Os caiapós temem os mortos, os espíritos, o sangue e a noite.
Seus longos rituais incluem os de confirmação dos nomes pessoais, os relativos à colheita ou à caça e os ritos de passagem. A nominação das pessoas tem enorme importância – eles têm nomes chamados de comuns e de belos ou grandes. Uma vez nominados, tornam-se seres completos.
A Vida de Posey: Darrell Posey, o homem que os caiapós chamavam de Yairati, nasceu em 1947 nos Estados Unidos, numa família de fazendeiros há muitas gerações. Formou-se em Biologia e Antropologia e veio ao Brasil para continuar suas pesquisas.
A partir de 1982, criou o Projeto Kayapó do qual falaremos em seguida. Os resultados deste programa permitiram descobrir que os caiapós possuíam um vasto universo de saberes para o uso sustentável dos recursos naturais.
Com o tempo, Posey tornou-se um ativista na defesa dos direitos indígenas, como por exemplo aconteceu com os irmãos Villas Boas.
No seu entender, estes incluíam inclusive a propriedade intelectual sobre suas práticas. Participou da Declaração de Belém de 1988 para o tratamento ético dos índios e do Parlamento da Terra em 1992 no Rio de Janeiro pelos direitos indígenas.
Ao se opor à construção de uma hidrelétrica no Rio Xingu, passou a ser perseguido pelo Governo. Sem alternativas profissionais, deixou o Brasil em 1993 e associou-se em seguida à Universidade de Oxford na Inglaterra. Suas convicções sobre os conhecimentos indígenas não foram lá bem aceitas.
Posey foi uma pessoa agregadora, que conseguiu reunir dezenas de estudiosos de diferentes disciplinas e inclinações. E também muitas organizações, locais e estrangeiras, que financiaram os seus trabalhos.
Era descrito como alegre e criativo, amante das longas viagens, da música e da culinária. Ele me lembrou o amável médico Noel Nutels, que tanto colaborou com o Marechal Rondon.
Algumas de suas conclusões são hoje consideradas emocionais e mesmo românticas. Mas a sua prática de colocar as vozes indígenas falando por si mesmas, ao invés de serem defendidas por terceiros, foi autêntica e impactante. E seus achados sobre a etnobiologia foram duradouros.
Cito a seguir um comentário editado do caiapó Mokuka: Ele era engraçado demais! Gostava de conversar e de brincar. Ele comia as coisas do índio, sentava como índio e brincava com as crianças, fazendo mal de brincadeira, como se fosse verdadeiro! Quando ia para a aldeia, dificilmente ele saía de lá para voltar para a cidade. Ele ficava umas semanas ou uns meses. Ele era tão bom para nós, pois explicava também, para os grandes e os pequenos, para os homens e as mulheres, para todos.
Posey jamais retornou ao Brasil e morreu em 2001 aos 54 anos, devido a um tumor cerebral. Durante suas últimas semanas, apenas falou em caiapó ou português, refletindo a profunda identificação com a antiga vida no Brasil. Suas cinzas foram dispersas num pequeno lago perto da floresta onde residia na Inglaterra.
A Sociedade Internacional de Etnobiologia – ISE, que ajudou a fundar, criou uma bolsa em seu nome para promover a compreensão das pessoas com o seu ambiente, voltada para candidatos que apoiem povos indígenas e comunidades tradicionais.
O Projeto Kayapó: Os caiapós são conhecidos por sua rica compreensão do mundo, que interliga vários campos de conhecimento. Darrell Posey os visitou numa situação de tensão, quando a reserva indígena estava sendo demarcada.
Durante o período de quase 15 anos em que residiu no país, reuniu cientistas de inúmeras disciplinas no Projeto Kayapó, que se estendeu de 1982 a 92.
Havia botânicos e linguistas, agrônomos e antropólogos, astrônomos e educadores. O projeto foi conduzido principalmente na aldeia Gorotire, a 100 km de Redenção do Pará, que é hoje acessível por asfalto.
O Projeto Kayapó documentou as roças indígenas, que obedecem a um formato circular, com fileiras concêntricas. No centro do plantio ficavam as batatas-doces, que necessitavam mais luz; em torno dele, apareciam os inhames, abóboras e mandiocas e, em seguida, o milho, o arroz e as melancias. Os cultivos mais altos, como das bananas, urucuns, canas de açúcar e mamões, marcavam o limite da roça com a floresta.
Uma vez cessada a atividade agrícola, a roça continuava produzindo seus frutos e servia de banco de sementes e área de caça, pelos animais atraídos. As grandes folhas caídas das culturas maiores ajudavam a fertilizá-la. Posey desempenhou papel relevante no entendimento e na valorização dessas práticas.
Os resultados revelaram que estes indígenas tinham uma função importante na conservação da floresta amazônica. Muitas vezes, os projetos de conservação da biodiversidade se limitam á proteção de algumas poucas espécies, sem considerar o manejo do território como um todo ou o sistema agrícola associado a elas. As contribuições dos caiapós foram reconhecidas como mais completas e abrangentes.
Entre os caiapós, existem indivíduos que se especializam em determinados saberes – nos solos, plantas, animais, medicina ou rituais.
A etnoecologia – que Posey definiu como o conhecimento das relações entre os humanos, as plantas e os animais – é representada simbolicamente pelos caiapós em cerimônias durante os ciclos anuais da natureza.
Posey descobriu que muitos ecossistemas da Amazônia não eram puramente naturais e resultaram da presença histórica de seus habitantes que, com suas práticas, modificaram o ambiente.
Um exemplo seriam os apêtê, ilhas de floresta plantada no meio do cerrado. Seus solos fertilizados por eles receberiam espécies úteis de vegetação, que funcionariam como reservas de recursos e locais de defesa.
Os caiapós dividem suas doenças entre as causadas pelos espíritos e pela natureza. Os pajés tratam de ambas, usando rituais e plantas, conforme o caso. O Projeto Kayapó identificou quase uma centena de plantas usadas para tratar da fertilidade, da doença e da gravidez.
Os caiapós também distinguem suas próprias enfermidades daquelas provocadas pelos brancos, como varíola ou malária. Estas os enfraqueceram e os tornaram dependentes da medicina ocidental.
A Usina Belo Monte: Existem a meu ver dentre os grandes rios amazônicos dois que são especiais: o Tapajós, com suas sedutoras águas limpas e esverdeadas que pulsam como se fossem vivas, e o Xingu, com as diferentes etnias indígenas ao longo de seu leito.
Pois se você olhá-lo num mapa, perceberá que o Xingu faz ao norte uma curva curiosa, onde seu leito se estreita, para se alargar em seguida, no rumo do Amazonas.
Pois é lá que, há meio século e junto à cidade de Altamira, começou a ser estudada uma hidrelétrica. Finalmente, na década de 1980, o Governo propôs a construção de uma grande usina no Xingu.
Posey coordenou um estudo socioambiental onde concluiu que os territórios dos povos indígenas seriam afetados. Como o Governo naturalmente ignorou este impacto, Posey junto com dois líderes indígenas denunciou em 1987 o empreendimento junto ao Banco Mundial, que o financiaria.
O Governo enquadrou Posey (ironicamente, junto com seus companheiros índios) na Lei dos Estrangeiros, que impedia manifestações políticas por parte deles. A repercussão internacional causou a suspensão do projeto, que entretanto foi retomado mais tarde. O futuro dos indígenas continuou, entretanto, mal resolvido.
Inicialmente chamada de Kararaô, que na língua dos caiapós significa inacreditavelmente Grito de Guerra, esta usina se deparou com forte oposição das populações afetadas de ribeirinhos, indígenas e residentes. A área inundada seria de 1/3 de um município médio brasileiro. Durante as décadas seguintes, o projeto foi debatido e criticado, até ser implementado a partir de 2016.
Ele é hoje conhecido como Belo Monte. É o terceiro maior empreendimento mundial, depois de Três Gargantas na China e Itaipu entre o Brasil e o Paraguai. Enquanto escrevo essas linhas, o projeto acaba de ser inaugurado, cercado de muita polêmica – corrupção, promessas descumpridas, violência, dúvidas técnicas.
Os esforços dos indígenas, ambientalistas e cientistas apenas adiou, mas não foi capaz de evitar esse empreendimento, que custou a carreira de Darrell Posey em nosso país.