O Boqueirão da Onça (Parte I) – Escravos e Felinos, Águas e Ventos

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Se você pudesse observar o local onde hoje é a Bahia cerca de dois bilhões de anos atrás, veria uma região recoberta pelas águas rasas do oceano (que aliás também cobriam o país). Mas elas acabariam recuando e gradualmente as terras emergiriam.

Esse foi um evento planetário do qual se originaram os continentes. As primeiras paisagens então formadas foram os desertos, pois não havia ainda vegetação e o vento nivelava a areia que os recobria.

Foi nesta época que se formou a Cordilheira do Espinhaço, composta pelos quartzitos de deposição marinha que afloraram. Por assim dizer, ela surgiu do mar e do vento.

Na realidade, ela se ergueu a partir da colisão de duas placas tectônicas, que são grandes blocos rochosos que navegam dentro da crosta terrestre, impulsionados pelo magma do interior. Essas colisões tectônicas ocasionaram vários acidentes do relevo em todo o mundo.

Cordilheira do Espinhaço, com as áreas acima de mil metros e os rios que, à direita da cordilheira, correm todos para o mar. A área ao norte é o Lago de Sobradinho.

O encontro destas placas gerou um empurrão no sentido leste-oeste, que explica a orientação básica dos quartzitos do Espinhaço. Mas os olhos experientes dos geólogos detectam que essa enorme cordilheira não apareceu ao mesmo tempo. Ela começou pelo norte, em terrenos onde a composição das rochas era ainda variável, oscilando entre o arenito, quartzito e o calcário.

O Espinhaço é belamente retilíneo, como pode ser observado nas duas serras baianas próximas a esses terrenos variáveis, na Mangabeira e no Tombador. Porém esses  nossos terrenos o Espinhaço apresenta muitas dobras, com corcovas, tabuleiros e gargantas, como se ainda estivesse incerto quanto ao rumo que viria a tomar.

Então, conheça a grande cordilheira onde ela começou: no que hoje é o centro baiano, exatamente quando o Espinhaço se interrompe, seccionado pelo curso do Rio São Francisco no sentido do mar.

É lá que existe um conjunto de duas dezenas de serras, que chamo coletivamente de São Francisco – ele encerra uma enorme região árida no sertão baiano de Sento Sé e Campo Formoso, assunto deste artigo.

O interior da Bahia pertencia durante a Colônia a duas famílias sertanistas, chamadas de Casa da Torre (Garcia d´Ávila) e Casa da Ponte (Guedes de Brito), fundadas entre os séculos XVI e XVII, a primeira por um administrador português e a segunda, por um pecuarista baiano.

As ruínas da Casa da Torre na Praia do Forte (BA), que comandou o maior latifúndio do mundo.

O Castelo da Torre ainda existe, preservado na Praia do Forte perto de Salvador. A sede da Ponte ficava no interior, em Morro do Chapéu, a 500 km da capital baiana.

Como escreveu o historiador Antonil: Porque a Casa da Torre tem duzentos e sessenta léguas pelo Rio São Francisco, acima à mão direita, indo para o sul, e indo do dito rio para o norte chega a oitenta léguas. E os herdeiros da Casa da Ponte possuem desde o Morro dos Chapéus até a nascença do Rio das Velhas, cento e sessenta léguas. E nestas terras, parte os donos delas têm currais próprios, e parte são dos que arrendam sítios delas pagando por cada sítio, que ordinariamente é de uma légua.

 Ao atento leitor informo que uma légua vale 5-6 km e que a área da Casa da Torre era descrita como 800 mil km², ou um décimo do que hoje é todo o Brasil. Desconfio que esta estimativa seja exorbitante – de qualquer forma, era na época o maior latifúndio mundial.

Suponho que a Casa da Ponte (mantida a mesma base exagerada) possuísse algo como 350 mil km². As duas somadas, entretanto, ocupariam o dobro da atual Bahia.

Porém é possível que o território baiano se estendesse então bem além do Rio São Francisco, que a Bahia compartilhava com Pernambuco. Note que elas tanto exploravam como arrendavam as terras.

A Casa da Torre permaneceu poderosa por três séculos. Desbravou e colonizou o oeste baiano, atacou e escravizou as tribos dos paiaiá, explorou os criatórios de gado e os engenhos de açúcar e manteve um forte poder militar.

A Casa da Ponte teve também importantes atividades de povoamento, pastoreio e defesa militar, dizimando os índios tapuia do oeste baiano.

O poder da Casa da Torre decaiu com os novos povoados do século XVIII ligados ao ouro mineiro, que romperam com o modelo anterior de abastecimento de gado para as vilas baianas. A terra de pecuária no sertão baiano se desvalorizou junto com a queda da renda gerada e diminuíram os pagamentos dos que a arrendavam.

Ruínas da Fazenda Escorial do século XVII, no meio da mata espinhenta que cresceu à volta.

Em meados do século XIX a Casa da Torre finalmente se fragmentou entre os herdeiros do Visconde da Torre. A Casa da Ponte foi enfraquecida já no século XVII, com a morte de seu fundador.

Por que estou contando essa antiga história? Por dois motivos, e o primeiro decorre da Fazenda Escorial, um grande estabelecimento onde a Casa da Torre reunia seus escravos. Ficava onde é hoje a localidade de Gameleira do Dida em Campo Formoso e existem ainda as suas ruínas.

Com a decadência da Torre, os escravos se dispersaram e formaram quilombos. Lá perto surgiu Lage dos Negros, referida como o maior quilombo do país, com mais de dez mil habitantes. Talvez possa ser a sede de um novo município que viria a ser criado na região.

A segunda razão é a prática local e secular das comunidades Fundo de Pasto, que exploram as terras coletivas. O pastoreio extensivo das cabras e a agricultura de subsistência são feitas desde sempre de forma comunitária nas terras de uso comum.

Esta operação pouco usual foi a maneira encontrada pela população sertaneja para manter uma atividade econômica mais estável frente ao clima semiárido e à pobreza da caatinga, diante de poderosos proprietários distantes. É curioso pensar como os Fundos de Pasto foram socialmente opostos aos latifúndios criados pelas Sesmarias.

Mapa de Localização da Represa de Sobradinho. Fonte – Estudo de Ana Carolina Martinelli Braga.

Observe por um momento o curso do Rio São Francisco e verá que ele tem dois trechos estranhamente inchados. O menor deles corresponde à Usina de Paulo Afonso, de que falarei um dia, mas não agora. O maior representa o gigantesco Lago de Sobradinho, quando o rio se alarga durante 300 km e 4 mil km² de área, para abastecer a Usina de mesmo nome.

As cidades de Casa Nova, Pilão Arcado, Remanso e Sento Sé foram inundadas em meados da década de 1970, o que obrigou a remoção de 70 mil pessoas para as novas vilas de mesmo nome construídas mais acima.

Mas nos períodos de seca essas ruínas teimam em emergir de dentro das águas. Da mesma forma como as pinturas rupestres dos ancestrais dos índios dizimados pelos brancos.

Como engenharia, Sobradinho talvez pareça formidável, com a normalização da vazão do São Francisco e a operação regular de todas as usinas nele instaladas. O sistema pode suportar dois anos inteiros de estiagem e funcionar com até um décimo de seu volume. Mais uma obra enorme para saciar a voracidade por energia do progresso.

As cabras criadas no Fundo de Pasto sendo soltas de madrugada no sertão baiano. Veja o enorme cacto mandacaru.

Mas, do ponto de vista social, foi um fracasso. As populações afluíram para o São Francisco desde o século XVII, seja para o ciclo do couro, a busca dos minérios ou a agricultura nos vales úmidos. Elas eram tradicionais, baseadas em atividades econômicas rudimentares e em valores culturais familiares.

Sobradinho trouxe uma dinâmica nova, decorrente da construção e da irrigação, que não favoreceu o povo deslocado, que foi sendo degradado e esquecido.

Mas não houve um prejuízo completo. A irrigação facilitou a fruticultura, com novos pomares que fazem riqueza de Petrolina (PE). Hoje sua população é o dobro da de Juazeiro (BA), de que é separada pelo São Francisco.

A educação, o turismo e a indústria puderam florescer, apesar da enorme desigualdade social. É o que se chama de progresso, um aumento de riqueza que apaga o passado.

O impacto ambiental rio abaixo foi nocivo, com a eliminação dos ciclos naturais de cheias e vazantes, que participam da criação da vida, seja no rio ou nas lagoas.

O controle do rio causou a retenção dos sedimentos e o recuo de sua foz, tristemente invadida pelo mar. Essa situação foi descrita como uma história construída pelas pessoas que viveram o rio livre e amargam a vida na borda de um canal de águas que correm a pulso das usinas.

 E é esse mesmo São Francisco, exatamente no trecho em que a barragem ampliou grandemente o espelho de suas águas, que serve de limite para a região de que quero agora lhe contar.

Relevo da Bahia na região do Boqueirão da Onça. A Serra do Angelim corresponde à Serra de São Francisco. A Chapada Diamantina está ao sul e Sobradinho ao norte.

E essa região é enorme: estende-se desde as margens do Lago de Sobradinho ao norte até o término da Chapada Diamantina a sul. A Chapada avança além do conhecido Parque Nacional de mesmo nome, ultrapassando as cidades de Morro do Chapéu e Jacobina e adentrando de comprido o município de Campo Formoso.

Pois é em Campo Formoso que fica um grande território de caatinga, e em Sento Sé de serranias, abrangendo algo como 15 mil km².

O último dos nossos Presidentes que ainda falava português estabeleceu que lá seria feita uma reserva natural, mas ela nunca foi regulada. O objetivo era preservar a diversidade da vegetação, as fontes d´água da serra e a fauna variada, junto com os registros rupestres e os fósseis pré-históricos.

Nos vinte anos seguintes, houve pouca mudança que não fosse uma lenta ocupação dos terrenos com alguma umidade. Existem hoje seis dezenas de fazendas do mais variado tamanho (há algumas imensas) e uma centena de povoados (dos quais pude identificar 75), para uma população dispersa de 15 mil sertanejos.

O manejo dos animais, principalmente cabras e ovelhas, é extensivo, as grandes áreas da caatinga lhes servindo de forragem. A agricultura é de subsistência, com plantios rudimentares de milho, feijão e mandioca. Aos poucos, a cultura de legumes por gotejamento tem aumentado, à custa da escassa água existente.

Mapa de localização do PN e APA Boqueirão da Onça, BA. A área clara ao norte é o PN e a escura ao sul é a APA.

Evidentemente, esta ocupação dificultaria a decretação de um Parque Nacional, embora as populações fossem pouco invasivas. Porém, dois acontecimentos começaram a mudar essa situação.

Apareceram as mineradoras à busca de calcário e mármore, ferro e manganês, cristais e ametistas – vale lembrar que Campo Formoso é a capital das esmeraldas. Você sabe que sua ação nunca é cuidadosa, com as escavações, os desbarrancamentos e as aberturas de caminhos.

Não são moinhos de vento. As imensas hélices que se espalham pela Chapada Diamantina simbolizam o futuro. Elas integram um dos 150 parques de energia eólica instalados no interior, o que fará da Bahia o maior produtor de energia eólica do país, diz um entusiasmado jornalista. Os tabuleiros varridos pelo vento da região são locais excepcionais para a construção das torres eólicas.

Em Sento Sé Campo Formoso já existem três parques eólicos, avançando para três centenas de torres. Elas ficam em lugares alugados pelas operadoras, gerando renda segura para seus proprietários – diz-se que o valor da terra triplicou depois da chegada delas. Porém o local de um conjunto de torres deve ser privado e não pode integrar uma reserva. Portanto, a serra dos ventos não poderia conviver com o parque.

Mapa do PN e APA Boqueirão da Onça, BA. A APA é cruzada de sul a norte pelo Rio Salitre.

Em algum momento teria de haver um compromisso entre a preservação da natureza e a exploração econômica. Em 2018 foi criado o Parque Nacional do Boqueirão da Onça com 350 mil hectares, junto com a Área de Proteção Ambiental de mesmo nome, de 500 mil hectares.

O desenho foi uma acomodação, que excluiu as áreas de mineração e de correntes eólicas. Naturalmente, os espaços dos Fundos de Pasto e dos muitos vilarejos também foram evitados.

Como é o mais recente Parque Nacional do Brasil e qual poderá ser o seu destino?

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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