O Boqueirão da Onça (Parte II) – A Amiga da Onça

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O PN-APA do Boqueirão da Onça é assim chamado devido à presença de uma formação com este nome na sua parte norte, voltada para o Lago de Sobradinho.

Na realidade, o conjunto de serras (que chamo neste texto de São Francisco) é enorme, existem duas dezenas delas, especialmente em Sento Sé, com uma orientação geral SW-NE, aproximadamente paralela à curva do rio.

A ocupação humana ocorreu basicamente ao sul, de forma que quase não há caminhos interiores ligando povoados de cada um dos lados da serra.

Para os caboclos, a serrania é como se fosse imaterial, pois não a percorrem, não a escolheram para fazer suas casas ou roças e não criam naquele lugar seus animais. Como se fosse um limite ou anteparo para o horizonte de suas terras lá embaixo.

A rocha básica desta região é o arenito, embora haja muito calcário e algum quartzito. As altitudes pouco excedem os 800-900 metros – não encontrei ponto algum acima de 950 metros (embora se comente de pontos acima de 1.000 metros). As áreas planas ficam talvez a 400-500 metros.

Mapa da Serra do Boqueirão da Onça. Obtido de carta feita manualmente meio século atrás, antes da Barragem de Sobradinho. Notar o longo tabuleiro interno da serra.

A serra principal é exatamente o Boqueirão de Sento Sé – nome dado na região a uma garganta entre encostas. Ela é uma chapada estreita, com 45 km de comprimento, que corre entre duas vertentes. A sul é mais regular, íngreme e irrigada. A norte apresenta um desenho mais acidentado.

É um conjunto esplêndido, o mais longo e elevado deles, que abriga preciosas nascentes e recantos florestados, e parece comandar toda a

A vegetação é surpreendentemente variada. Predomina a paisagem lenhosa, espinhenta e desfolhada da caatinga, que me pareceu basicamente arbustiva.

Porém nos boqueirões das serras, onde existe alguma umidade, surgem bosques que lembram a mata atlântica. Nos tabuleiros é também possível encontrar matas. E, no bordo norte, aparecem manchas de cerrado. A caatinga lembra os campos rupestres, pois contém muito endemismo – são nada menos do que 480 espécies vegetais próprias.

Na caatinga o único rio permanente é o Pacuí, que seria um afluente do São Francisco se a água que os sitiantes drenam de seu leito tivesse volume suficiente chegar lá.

As duas bacias da região são as do Salitre e do Itapicuru. O primeiro é um curso seco de 330 km, orientado a norte para o São Francisco – é ele que penosamente atravessa o Parque. O segundo é perene e independente, afastando-se para o leste e desaguando no oceano depois de 480 km.

Os Felinos Brasileiros. Fonte: CENAP – Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros do IBAMA. As fotos são de Adriano Gambarini.

O Parque é o maior reduto de felinos do Nordeste: 30 onças pintadas e 180 pardas. Somavam talvez 300 animais dez anos atrás.

A presença desta quantidade de felinos, que ocupam o topo da cadeia alimentar, indica uma certa fartura alimentar. As onças naturalmente habitavam as serras, mas a perturbação das torres eólicas as tem afugentado. Passaram a descer para a caatinga, onde têm sido caçadas.

Existem muitos outros mamíferos de médio porte, desde tamanduás e veados a jaguatiricas, raposas e gatos maracajá. As aves são muito diversas, incluindo a ameaçada arara azul de lear, que é muito conhecida em Canudos.

O Boqueirão talvez seja visualmente ilusório devido a seu aspecto sofrido, porém dispõe de muito alimento escondido para seus inquilinos. Como a caatinga, que rapidamente se transforma de estéril em verdejante nas chuvas.

As duas maiores cavernas brasileiras surgem modestamente de aberturas no solo pobre e raso da caatinga: a Toca da Boa Vista com 114 km e a vizinha Toca da Barriguda com 35 km.

Suas bocas são modestas, meras rampas por pedras derrubadas, formadas por acidentes posteriores à sua existência. Foram formadas pelo rebaixamento do lençol freático, que deixou um interior oco, desigual e labiríntico.

Interior da Toca da Boa Vista, a maior caverna brasileira.

Sua exploração começou com o Grupo Bambuí na década de 1980. Costumam visitá-la sempre no fim de cada ano, já foram mais de vinte expedições.

Elas resultaram no aumento do tamanho medido da caverna, cujo potencial se acredita de 150 km – foram alcançando sucessivamente os salões Fim do Mundo, Terceiro Mundo e Além Mundo. Não é uma caverna fácil, com bastante pó e calor, presença de abismos e muitas ramificações.

A Toca da Barriguda tem também seus enroscos, imagine a razão de algumas passagens bizarras: Homem Geleia, Lobo Deitado, Abismo do Bode ou do Sapo. As duas grutas são decoradas, embora a Barriguda seja mais exuberante.

Apesar de muita busca, até hoje não foi encontrada a misteriosa ligação entre essas cavidades. E deve existir, pois são próximas, contemporâneas e de origem comum. Neste caso, o complexo poderia chegar a uma projeção de 300 km. Mesmo assim, estaria longe de ser a maior do mundo.

Existem 70 cavernas nos terrenos calcários de Campo Formoso – Calor de Cima, Toca do Pitu, Martiniano. Algumas são úmidas, longas e difíceis, como a Gruta do Convento. Outras são curtas e secas.

A Gruta do Sumidouro é espetacular, com seu teto alto, suas aberturas luminosas e o preguiçoso riacho no seu interior. Vale lembrar que algumas das cavernas contêm fósseis de animais que nelas ficaram aprisionados.

Paredes rochosas em Mata Roçada, Campo Formoso, BA. Há inúmeras pinturas rupestres neste local, ao longo de 3 km de paredes.

O patrimônio cultural é impressionante, formado por pinturas e gravuras primitivas, que podem remontar a 16 mil anos atrás (não sei como essa datação foi feita). Acho que os dois locais mais conhecidos são a parede do Queixo Dantas, com representações naturalistas e geométricas, e do Mato Roçado, com enormes bonecos humanos.

Sempre na cor sépia, têm um desenho expressivo, embora nem sempre movimentado. Porém a estimativa de 3 mil sítios parece exagerada – existem pouco mais de mil no tão pesquisado PN da Serra da Capivara.

Associados às paredes areníticas foram achados fósseis da megafauna – uma preguiça gigante e um tigre dentes de sabre – que provavelmente estava entrando em extinção quando a região se tornou habitada.

Vale lembrar que, assim como na Serra da Capivara, o Boqueirão era mais úmido quando dos registros rupestres, que foram anteriores e contemporâneos à desertificação do Nordeste.

Na sua natureza rude, no seu panorama enorme e no seu povo pobre, o Boqueirão é uma experiência única.

Leiam agora as palavras de Ângela Kuczach: Caminhar pela paisagem agreste do Boqueirão da Onça é uma experiência de vida. E quem pisa por aquelas paragens sente na pele o calor escaldante e o sofrimento da população pobre do entorno, vê seus paradigmas caindo por terra um a um. Foi lá, em 2012, que entendi que a diferença entre morte e vida está na presença da água (…) onde isso não acontece, a miséria prevalece além da esperança. Caminhar pelo Boqueirão da Onça é entender que uma unidade de conservação é também uma ferramenta de justiça social, além de essencial para a biodiversidade e o maior bem que se pode deixar para um povo.

A serra e a caatinga no PN Boqueirão da Onça de Sento Sé e Campo Formoso (BA).

Em qualquer lugar do mundo desenvolvido, uma reserva com os atrativos naturais, culturais e sociais como o PN do Boqueirão mereceria uma gestão diligente. Mas não aqui, a reserva ficou sem gestor até o fim de 2019. Quem o assumiu foi uma moça que, até então, monitorava há muitos anos de forma pioneira as onças da região.

Vou contar sua história. Cláudia Bueno de Campos é uma mulher alta e serena, discreta e segundo ela tímida, que se expressa com simplicidade e precisão, e que há muitos anos persegue a sua vocação de conhecer os nossos carnívoros.

Nasceu nas proximidades de Campinas e, por longo tempo e com muito custo, conseguiu se formar em Biologia, cursando depois o Doutorado. Continuou se especializando em mamíferos silvestres, até que apareceu uma vaga no IBAMA, para o estudo dos mamíferos na bacia do São Francisco.

Claudia Bueno de Campos, atual gestora do PN Boqueirão da Onça, na caatinga baiana. Nesta situação estava tentando resgatar uma onça presa numa caverna.

Evidentemente, isto só seria produtivo no curso médio do rio, em regiões mais áridas e vazias. Durante um tempo, a presença de Cláudia era intermitente, até que se mudou em 2006 para Petrolina.

Foi neste ano em que, pela primeira vez, foi descoberto um rastro de onça. Até então, não se sabia de sua existência, pois viviam refugiadas na serra, local não trafegado pelos sertanejos. Foram dois anos para conseguir filmar os primeiros pares de onças pintadas e pardas.

Cláudia explica que, no Pantanal, é possível encontrar cinco delas numa semana, mas na caatinga seus hábitos e avistamentos são diferentes. Ela empreendeu de forma solitária o programa de monitorar a população de felinos da serra, até que teve a ajuda de duas especialistas e fundou em 2012 o Programa Amigos da Onça.

Diz ela: Enquanto o ICMBio não conseguia caminhar na região, o projeto fez atividades com as comunidades do entorno e sempre levou o recado da importância da conservação da caatinga da região, e toda sua fauna e flora.

Ela sabia que a caatinga era um território de conflito entre os felinos e os rebanhos de caprinos. As mortes destes eram invariavelmente atribuídas àqueles, embora houvesse muitas outras causas naturais e acidentais. Mais tarde, Cláudia conseguiu os materiais para construir currais cobertos para abrigar os rebanhos à noite, o que reduziu as perdas.

Cláudia observando uma onça morta. A onça pintada Vitória, a primeira delas a ser monitorada, foi morta em retaliação ao movimento em defesa dos felinos.

É surpreendente notar que, até recentemente, o trabalho de Cláudia vinha de projetos ou contratos de médio prazo, seja junto ao Centro de Pesquisa de Carnívoros do IBAMA (2012) ou à ONG Instituto Pró-Carnívoros (2019). Até que foi indicada em plena pandemia de coronavírus para chefiar o Parque.

Durante um longo período, o IBAMA tentou negociar a instalação de uma reserva que, de fato, pudesse proteger a natureza. Cláudia conta que em 2008 houve um projeto a seu ver viável, que abarcava a serra e não interferia com as comunidades. Na época, os crimes ambientais vinham do fogo, da mineração, da caça e do garimpo.

Até que chegaram as eólicas. Estas não são empresas locais como as mineradoras ou os garimpos. São negócios de fora, bem capitalizados, com procedimentos estabelecidos e larga experiência técnica e política. Não tiveram dificuldade em abordar o Governo da Bahia.

Note que a Bahia não detinha até recentemente nenhuma terra pública, estas lhe foram doadas pela União na gestão do PT. Cabe hoje portanto à Bahia a aprovação e fiscalização dos projetos.

Então as eólicas obtiveram a serra, onde instalaram suas torres ao sabor do vento. Por enquanto, três delas possuem parques eólicos na região, mas há outras quatro concorrentes.

A frágil caatinga não aparenta ser capaz de resistir às agressões para a instalação dos parques. E os assustados felinos não parecem suportar o ruído das hélices cortando o ar do sertão.

Turbinas eólicas da Renova perto de Guanambi na Bahia. Note a destruição na crista do campo.

Turbinas eólicas da Usina Delfina, embelezando mais uma das paredes virgens do sertão baiano.

 

 

 

 

 

Você sabe que no Brasil os Parques Nacionais não dispõem de recursos – montagem de estruturas, educação ambiental, instalação de caminhos e sinalização, combate à caça e à apanha, ação social.

Cláudia não os tem e provavelmente não os terá, a menos de alguma doação ou compensação ambiental. No momento, dispõe de apenas dois funcionários fixos, fora brigadistas temporários.

Menos ainda dispõe de apoio frente a políticos venais e empresas gananciosas. Não me parece que será um final feliz, por mais que Cláudia Campos consiga manter sua integridade física e moral.

Mas você não saberá nada disso. Comprará o presente livro num sebo e ficará intrigado com este relato. Lembrará de visitar um parente em Juazeiro e irá com ele até o Parque. No recente Centro de Visitantes, verá duas onças empalhadas, mapas coloridos que não entenderá e muitas fotos de aves. Conhecerá as bocas das cavernas, subirá na passarela do Queixo Dantas e atravessará maravilhado o Sumidouro.

Seu guia lhe dirá que você foi premiado, poderá galgar a serra num veículo traçado. Lá em cima, contemplará emocionado as inocentes torres brancas decorando com graça o solo rude e seco do Boqueirão. Ao fundo, avistará um lago enorme, com toda a água do mundo. E pensará como é bonita a nossa natureza.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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