Durante muitos anos, percorri trilhas no Brasil e no Exterior, principalmente de montanhas. Nunca havia considerado participar de uma peregrinação. Até que li uma reportagem sobre um certo Caminho do Sol, através do interior paulista. Ele visava replicar aqui o conhecido Caminho de Santiago de Compostela na Espanha.
Eu estava na época envolvido no desenvolvimento de uma enorme trilha ao longo da Mantiqueira – que apelidamos de TransMantiqueira e que nos tomou vários meses, porém que interrompemos antes do fim.
Achei que seria interessante conhecer a organização do Caminho do Sol e entrei em contato com seu idealizador, Jonas Ramos. Assim foi que, três meses depois, acabei integrando o primeiro grupo de peregrinos a estrear o Caminho.
São Tiago foi um dos apóstolos que, após a morte de Jesus, peregrinou extensamente pela Espanha. Muito tempo depois, surgiu na Idade Média o relato de que a luz das estrelas iluminava o campo onde jaziam seus restos mortais. Mais tarde, foi construída uma catedral neste campo das estrelas, que acabou originando a peregrinação de Santiago de Compostela.
Todo o ano, no inverno ou no verão, dezenas de milhares de turistas caminham de 200 a 1.000 km, percorrendo as terras espanholas, atravessando inúmeras vilas e abrigando-se em albergues mantidos pelo governo do país, até alcançarem a catedral dedicada a São Tiago. As pessoas que fazem o trajeto falam de recolhimento, de convivência, de conhecimento, de paciência.
Ramos obteve o apoio do principal hospedeiro deste caminho, Jesus Jato, para implantar no interior de São Paulo um percurso dedicado a São Tiago. Dele conseguiu uma réplica da imagem do Santo, que percorreu junto com os peregrinos os 240 km de Santana do Parnaíba a Águas de São Pedro. Nesta última cidade foi erigido um santuário, onde São Tiago está agora alojado.
O primeiro Caminho do Sol foi até certo ponto um pesadelo logístico, pois inscreveram-se 80 pessoas, entusiasmadas em serem pioneiras desta nova peregrinação – o plano de Jonas era de apenas 10 fiéis. Diferentemente de mim, muitas haviam participado de outros trajetos, incluindo o de Compostela.
Eu me surpreendi com os peregrinos: muitos eram velhos, havia aleijados e cegos. Fiquei pensando se a sua intenção seria a de se curarem pela graça divina ao longo do caminho. Confesso que não senti piedade, achei-os macabros. Era uma fria e luminosa manhã de sábado em julho e logo começamos a marchar.
Através deles descobri que existem no Brasil inúmeras peregrinações, e não apenas o conhecido trajeto pelo Vale do Paraíba até Aparecida do Norte. Por exemplo, os percursos de Santa Cruz dos Milagres no Piauí, Passos de Anchieta no Espírito Santo e Caminho das Missões no Rio Grande do Sul.
Nos dias finais, tomei conhecimento da longa travessia de um certo Caminho da Luz em Minas, que termina na vila de Caparaó de Cima, nos contrafortes do Pico da Bandeira. E, para surpresa minha, da existência de uma nova Aparecidinha, que é homenageada ao longo do caminho paulista entre as vilas paulistas de Conchas e São Manuel.
O trajeto do Caminho do Sol corre quase sempre rumo norte e inicia-se em Santana do Parnaíba, nas proximidades de São Paulo. Passa a seguir por Pirapora do Bom Jesus e daí, pelo vale do médio Tietê, chega à vila de Cabreúva.
A partir dos campos altos de Itu, alcança as lavouras de cana de Salto até Piracicaba. Termina na estância vizinha de Águas de São Pedro, cujo aniversário é o mesmo do de Santiago, 25 de julho, dia em que a peregrinação lá terminou em grande festa.
Se vocês acham que percorrer 240 km em dez ou onze dias é fácil, não esqueçam o suplício que é atravessar 40 km em asfalto nos dois primeiros dias, de Santana a Cabreúva. Nunca havia dividido um dia inteiro com o calor, o lixo e o tráfego de nossas rodovias, mais fácil teria sido andar numa árdua trilha de montanha.
Ao longo destes dez dias, houve algumas paisagens bonitas: as corredeiras do Tietê, as colinas de Cabreúva, os campos pedregosos de Itu e o amplo vale do Monte Branco em Piracicaba. Por metade do tempo, entretanto, o caminho percorreu infindáveis lavouras de cana, que são monotonamente iguais.
O terreno é moderadamente ondulado, o que permite muitas vistas panorâmicas. O visual, mesmo no inverno, costuma ser variado, devido à diversidade na ocupação do solo, entre pequenas vilas, plantações de cana, roças de legumes, reflorestamentos e pastagens. Tivemos a sorte de contar com tempo seco e frio.
Os alojamentos foram em pequenos hotéis urbanos, em pousadas rurais ou em locais improvisados: galpões, ginásios, igrejas e escolas. As refeições foram quase sempre providas nestes locais e, em poucos casos, em restaurantes das vilas.
A urbanização e o avanço da cana em São Paulo causaram um esvaziamento do campo. Atravessamos municípios cuja população caiu à metade e passamos por olarias e colônias abandonadas. Mas trata-se de regiões cuidadas e ricas, com pessoas tranquilas e hospitaleiras, que parecem tão desligadas da agitação urbana como as dos locais mais remotos que conheci nas minhas muitas peregrinações pela natureza.
Porém esta travessia teve um diferencial: o sentimento religioso das pessoas, que confesso é algo estranho para mim. Ao fim de cada dia o grupo se reunia em círculo e havia orações e mesmo missas. Lembro-me de uma, numa igreja do interior, onde resolvi investigar a torre da igreja, cujo acesso estava aberto.
Sentindo-se autorizados pela presença de um adulto, alguns meninos juntaram-se a mim. Sempre há um garoto gordo e bisonho e um ágil e esperto. Descobrimos maravilhados um depósito de santos que parecia milagroso. Ao fim da subida, o menino esperto resolveu pular pelo buraco da escada.
Lançou-se sem aviso – morreu!, eu pensei. Encontrei-o alegre lá embaixo com sua mãe desesperada por perto. Tive pena dela, sua vida seria um eterno sofrimento para educar aquele guri travesso. Curiosamente, achei-o tão parecido comigo quando criança – e tive mais pena ainda de sua mãe.
Eu tinha um programa noturno em São Paulo e consegui tramar uma fuga perfeita – um veículo me buscando à tarde e me devolvendo de manhã. E aconteceu uma missa emocionante, o padre pediu que os peregrinos o cercassem no altar, todos compartilhando um sentimento comum.
Havia uma velha que não perdia a oportunidade de vestir um bikini, sob o feroz olhar ciumento de seu marido – quase me agrediu um dia ao tentar ajudá-la a sair da água. E também um velhote, o mais antigo de todos, sempre rápido e falante. Portava um estojo na cintura e quis saber o que continha. É viagra, a gente nunca sabe quando tem de dar uma resposta rápida!
Uma noite, com luzes apagadas, os violeiros cantaram a conhecida música Romaria: Sou caipira, Pirapora, Nossa Senhora de Aparecida, Que ilumina a mina escura e funda, O trem de minha vida. Foi numa fazenda, seus donos foram muito generosos com o grupo, acho que eram pessoas de uma fé sincera.
Uma manhã, passamos por uma série de casas alinhadas de uma colônia no interior de Piracicaba. Eu tinha uma roupa branca e barba de muitos dias. Comecei a enviar o sinal da cruz para os moradores que nos olhavam pasmos. Vai lá beijar a mão do santo, disse a seu filho uma das mães. A partir daí, distribuí muitas bênçãos – mas não curei nenhum defunto.
E assim fomos, dia após dia, encontrando vilarejos, atravessando campos, contando e ouvindo histórias e marchando ao ritmo da fé.
O objetivo do Caminho do Sol é oferecer uma experiência semelhante à de Santiago de Compostela. De fato, inicia-se e termina em locais de interesse religioso, que valorizam o percurso.
São raros os trechos em que o caminho deixa as estradas para percorrer carreadores de fazendas, ou seja, quase nunca ele depende da permissão dos proprietários. Aos poucos, foi sendo criada uma estrutura de alojamentos ao longo do caminho. E os clubes de cicloturismo descobriram essa proposta, aparentemente com bastante sucesso.
Finalmente, ao chegar, você será recebido na Casa de Santiago, instalada num horto em Águas de São Pedro. Não sei se você tem pecados, mas talvez possa redimi-los através de alguma agradável promessa de percorrer o Caminho do Sol.