O Cânion do Viana

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O tempo dirá, mas considero o Piauí uma das regiões ecológicas mais interessantes do Brasil. Você consegue chegar vivo lá, embora seja um dos ambientes mais pobres e distantes do país.

Os Grandes Territórios Serranos do Sul do Piauí, Confinando o Vale do Gurgueia entre as Serras do Uruçuí e do Bom Jesus (IBGE).

Ele é grande e o conheço mal, tem até partes amenas, mas o que me impressiona são suas escarpas e seus lajedos areníticos, convivendo com o duro campo da caatinga ou do cerrado, ao longo de grandes espaços e silêncios que o homem primitivo decorou com movimentados registros rupestres.

Existem três Parques Nacionais implantados há algum tempo no sul do Estado. O da Serra da Capivara, embora criado há meio século, só se desenvolveu a partir da sua assunção pela arqueóloga Niède Guidon ao longo da década de 1980. Com 100 mil hectares, contém o maior acervo de pinturas primitivas do país, num ambiente serrano de grande beleza.

Paredões Coloridos da Capivara, com Boqueirões em baixo e Mirantes em cima (Fonte – Divulgação).

As paisagens do parque são impressionantes, devido às formas mutáveis do arenito nas Serras Vermelha, Branca e Capivara – boqueirões, chapadas, depressões, penhascos. Não há em local algum tamanha concentração de pinturas rupestres, nas mais ágeis cenas das vidas de nossos antepassados, espalhados por mais de um milhar de sítios. É a meu ver o maior patrimônio natural do Brasil.

O PN Serra das Confusões foi ampliado e é hoje a maior reserva natural nordestina, com mais de 800 mil hectares (e sendo expandido). Foi fundado praticamente no início do século passado e tem permanecido em estado dormente até o presente. É também rico em antigos registros rupestres que convivem com uma vegetação mais abundante de caatinga e de cerrado, que se alojou numa sucessão de serras.

Os lagedos do PN Serra das Confusões, que corresponde à borda sul da região. (Fonte – Divulgação).

Curiosamente, as duas reservas distam apenas 100 km, e por bom asfalto. Os campos pastoris logo ocupados pelos fazendeiros entre elas impediram que tivessem sido reunidos numa só unidade.

Localizado principalmente entre o Piauí e o Maranhão, o PN das Nascentes do Paraíba é antes um projeto do que uma realidade. Seus acessos são precários e não dispõe de estrutura, o que torna escassa (a rigor, nula) a sua visitação. Seus mais de 700 mil hectares são recobertos pelo cerrado e atravessados pela Chapada das Mangabeiras. É um local de espaços enormes, águas cristalinas e fauna abundante, porém ameaçado pelo avanço da soja à sua volta. Já se disse que este é o último sertão brasileiro.

Cachoeira da Prata no PN Nascentes do Parnaíba, uma Reserva com Muita Água e Grandes Extensões Secas. (Fonte – Divulgação)

Acredito que não haja mais de 350 km entre os limites dessas reservas, que se distribuem aproximadamente num sentido de leste a oeste, desde a Capivara até o Parnaíba. Infelizmente, essa ampla região não é enxergada pelos agentes de turismo ou meio ambiente como um circuito conjunto. Poderia integrar uma enorme rota rústica, entre campos cênicos, rios e cachoeiras, longas chapadas retilíneas e serras agitadas por paredes, gargantas e mirantes.

Existe uma surpreendente formação que se associa às outras três. E que apresenta um formato único: trata-se de um enorme cânion seco, que corre entre Bom Jesus e Guariba, vale dizer desde o vale do Gurgueia até a Serra das Confusões.

O Gurgueia é um rio longo, de mais de 500 km, que atravessa de sul a norte o Estado até encontrar o Parnaíba, que é o grande caudal da região. Ele corre encaixado entre duas serras e seu modesto fluxo até parece milagroso nessa terra tão seca. Todos os seus afluentes da margem esquerda são perenes e todos os da direita, são intermitentes. Ao longo de seu vale, há algum progresso, com vilas modestas, algumas delas ligadas à recente expansão da soja pelos esforçados gaúchos.

As Confusões são uma longa espinha arenítica como sempre de formação complexa, também contendo xistos e quartzitos. Ela forma a borda sul de uma enorme região que oscila entre chapadas e serras – destas há muitas, como Guariba, Pitombas, Peneira, Semi-Tumba. É um panorama grandioso, com estranhos lajedos panorâmicos, grutas em forma de túneis triangulares e longas paredes estriadas e incrustadas, abraçados por um emaranhado espinhoso e retorcido de cactos, gramíneas, arbustos e árvores. Aqui não existem vilas, apenas povoados na poeira.

Decifrar o passado geológico do Cânion do Viana parece ser um exercício além do conhecimento atual. A região tem um embasamento muito antigo, recuando a quase 3 bilhões de anos, tendo sido sujeita a partir de ½ bilhão de anos atrás à sedimentação da bacia do grande rio local. Sofreu abalos horizontais (que os geólogos chamam de epirogênese), diferentes dos esforços verticais da orogênese formadora de montanhas.

Acredito que isto favoreceu o agrupamento, a compactação e o arrastamento de blocos rochosos, que a chuva e o vento vieram pacientemente a separar, entalhando caminhos através dos maciços. É por eles que corre esta espetacular garganta seca de misteriosos paredões verticais: o Cânion do Viana.

Visual ainda aberto do Cânion do Viana, com pontão intermediário. Note a vegetação de topo. (Fonte – Divulgação).

É também importante reconhecer que o Viana abriga a meu ver uma região diferenciada, como se fosse um enclave vegetal. Não cresce no seu solo nem o cerrado e nem a caatinga tradicionais – e sim o pasto, pois é uma região exclusivamente pastoril, ocupada por uma sucessão de modestas fazendas. Sua fauna é composta por pequenos mamíferos, muitas aves e perigosos felinos.

O Viana tornou-se conhecido através do Rally dos Sertões e por isso o seu acesso é bem sinalizado, com placas de mesmo aspecto. Sua porta de entrada é por Bom Jesus, uma cidade de porte médio à beira da BR 135. Não é tão longe assim de Barreiras (BA) a pouco além de 450 km, nem de Petrolina (PE) a 650 km, sempre por asfalto.

Ele começa a quase 30 km a leste de Bom Jesus e, na minha medição, se estende por 26 km. Ao longo do trajeto basicamente plano e baixo, você passará por quatro fazendas de tamanho razoável – Pitombeiras, Marinês, Bela Vista e Baixão Bom. É curioso como sua sucessiva identificação irá criando um certo sentido de localização.

No início, você apenas notará grandes matacões nos dois lados da estradinha, ainda recobertos de vegetação, parecendo dispersos e desgastados. Mas, aos poucos, os blocos irão se aproximando e se tornando lisos e verticais, há rochedos de mais de uma centena de metros – como num cenário, começarão a crescer e fechar o caminho. Algo assombroso, quem sabe uma rocha viva, dotada de movimento e intenção.

A carnaúba isolada à sombra da rocha no trecho médio do cânion (Fonte – Divulgação).

É emocionante, você se verá diante de um monumento natural, paredes esculpidas tão maiores e indiferentes a você. Mas este não é um mundo de ficção científica, você encontrará uma doce carnaúba, um par de cavalos pastando, uma passagem lateral escondida, uma cerca torta conduzindo a um pasto incerto – enfim, a vida normal do campo.

Note que o Viana ainda não foi ainda bem explorado. Vander Bueno nos conta que existem saídas laterais por onde o gado jovem se esconde e que, em algum ponto, corre uma cachoeira onde reúne todo o tipo de animal. Mas minha impressão é de que ele não tem muita largura, parece ser um cânion estreito. Não seria surpresa se houvesse outras gargantas a leste do Gurgueia.

Mas, em algum ponto, uma nova placa indica o final do cânion, o que não me pareceu convincente. De toda a forma, serão outros 25 km até chegar ao vilarejo do Viana. Não deixa de ser estranho encontrar ali a prosaica igreja de São João Batista caiada de branco, não sei se ela sinaliza um retorno ou um começo.

E, Finalmente, a Singela igreja de São João Batista, Anunciando os Novos Caminhos além do Viana.

Porém, antes dela, existe a conhecida Gruta do Viana, onde você subirá por uma íngreme fenda rochosa que parece sugerir no seu final a presença de Nossa Senhora. Porém, os felinos da região resolveram frequentar esse santuário, sua devoção começou a ameaçar os visitantes e a Gruta foi interditada.

E, então, você resolve continuar, mesmo porque este é um espaço amplo, sem limites ou fronteiras. Você sabe que motoqueiros são guias confiáveis, eles anotam com cuidado as distâncias, os tempos e as direções. Vou usar a partir daqui as indicações do incansável Bressan.

Você dispõe de duas opções de saída – a nordeste ou a sul. No primeiro caso, que é mais simples, você deve percorrer 40 km até Guariba, um dos povoados das Confusões, agora em terrenos mais altos. Será longe, mas conhecido, atravessar os 50 km até o asfalto de Caracol – já no rumo da Serra da Capivara em Raimundo Nonato.

O vilarejo Morro Cabeça no Tempo, Entrada Sul para a Região do Viana (Fonte – Divulgação).

A sul, você alcançará em menos de 30 km o vilarejo de Morro Cabeça no Tempo, um local também elevado. Parece um lugar imemorial, mas o morro que o nomeia é uma mera colina abaulada e florestada. Dele você pode optar pelos povoados piauienses de Avelino Lopes ou Curimatá, esses lugares todos abrigam não mais de 5 a 10 mil almas.

Você bem pode pousar ou acampar. Desde que saiu de Bom Jesus, terão sido 180 km até alcançar a segurança dessas estradas pavimentadas. Acho que é o momento de avisar que você encontrará areões fofos ou duros, poças traiçoeiras, rampas pedregosas, atoleiros e muitas porteiras. Claro que ninguém se aventura lá sozinho, ouço que são normalmente grupos.

Mapa das localidades do Cânion do Viana.

Então, veja que notável circuito campestre pode ser percorrido, desde a entrada da garganta, sua estupenda travessia, os caminhos que a prosseguem pelas terras pastoris e, por fim, as serras e chapadas desse grande mundo de surpresas e confusões.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

2 Comentários

  1. JOSE CARNEIRO DE CARVALHO NETO em

    Sensacional o seu texto. Apaixonante. Reputo o melhor texto disponível na internet sobre o cânion dos Vianas. Parabéns

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